Profaluciapeixoto: Pensando “O mundo como Vontade e Representação”

 "Conhecer as próprias tendências e as próprias qualidades de qualquer sorte que sejam, e assim também os limites que não se podem ultrapassar, eis, a tal respeito, o caminho mais seguro para chegarmos à maior satisfação possível conosco mesmos."

SCHOPENHAUER


Bora filosofar
O mundo como vontade e representação
Arthur Schopenhauer!
"o absurdo da vida"
Paradoxos dos desejos...

VIDA E MORTE (1)

Espero que os três primeiros livros hajam feito compreender que o mundo como representação é o espelho da vontade, no qual a vontade se reconhece a si mesma com uma clareza e uma precisão que vão gradualmente crescendo: no homem esta consciência atinge a perfeição, mas a essência do homem não encontra a sua expressão completa, salvo na concatenação das ações que ele pratica e é a razão que torna o indivíduo capaz de abranger de relance e inabstrato a unidade consciente da sua conduta.

A vontade, considerada puramente em si mesma, é inconsciente; é uma simples tendência, cega e irresistível, a qual encontramos tanto na natureza do reino inorgânico e do vegetal e nas suas leis, como também na parte vegetativa da nossa vida: mas pelo acréscimo do mundo da representação que se desenvolveu pelo seu uso, ela adquire a consciência do seu querer e do objeto do seu querer; reconhece que aquilo que quer não é outra coisa senão o mundo e a vida como são; dizemos, por isso, que o mundo visível é a sua imagem ou a sua objetividade; e como o que a vontade quer é sempre a vida, pois que a vida para a representação é a manifestação da vontade, resulta que é indiferente e constitui puro pleonasmo se em vez de dizer simplesmente “a vontade”, dissermos “a vontade de viver”.

Sendo a vontade a coisa em si, a substância, a essência do mundo; e a vida, o mundo visível, o fenômeno, não sendo mais que o espelho da vontade, segue-se daí que a vida acompanhará a vontade com a mesma inseparabilidade com que a sombra acompanha o corpo: onde houver vontade, haverá também vida, mundo. A vida está, portanto, assegurada ao querer-viver, e por quanto isto subsista em nós, não devemos preocupar-nos pela nossa existência nem mesmo diante da morte. Bem vemos o indivíduo nascer e morrer, mas o indivíduo é apenas um fenômeno; não existe senão pelo conhecimento submetido ao princípio de razão, que é o princípio de individuação: nesta ordem de idéias, certamente o indivíduo recebe a vida como um dom: oriundo do nada e despojado do seu dom pela morte, ao nada retoma. Mas para quem, como nós, contempla a vida do ponto de vista filosófico, isto é, das Idéias, nem a vontade ou a coisa em si de todos os fenômenos, nem o sujeito dos conhecimentos, espectador dos fenômenos, são de qualquer forma tocados pelo nascimento ou pela morte. Nascer e morrer são coisas que pertencem ao fenômeno da vontade, e aparecem nas criaturas individuais, manifestando fugitivamente e no tempo, aquilo que em si não conhece tempo e deve exatamente manifestar-se sob esta forma com o fim de poder objetivar a sua verdadeira natureza. Pela mesma razão, nascimento e morte pertencem à vida e equilibram-se mutuamente como condições recíprocas, ou melhor, como pólos do fenômeno total. A mitologia hindu, entre todas a mais sábia, exprime este pensamento, dando por atributo a Çiva que simboliza a destruição ou a morte (como Brama, o deus ínfimo e pecador da Trimurti, simboliza a procriação, o nascimento e Vishnu simboliza a conservação), o colar dos mortos, juntamente com o Lingam, símbolo da geração, o qual conseguintemente aqui aparece para compensar a destruição; o que significa que nascimento e morte são pela sua essência correlativos que se neutralizam e se compensam a seu turno. Pelas mesmas razões, Gregos e Romanos cobriam seus preciosos sarcófagos, tais como podem ser vistos no dia de hoje, com ornamentos que representavam festas, danças, casamentos, caças, combates de feras e bacanais e colocavam deste modo em cena os fatos mais animados da vida expressos não unicamente sob a forma de divertimentos, mas também por meio de grupos voluptuosos e até mesmo de cópulas de sátiros com cabras. Tinha isto o fim evidente de subtrair ao indivíduo pranteado o pensamento da morte, para levá-lo à vida imortal da natureza, acentuada com energia, mostrando assim, embora estivessem muito longe de possuir a consciência abstrata deste fato, que toda a natureza não é mais que o fenômeno e a realização da vontade de viver. A forma de tal fenômeno é o tempo, o espaço e a causalidade, donde a individuação, que tem por conseqüência que o indivíduo deve nascer e morrer; mas a vontade de viver de que o indivíduo não constitui por assim dizer, mais que um exemplar ou uma parcela singular de manifestação, não é perturbada pela morte do ser individual, tanto quanto não o é o conjunto da natureza. Pois que não é pelo indivíduo, mas unicamente pela espécie que a natureza se interessa e é dela unicamente que estuda seriamente a conservação, circundando-a de grande luxo de precauções e por meio da superabundância ilimitada dos germes e do poder imenso do instinto de reprodução. O indivíduo, ao contrário, não tem valor algum para a natureza e nem pode tê-lo, desde que é apenas um ponto num tempo infinito e num espaço infinito que compreende um número infinito de indivíduos possíveis. A natureza está sempre pronta a abandonar o indivíduo que não somente está exposto a perecer de mil modos e pelas causas mais insignificantes, como também é, desde o princípio, destinado a uma perda certa, para a qual é arremessado por ela mesma, apenas haja satisfeito a missão que tem de conservar a espécie. Com isto a natureza exprime ingenuamente esta grande verdade, que são as Idéias e não os indivíduos que têm uma verdadeira realidade, isto é, são a objetividade perfeita da vontade. Ora bem, sendo o homem a própria natureza cônscia de si no mais alto grau, e sendo a natureza a vontade de viver objetivada, é natural e justo que o homem, desde que haja atingido e se mantenha neste ponto de vista, se console da morte dos seus e da sua própria, vislumbrando a vida imortal da natureza que não é mais que ele mesmo. Eis o que se deve compreender por Çiva com o Lingam e por aqueles antigos sarcófagos que com suas imagens da mais ardente vida, gritam ao espectador desolado: Natura non contristatur (A natureza não se contrista).

Um fato que além disso prova muito bem que nascimento e morte são condições inerentes à vida e essenciais para esse fenômeno da vontade, é que se apresentam ambos simplesmente como a expressão mais decidida do que constitui também todo o resto da vida. Esta, efetivamente, não é senão uma variação perpétua da matéria com permanência invariável da forma: nisto consiste igualmente a destrutibilidade dos indivíduos e a constância da espécie. A nutrição e a reprodução incessante não diferem da geração e a excreção não difere da morte, senão quanto ao grau. O reino vegetal apresenta-nos o primeiro caso, sob forma fácil de ser compreendida. A planta por sua natureza é uma repetição constante da mesma semente, da sua fibra mais simples que se dispõe em folhas e ramos: é um agregado sistemático de plantas semelhantes que se sustêm umas às outras e cuja única tendência é a reprodução indefinida: com esta finalidade a planta se transforma, grau a grau, em flores e em frutos que reassumem a seu turno toda a sua existência e todas as suas tendências; atinge desta sorte pelo caminho mais curto aquilo que era sua mira constante, realizando de um só golpe e em exemplares inumeráveis, o que atê então só realizava em pormenor, isto é, a sua multiplicação. Seu desenvolvimento até à frutificação tem relação com o fruto, como a escrita tem relação com a imprensa. O mesmo sucede com o animal. O processo de nutrição é uma geração contínua e o processo de geração é uma nutrição de potência superior: A volúpia durante o coito é o bem-estar reforçado que resulta do sentimento da vida. Por outro lado, a excreção, isto é, a recusa e a evaporação da matéria, excetuando o grau, é idêntica à morte que é o oposto da geração. Ora, nós nos sentimos perfeitamente satisfeitos com o conservar a nossa forma, e não sentimos mágoa pela matéria eliminada; é preciso manter tal atitude também quando a morte vem realizar por grosso e em mais larga escala, o que sucede a cada dia e cada hora na excreção: como no primeiro caso permanecemos indiferentes, não devemos espantar-nos com o segundo. Deste ponto de vista, é tão insensato desejar a perpetuação da nossa individualidade, que é substituida por outros indivíduos, como também é insensato desejar a permanência da matéria do nosso corpo, que é continuamente substituida por outra matéria: donde resulta que é tão absurdo embalsamar os cadáveres, como conservar com cuidado as nossas dejeções. E com referência à consciência individual ligada ao corpo do indivíduo, vem o sono todos os dias suspendê-la totalmente. Freqüentemente a passagem do sono para a morte, não é sequer advertida, como por exemplo no caso em que o homem morre gelado; o sono profundo, por isso, não difere da morte quanto à duração do momento, mas unicamente quanto à duração do futuro; ou por outras palavras, quanto ao despertar. A morte é um sono de que o adormecido por esquecimento não foi despertado: tudo o mais desperta, ou antes, permanece desperto.

Antes de mais nada é preciso que nos convençamos de que a forma de fenômeno da vontade, ou por outras palavras, a forma da vida ou da realidade, é o presente, e não o futuro, nem o passado; estes não existem senão na abstração por meio da concatenação do conhecimento submisso ao princípio de razão. Ninguém viveu no passado e ninguém viverá no futuro; o presente, somente ele, é a forma exclusiva da vida, propriedade certa, que nada poderá jamais subtrair-lhe. O presente está sempre ali, com tudo quanto abrange: continente e conteúdo quedam-se parados, imóveis, como o arco-íris sobre a catarata. Por isso que a vida é assegurada à vontade, e o presente é assegurado imutavelmente à vida. Certamente, quando pensamos nos milhares de anos decorridos e nos milhões de homens que viveram, perguntamos: Que eram eles? – Que se tornaram? – Mas basta-nos em compensação recordar o passado da nossa própria vida e chamar vivamente suas cenas à nossa imaginação, para então perguntarmos de novo: – Que é, então, tudo isto? – A que se reduziu? – Como para a nossa vida, assim tam bém para a existência daqueles milhões de homens. Ou seria porventura necessário acreditar que por haver recebido o sigilo da morte, o passado haja adquirido uma nova existência? O nosso próprio passado, ainda o mais próximo, o dia apenas transcorrido, não é mais que um sonho vácuo da Imaginação, e nada mais que isto é o passado de todos esses milhões de seres. Que é aquilo que foi? – Que é aquilo que é? – Aquilo que foi, aquilo que é, assim é a verdade de que a vida é o espelho, e o conhecimento disjunto do querer que no espelho vê distintamente essa vontade. Quem quer que não haja ainda aprendido ou não queira aprender esta verdade, quando se propõe as questões acima acentuadas sobre o destino das gerações que foram, deve agregar-lhes ainda uma: é preciso que se pergunte a si próprio, como sucede que ele, interrogador, tenha a graça de possuir tal presente tão precioso, tão fugitivo, o único real; por que razão tantas centenas de gerações, esses sábios e esses heróis doutros tempos, caíram na sombra do passado, desapareceram em nada, enquanto ele, esse “eu” insignificante, em realidade existe? – ou, em palavras mais breves e bizarras, deverá perguntar-se a si mesmo, por que esse presente, o seu presente, existe precisamente neste momento e não tenha já existido há muito tempo. Propondo-se a estranha interrogação, ele considera a sua existência e o seu tempo independentes um do outro e a primeira, de certo modo, como lançada no segundo: admite, a bem dizer, dois presentes, dos quais um pertence ao objeto e outro ao sujeito e maravilha-se do afortunado acaso que os fez coincidir. Mas na realidade (como o demonstrei na minha dissertação sobre o princípio de razão) o que constitui o presente não é mais que um ponto de contato entre o objeto, de que o tempo é forma, e o sujeito que não tem por forma nenhum dos modos do princípio de razão. Ora, o objeto é a verdade tornada representação e o sujeito é o correlativo necessario do objeto; mas não se dão objetos reais senão no presente porque o passado e o futuro contêm apenas abstrações e fantasias do espírito: portanto o presente é a forma essencial e inseparável do fénômeno da vontade. O presente, só ele, é o que é sempre e que permanece imóvel. Essencialmente fugaz, considerado do lado empírico, apresenta-se ao olhar metafísico que vê além das formas da percepção empírica, como a única coisa permanente, como o “Nunc stans” dos escolásticos. Fonte e portadora do seu conteúdo, assim é a vontade de viver, ou a coisa em si: por outras palavras, nós mesmos. O que nasce e passa sem trégua, seja por já ter nascido, seja por dever suceder depois, pertence ao fenômeno como fenômeno em virtude das formas deste, que tomam possível o nascer e o morrer. E preciso dizer por conseguinte: Quid fuit? – Quod est; – Quid erit? – Quod fuit; o que é preciso tomar no sentido literal das palavras e não entender com isto semelhante mas idem. Entendido que a vida é assegurada à vontade e o presente à vida. Cada um pode dizer, portanto: “Eu sou para sempre possuidor do presente; ele me acompanhará como sombra por toda a eternidade; por conseguinte é inútil que procure donde vem o presente e como acontece que existe precisamente neste instante.” Pode-se comparar o tempo a uma circunferência que gira continuamente; a metade que sempre desce seria o passado, e a que sempre sobe, o futuro; ao alto, o ponto indivisível que encontra a tangente seria o presente que não tem dimensões; como a tangente não é arrastada pelo giro, assim permanece imóvel o presente, ponto de contato entre o objeto, com a sua forma do tempo, e o sujeito que não tem forma, pois que é a condição de tudo o que pode ser conhecido, sem que possa ele mesmo ser conhecido. Poderia ainda comparar-se o tempo a um rio impetuoso e o presente a uma barreira contra a qual o rio se frange sem poder, todavia, arrastá-la consigo. A vontade como coisa em si, é tão pouco submissa ao princípio de razão, quanto o sujeito do conhecimento, que de certo modo, vem a ser, enfim, a vontade ou a sua representação; e da mesma maneira pela qual a vida, o fenômeno, é assegurado à vontade, assim lhe é assegurado o presente, única forma da vida real. Não devemos, por conseguinte, investigar do passado, antes da vida, nem do futuro, depois da morte: devemos reconhecer que o presente é a única forma sob a qual a vontade se aparece a si mesma: (2) esta forma não lhe faltará nunca, e nunca decerto virá a falecer-lhe. Quem ama a vida como é, quem a afirma com todo o poder, pode, com toda a segurança, considerá-la infinita e afastar o pavor da morte com uma ilusão que lhe faz temer sem razão a possibilidade de perder algum dia a posse do presente e que lhe acena com a imagem falaz dum tempo que não teria presente. Essa ilusão em relação ao tempo, é o mesmo que em relação ao espaço, é essa outra ilusão em virtude da qual cada um imagina estar no alto o ponto por si ocupado sobre o globo terrestre, enquanto tudo o mais estaria embaixo: assim, igualmente cada um liga o presente à sua própria individualidade, imaginando que com ela todo o presente desaparece e que dele ficam então o passado e o futuro despojados. Mas como em nosso globo, o alto se encontra em qualquer ponto, assim o presente é a forma de toda vida: temer a morte porque nos tira o presente não é mais razoável do que ter medo de cair do globo terrestre tendo a fortuna de se lhe achar no alto, no momento atual. A objetivação da vontade tem por forma necessária o presente, ponto indivisível que talha o tempo prolongando-se ao infinito nas duas direções e que permanece imóvel, tal como um eterno meio-dia que nenhuma noite apagasse, ou como o Sol real que brilha, continuamente, conquanto nos pareça que imerge no seio da noite: temer a morte como destruição é como se o Sol no crepúsculo exclamasse, gemendo: “Ai de mim que vou perder-me numa noite eterna!”. (3) Mas, vice-versa, também o contrário é verdadeiro: aquele que, oprimido pelo peso da vida, e embora a amando e afirmando-a lhe teme as dores e, sobretudo, não quer suportar por mais tempo o triste destino que lhe toca, em vão espera encontrar a libertação na morte e salvar-se com o suicídio: o porto que lhe oferece o Orco, escuro e gelado, cuja calma o atrai, não é mais que uma vazia miragem. A Terra gira incessantemente do dia para a noite; o indivíduo morre: mas o Sol arde sem trégua e o meio-dia é eterno. A vontade de viver está certa de viver: a forma da vida é um presente sem fim; e pouco importa que os indivíduos, fenômenos da Ideia, nasçam e morram como sonhos fugaes. O suicídio, portanto, desde já nos aparece como um ato inútil e porventura insensato: na sequência das nossas considerações há-de se nos apresentar sob um aspecto ainda mais desfavorável.

Mudam os dogmas e é falaz o nosso saber, mas a natureza não se engana jamais: o seu passo é seguro e ela não o esconde. Tudo nela é completo e ela efetivamente é completa em tudo. A natureza tem o seu centro em cada ser animado: o animal encontrou com segurança o caminho para entrar na existência, como com segurança o encontrará para sair dela: nesse entretempo vive sem temor da destruição e sem cuidados na consciência de ser a própria natureza e como ela imperecível. O homem, somente o homem, leva consigo a convicção abstrata da própria morte: mas, coisa estranha! Tal convicção não o inquieta senão a intervalos, quando alguma circunstância lhe evoca à mente. A reflexão é quase importante contra a poderosa voz da natureza. No homem, portanto, como no animal que não pensa, reina permanentemente esta segurança, oriunda da consciência profunda de ser ele próprio a natureza e o mundo; o que impede que o sentimento duma morte inevitável e sempre iminente o torture de modo demasiado vivaz, enquanto lhe permite levar avante tranquilamente a vida, como se esta nunca tivesse que cessar; isto chega até mesmo a tal ponto, que se poderia afirmar que nenhum homem possui a convicção real e viva de que tem de morrer; sem o que não poderia subsistir uma diferença tão grande entre o seu estado habitual de espírito e o dum condenado à morte: cada um possui, a bem dizer, esta certeza in-abstrato e em teoria, mas cada um a põe de parte, como se costuma fazer com muitas verdades teóricas que não encontram aplicação prática, e não lhe dá nunca acesso na sua consciência vivente. Para quem estuda atentamente tal disposição especial ao homem, é claro que nem o hábito, nem a resignação se revelam suficientes para explicá-la e que deste fato, a verdadeira fonte, bem mais íntima, é aquela que acabamos de indicar. Isto, aliás, nos explica como sucede que o dogma duma continuação qualquer do indivíduo depois da morte existiu sempre, e foi tido em grande consideração junto de todos os povos, ainda que as provas sobre as quais se apoia devam ter sido sempre muito insuficientes, enquanto as da tese contrária são fortes e numerosas: antes, esta última pode em rigor dispensar provas, por isso que o senso comum a reconhece como um fato que vem melhor corroborar a certeza de que a natureza não mente nem se engana jamais, e que mostra franca e ingenuamente o que é e o que faz e que somos nós que velamos tudo isto com as nossas ilusões, com a finalidade de lhe dar uma interpretação no sentido que melhor convenha aos horizontes limitados do nosso espírito.

Vimos assim, claramente, não ser senão o fenômeno individual da vontade o que principia e acaba no tempo, enquanto não concerne à vontade como coisa em si, nem ao correlativo de todo objeto, o sujeito cognoscente e jamais conhecido; vimos, também, que à vontade de viver é sempre assegurada a vida: – mas estas reflexões nada têm com os dogmas da perpetuidade ora vindos em questão. Porque a vontade considerada como a coisa em si, e o puro sujeito cognoscente, olho eterno do mundo, que existem ambos fora do tempo, não conhecem um melhor que o outro, a permanência e a destruição que são condições temporais. Assim, o egoísmo do indivíduo (este fenômeno particular da vontade, esclarecido pelo sujeito do conhecimento) não poderá colher nos horizontes que acabei de expor, alimento nem conforto para o seu desejo de durar indefinidamente, como também não os poderia colher na certeza de que depois da sua morte o resto do mundo continuará a existir; o que é a expressão do mesmo modo de ver, mas dum ponto de vista objetivo e, portanto, atinente ao tempo. Por isso que, se é constante que o indivíduo perece unicamente como fenômeno; e como coisa em si, é independente do tempo, a saber, eterno, por outro lado, é sempre como fenômeno que é distinto dos outros objetos; como coisa em si é a vontade que se manifesta por toda parte; a morte apenas vem dissipar a ilusão que separa a sua consciência da consciência universal: eis aqui, portanto, a perpetuidade. A isenção da morte, atributo exclusivo da coisa em si, coincide como fenômeno com a duração do remanescente do mundo exterior. (4) A consciência profunda, mas em estado de simples sentimento, daquilo que acabamos de elevar ao estado de noção distinta, preserva, como dissemos, o próprio ser dotado de razão de ver a sua existência envenenada pelo pensamento da morte; é o que efetivamente lhe dá essa coragem de viver que sustenta tudo o que vive e que o faz prosseguir galhardamente avante como se a morte não existisse, ao menos por todo o tempo em que ele ama e procura a vida; o que não impede, contudo, que quando a morte se lhe apresenta em realidade, ou mesmo somente na imaginação, e ele tenha de fitá-la face a face, não seja dominado pelo medo e não procure por todos os meios salvar a própria vida. Por isso mesmo que, se a sua inteligência, enquanto era dirigida sobre a vida como vida, devia reconhecer nela a eternidade, quando a morte se lhe apresenta deve reconhecê-la por aquilo que é, a saber, pelo fim natural do homem natural. O que tememos na morte não é a dor, porque, por um lado a dor existe evidentemente, deste outro lado da morte, ou inversamente, preferimos frequentemente suportar os mais cruéis sofrimentos para subtrair-nos um instante que seja a uma morte que todavia seria pronta e fácil. A morte e a dor são, portanto, aos nossos olhos, dois males distintos: o que tememos na morte é efetivamente a destruição do indivíduo porque estamos sob essa forma em que ela se nos apresenta abertamente; e como o indivíduo é a vontade de viver em qualquer objetivação, todo o seu ser se rebela contra a morte. Mas onde nos falha o sentimento, vem a razão que vence em grande parte estas impressões penosas, elevando-nos a um ponto de vista donde possamos compreender o geral no lugar do particular. Um conhecimento filosófico da essência do mundo, uma vez atingido o ponto a que chegamos, mesmo sem ir mais adiante, poderia ajudar o homem a vencer os terrores da morte, e isto na proporção em que nele a reflexão dominasse o sentimento imediato. Um homem que estivesse fortemente penetrado pela verdade que estabeleci, mas que, ou por experiência própria, ou por capacidade superior da mente, não estivesse em estado de reconhecer que o fato da vida é um contínuo sofrimento; que, ao contrário, estivesse satisfeito com a vida e se encontrasse nela perfeitamente à vontade e que refletindo a sangue-frio desejasse que a vida lhe durasse indefinidamente ou recomeçasse incessantemente; um homem, enfim, que possuísse suficientemente o ardor da vida para pagar-lhe as alegrias ao preço das moléstias e dos tormentos aos quais está sujeita, esse “pousaria com pé seguro sobre o solo bem batido da eterna máquina rotunda” e não teria coisa alguma a temer: munido da consciência que lhe infundimos, com vista indiferente veria chegar a morte sobre as asas do tempo; fitá-la-ia qual miragem mentirosa, qual impotente fantasma, feito para espantar os débeis, mas que não tem poder sobre quem sabe que é aquela mesma vontade de que o mundo inteiro é a objetivação ou a cópia, sobre quem sabe que para sempre lhe foi assegurada a vida, como também o presente, forma real e única do fenômeno da vontade; nenhum passado e nenhum futuro infinito em que ele não existisse poderia intimidá-lo, pois que ele os consideraria como vazia miragem, como o tecido de Maya; a morte será tanto por ele temida, quanto a noite pelo Sol. Tal é o modo de ver com que Krishna, no Bhagavat Gita, ensina a seu discípulo estreante, Ardjuna, quando este, ao aspecto dos exércitos que estavam na iminência de combater, é tomado de tristeza (quase como Xerxes) e quer renunciar à luta para evitar a morte de tantos milhares de homens: Krishna chega a convencê-lo, e desde então a destruição de tantas existências não mais o retém: dá o sinal de combate. E também o que exprime o Prometeu de Goethe e especialmente quando diz: “Eis-me a formar homens à minha imagem, uma raça igual a mim, para sofrer, para chorar, para gozar, para divertir-se e para não dar-se de ti cuidados como faço eu!”. A este resultado igualmente conduziriam as filosofias de Giordano Bruno e de Spinoza se os erros ou as imperfeições não viessem turbar ou enfraquecer a convicção. Na filosofia de Bruno não existe uma verdadeira moral; a moral da filosofia de Spinoza não ressalta com efeito das suas doutrinas: conquanto bela e louvável em si mesma, não se lhes atém senão por meio de argumentos débeis e sofismas palpáveis. Finalmente, é a este ponto de vista que teriam sido levadas muitíssimas pessoas se o seu conhecimento procedesse de par com a sua vontade e fossem capazes de repelir qualquer ilusão a fim de compreenderem perfeitamente a si mesmas. Porque este é, para o conhecimento, o ponto de vista absoluto da afirmação do querer-viver.

Entendamo-nos sobre a vontade que se afirma: Inda que a sua objetividade, isto é, a vida e o mundo, lhe tenham feito conhecer nitidamente e inteiramente sua própria essência sob a forma de representação, tal conhecimento não detém, todavia, o seu querer; continua a desejar a vida como é e como aprendeu a conhecê-la; e do modo como a queria, como por cego impulso, sem conhecê-la, assim também a quer agora depois de a ter conhecido, como consciência e reflexão. Eis a vontade que se afirma. O oposto, a negação da vontade de viver, tem lugar quando o conhecimento aniquila o seu querer; os fenômenos isolados que reconhece não agem mais sobre ela como motivos para estimulá-la; antes, na concepção das Ideias que refletem a sua própria imagem e lhe ensinam a reconhecer a essência do mundo, encontra um sedativo que a acalma e a leva a anular-se livremente a si mesma. Estas noções, inteiramente novas e difíceis de compreender, expressas sob formas gerais, tomar-se-ão, assim o espero, bastante claras quando tiver exposto os fenômenos, ou antes, neste caso, as ações por cujo intermédio se manifestam; por um lado, a afirmação nos seus diferentes graus e por outro, a negação. Sabido que ambas derivam na verdade do mesmo conhecimento; não de um conhecimento abstrato que encontra expressão perfeita em palavras, mas antes dum conhecimento vivo que se não explica senão por meio de fatos e da conduta do homem, independentemente de qualquer dogma que lhe possa ocupar a razão sob forma de noções abstratas. Aqui meu escopo único é o de as expor a ambas e de procurar tomá-las bem compreendidas, sem as impor ou recomendar absolutamente uma ou outra; o que seria aliás tão absurdo quanto inútil, visto que a vontade é em si, absolutamente livre, determina-se unicamente por si mesma e não conhece leis. Esta liberdade e a sua relação com a necessidade, eis o que devemos agora examinar e precisar com toda a exatidão antes de proceder a quanto linhas acima expusemos; devemos, além disso, apresentar sobre a vida, de que a afirmação ou a negação é o nosso problema, algumas considerações gerais inerentes a vontade e aos objetos da vontade; tudo isto nos ajudará muito a compreender na sua mais profunda essência o significado moral da conduta que é o objeto do nosso estudo.


O presente trabalho, já o disse, não é mais que o desenvolvimento dum pensamento único; donde se segue que todas as suas partes têm entre si a mais estreita relação; não somente cada qual tem relação necessária com a que lhe precede imediatamente e que se supõe conhecida pelo leitor, como é o caso para todas as obras de filosofia que se compõem unicamente duma sequência de deduções, mas cada parte se liga também às outras admitindo-lhes o conhecimento: tal método requer que o leitor retenha presente na memória não apenas o que precede imediatamente, como também tudo quanto até ali precedeu, de maneira que possa conjugar o pensamento atual ao pensamento anterior, qualquer que seja a distância que os separe; condição que exige igualmente Platão, porquanto nos seus Diálogos, de tão complicado processo, não retoma a tese fundamental senão depois de longos episódios, que servem contudo para mais esclarecer o seu pensamento. Na presente obra, tal condição é obrigatória, visto que o meio que tinha para apresentar meu pensamento único era o de decompô-lo e pó-lo sob a forma de quatro considerações, forma que por nada é essencial mas antes, artificial. Para expor e fazer compreender mais facilmente o meu pensamento, distingui quatro pontos e tive o culdado de bem juntar, concatenando, a matéria igual e homogênea; entretanto, a natureza do assunto não admitia o caminho em linha reta, como o admite a história, e me impôs uma ordem mais complicada; donde resulta a obrigação de ler a minha obra muitas vezes, posto que é este o único meio de aprender a engrenagem de cada uma das partes com qualquer outra delas, e é então somente que, conquanto os quatro livros mutuamente se esclarecem, o seu conjunto poderá revelar-se com toda a clareza."
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VIRTUDE

Uma moral sem fundamento, isto é, uma simples discussão sobre a moral, não pode agir porque não motiva. Mas uma moral que motiva não pode ser efeito senão agindo sobre o egoísmo. Ora, tudo o que provém do sentimento egoísta é destituído de valor moral. Donde se segue que a moral e, geralmente, o conhecimento abstrato não pode produzir a verdadeira virtude. Esta não pode nascer senão do conhecimento intuitivo que nos faz reconhecer nos outros a nossa mesma essência.

Porquanto a virtude procede, em verdade, do conhecimento, mas não do conhecimento abstrato, do que se pode comunicar com palavras. Pois do contrário, poderia ser ensinada; e enquanto enunciássemos abstratamente a noção que lhe serve de base, ao mesmo tempo corrigiríamos moralmente qualquer homem que a tivesse compreendido. Não é assim, contudo. Conferências e sermões sobre a moral não poderão nunca produzir um virtuoso, como também todos os tratados de estética, desde o de Aristóteles, não conseguiram jamais criar um poeta. Porquanto a noção abstrata é tão infrutífera para a essência da virtude quanto o é para a Arte; pode unicamente prestar serviços subordinados como instrumento que auxilia a realizar e conservar na memória aquilo que foi reconhecido e decidido por outros meios. Veile non discitur – Não se aprende a querer. Efetivamente, os dogmas abstratos não têm influência sobre a virtude ou a bondade de ânimo. As falsas teorias não lhe constituem empecilho, como também, as verdadeiras não lhe dão auxílio. E na verdade seria uma desventura que o ponto essencial da vida humana, o seu valor moral e imortal, dependesse duma coisa cuja aquisição é tão fortuita, dum dogma, duma religião ou dalgum filosofismo. Os dogmas no domínio da moral não têm outro emprego além do que fornecer ao homem que atingiu a virtude, por meio de algum conceito de todo diferente, o que exporemos em breve, ou seja, um esquema, um formulário com o qual se dá conta à própria razão dos atos não egoístas; mas esta prestação de contas, com a qual se quer que a razão se contente, é quase sempre fictícia, porque essa razão, ou seja, o próprio virtuoso, não compreende a natureza íntima de semelhante conduta.

É certo que os dogmas podem exercer a maior influência sobre a conduta, sobre os atos externos e não menos do que o habito e o exemplo (cuja influência depende do fato de o homem vulgar não confiar no próprio discernimento, cuja debilidade sente, mas sim na própria experiência e na dos outros). Mas nada mudam na disposição interna.(1) O conhecimento abstrato não fornece mais do que motivos. Ora, os motivos, como o havemos demonstrado, podem modificar unicamente a direção da vontade e não a vontade em si mesma. O conhecimento comunicável, o ensinamento, não pode agir sobre a vontade senão como motivo. Qualquer que seja, pois, o sentido para que o guiem os dogmas, aquilo que o homem quer realmente, em geral permanece idêntico. Apenas o seu modo de ver, acerca dos meios de atingir o fim, foi modificado, e motivos imaginários o guiarão como motivos reais. Assim, por exemplo, do ponto de vista do valor moral do indivíduo, o resultado é absolutamente o mesmo se ele distribui esmolas consideráveis aos pobres, na firme convicção de que assim será recompensado pelo décuplo na vida futura, ou se emprega a mesma soma em melhorar um fundo que ao cabo de alguns anos lhe dará uma renda maior e mais segura; igualmente aquele que por ortodoxia abandona à fogueira um herege é tão assassino quanto o celerado que o trai por dinheiro; idêntico é o caso, tendo-se conta das intenções, para aquele que degola os turcos na Terra Prometida, quando o faz com a esperança de conseguir assim um lugar no paraíso. Porquanto todos eles não têm cuidado senão de si mesmos, dos seus objetivos, egoístas, precisamente como o supracitado celerado, do qual não diferem senão naquilo que têm de absurdo os meios que empregam. Como dizíamos, por de fora a vontade é acessível unicamente por meio dos motivos. Estes lhe modificam unicamente a maneira com que se manifesta, mas não lhe modificam a substância. Velie non discitur – Não se aprende a querer.

No homem que na prática das boas obras se apoia sobre os dogmas, é preciso distinguir se esses dogmas são verdadeiramente o motivo dos seus atos ou se, como há pouco dizia, são apenas um modo fictício de dar contas bastantes à razão, de ações que derivam duma origem de todo diversa e que ele pratica porque é bom mas que não sabe, todavia, explicar convenientemente, porque não é filósofo, enquanto desejaria, entretanto, formar opinião a propósito. Todavia, a diferença é difícil de ser encontrada, porque o seu princípio existe no foro íntimo do homem. Por isto não podemos, quase nunca, julgar com certeza sobre a moralidade dos atos alheios e raramente dos nossos. Os dogmas, os exemplos e os costumes podem modificar consideravelmente tanto os fatos e as obras dos povos, quanto os dos indivíduos. Mas por si, as obras (opera operata) não são mais do que imagens vazias; o que lhes dá valor moral é a disposição psíquica que as produziu. Esse valor, com efeito, pode ser igual em fenômenos externos bastante diversos. Com o mesmo gravame de perversidade este morrerá na forca e aquele, entretanto, poderá terminar tranquilamente a vida junto dos seus. A mesma maldade pode manifestar-se num povo com ríspidos traços por meio do assassínio e da antropofagia, e noutro com a fina e ligeira miniatura das intrigas cortesãs, das perseguições e refinamentos de toda ordem. Mas o fundo é o mesmo para ambos.

Suponhamos que um Estado, ou mesmo um dogma que fosse objeto de fé absoluta e que ensinasse existirem penas e recompensas além-túmulo, conseguisse impedir qualquer delito. Politicamente o beneficio seria imenso, moralmente nulo: Quando muito se evitaria à vida o ser a cópia fiel da vontade.

A verdadeira bondade de ânimo, a virtude desinteressada, a nobilidade pura, não nascem, portanto, do conhecimento abstrato; é-lhes a origem um conhecimento imediato e intuitivo que não se pode adquirir ou suprimir com palavras; que precisamente por não ser abstrato não pode ser ensinado, mas deve sempre revelar-se de per si; e que para exprimir-se de modo adequado recorre não a discursos, mas aos fatos, à conduta, a toda a maneira de viver. Nós, que aqui nos ocupamos com encontrar a teoria da virtude, e que devemos, portanto, enunciar em fórmula abstrata o fundo desse conhecimento que lhe serve de base, não poderemos jamais apresentar, assim expresso, o conhecimento mesmo, mas apenas o seu conceito; é pois a sua noção abstrata que daremos, partindo sempre da conduta, que é a única em que se torna visível e à qual nos referimos sempre como a sua única expressão adequada. E temos por tarefa comentar e integpretar tal expressão, ou seja, devemos enunciar com fórmula abstrata o fenômeno que se manifesta por meio da conduta.

Antes de passar à bondade propriamente dita, em oposição à maldade, urge falar ainda dum grau intermediário, isto é, da simples negação da maldade, a justiça. Já explicamos suficientemente as noções de justo e de injusto. Bastará, portanto, dizer em poucas palavras, que quem reconhece e respeita esse limite puramente moral que divide o justo do injusto, mesmo quando não é assegurado por alguma lei ou algum poder externo, quem, pois, segundo a nossa explicação, em afirmando a própria vontade, não chega nunca a negar a dos outros – este é justo. Tal homem, para aumentar o próprio bem-estar, nunca fará sofrer o seu semelhante, jamais cometerá um delito e respeitará sempre os direitos e propriedades alheias. Vemos com isto que para o homem justo o princípio de individuação não é mais, como para o malvado, uma barreira de separação absoluta; que aquele não afirma como este unicamente o próprio fenômeno da vontade, negando todos os outros; que as criaturas humanas não são para ele simples fantasmas de essência diferente da sua: toda a sua conduta mostra, ao contrário, que ele reconhece o seu ser, isto é, o querer-viver como coisa em si, no indivíduo estranho que não lhe é dado senão na representação; que se encontra a si mesmo em tal fenômeno ate certo grau, ou seja, até o ponto de não praticar injustiça e de não lesar a ninguém. Sua perspectiva atravessa, então, na mesma medida, o princípio de Individuação, o véu de Maya, no sentido em que ele considera o ser alheio como igual ao seu e não o ofende.

Observando-se bem, encontraremos já na justiça, a este ponto, a resolução tomada de não afirmar a vontade própria ao ponto de negar a vontade alheia, constrangendo esta a servir aquela. Estar-se-á, portanto, sempre disposto a conceder o equivalente do que se reclama. No seu grau supremo, este sentimento de justiça está sempre associado à bondade propriamente dita, cujo caráter não é mais unicamente negativo; e tanto pode ir longe que se comece a duvidar do direito que se possa ter sobre uma propriedade recebida por sucessão; que se não queira mais recorrer senão às próprias forças, espirituais ou físicas, para prover às necessidades do corpo; que se tenham escrúpulos em fazer-se servir pelos outros; que se reprove a si mesmo qualquer luxo; e que finalmente se faça voto de pobreza voluntária. Assim é que vemos Pascal volvido ao ascetismo, não querer mais ser servido por ninguém, conquanto tivesse criados em grande número; preparar o leito a si próprio, apesar do seu constante estado de doença; ir tomar de suas mãos a refeição na cozinha, etc. (Vie de Pascal par sa Soeur.) Na mesma ordem de ideias se conta que muitos Hindus e até mesmo rajás não empregam as imensas fortunas que possuem senão na manutenção da família, da corte e dos servidores e praticam rigorosamente a máxima de nada comer que não hajam semeado e colhido com as próprias mãos. Eu acho, porém, que aqui se parte dum mal-entendido; porquanto um homem, pelo próprio fato de ser rico e poderoso, pode contribuir para o conjunto da sociedade humana em serviços tão consideráveis que equivalham às riquezas herdadas, cujo gozo a sociedade lhe garante. Propriamente falando, a justiça excessiva dos Hindus é mais do que justiça; constitui já a verdadeira renúncia, a negação do querer-viver, o ascetismo, do qual viremos a tratar ainda. Em compensação o puro parasitismo, a existência à custa alheia, por meio da riqueza herdada sem nada produzir por si mesmo, pode já passar por moralmente injusta, ainda que em direito positivo não se lhe encontre o que dizer.

Vimos que o sentimento espontâneo da justiça deriva do fato pelo qual a inteligência vai até a certo ponto além do princípio de individuação, enquanto o homem injusto permanece nele inteiramente imerso. Este discernimento pode alcançar não somente o grau necessário à justiça, como também à maior elevação, a essa elevação que predispõe à benevolência, à beneficência positiva, à caridade. O que pode produzir-se qualquer que seja a força, a energia da vontade no indivíduo. A inteligência poderá sempre fazer-lhe equilíbrio, ensinar-lhe a resistir à tentação de agir injustamente, bem como produzir todos os graus da bondade até à resignação. Não se deve, pois, acreditar que o homem bom seja o fenômeno duma vontade mais fraca que a do mau; pois há nele a inteligência que refreia o cego impulso do querer. Dá-se com frequência o caso de indivíduos que parecem bons unicamente por causa da fraqueza de vontade que se manifesta neles. Mas o que valem bem cedo se revela porque são incapazes de qualquer esforço sobre si mesmos, quando se trata de praticar um ato de justiça ou alguma boa obra.

Como rara exceção poderá apresentar-se um homem que possua, digamos, considerável renda, da qual empregue pequena parte para suas necessidades e dê tudo o mais aos pobres, privando-se de muitos prazeres e divertimentos; mas se procurarmos compreender claramente tal modo de agir, encontraremos, abstração feita de qualquer dogma com que talvez este homem procure explicá-lo racionalmente a si mesmo, que a expressão geral mais simples e o caráter essencial da sua conduta, está em que ele estabelece menos do que se faz comumente uma diferença entre si e os outros. Enquanto para a grande maioria dos homens esta diferença é tal que para o mau a dor alheia é um argumento direto de alegria, e para o injusto um grato meio de prover ao próprio bem-estar; enquanto em geral, a maior parte dos homens vê e conhece de perto criaturas inumeráveis que sofrem, sem se resolver, entretanto, a ir-lhes em auxílio, porque com isto se submeteriam a alguma privação; enquanto assim, para gente de tal jaez, a diferença entre o seu ser e o dos outros é enorme, ela é quase nula para esse nobre coração de que apresentamos a imagem com o pensamento. O princípio de individuação, a forma fenomênica, já não o tem mais tão fortemente sujeito; os alheios sofrimentos o pungem quase como os seus. E segue-se que procura estabelecer o equilíbrio entre si e os outros, renunciando a prazeres e impondo-se privações para aliviar-lhes o mal. Este reconhece que a diferença de si para os outros, diferença que para o malvado parece um largo abismo, não é devida mais do que a um fenômeno passageiro e ilusório. Compreende logo e fora de qualquer raciocínio que o ser em si do seu fenômeno, isto é, esse querer-viver que constitui a essência e o princípio vivificador de tudo, é o mesmo para todos e que tal identidade se estende também aos animais e ao universo inteiro. Por isso, não será visto jamais a atormentar um animal.(2)

A ele, tão impossível lhe seria permitir que deperecesse um pobre, enquanto ele vivesse no luxo e na abundância, quanto o seria a outro qualquer privar-se por todo um dia do nutrir-se, com o único fito, de no dia seguinte, haver mais do que pudesse consumir. Porquanto se volveu transparente o véu de Maya ao olhar do homem caridoso e se desfez a ilusão do princípio de individuação. Este reconhece o seu “ego”, o seu ser, o seu querer em cada criatura e, portanto, em tudo o que sofre. Este compreende, então, quanto é absurdo esse querer-viver que se desconhece a si mesmo: que saboreia numa criatura voluptuosidades efêmeras e ilusórias, para sofrer em outra, dores e misérias; que é carnifice de si mesmo e qual novo Thestes não vê que se nutre da própria carne; que por um lado geme sob dissabores não merecidos e, por outro, sem temer a Nemésis, pratica todos os delitos. E isto sempre e unicamente porque não se reconhece no fenômeno alheio, porque não vê a justiça eterna, e porque, escravo do princípio de individuação, fica para sempre subjugado a esse modo de conhecimento que é feito pelo princípio de razão. Praticar a caridade e as boas obras é libertar-se das ilusões e das miragens de Maya. E amar a humanidade é o sintoma inseparável de tal conhecimento.

O remorso, de que anteriormente explicamos a origem e o significado, tem, por oposto, a boa consciência, a satisfação oriunda das ações desinteressadas. Tal contentamento nasce do momento em que uma boa obra, como resulta do conhecimento que nos demonstrou a identidade do nosso ser com os fenômenos estranhos, é, ao mesmo tempo uma confirmação de tal conhecimento o qual nos atesta que o nosso verdadeiro ego não está somente em nossa pessoa, a qual é um fenômeno isolado, mas sim em tudo quanto existe. Esta certeza alarga o coração, enquanto o egoísmo o restringe. O egoísmo concentra o nosso interesse sobre o fenômeno isolado da nossa pessoa e então o intelecto nos mostra sem trégua, os perigos inumeráveis que a ameaçam e produz, em nós, uma disposição inquieta e cheia de cuidados; enquanto a convicção de que o mesmo ser anima tudo o que vive, tanto quanto a nossa pessoa, dilata-nos a simpatia, levando-a para tudo em que palpita a vida e alegrando-nos o coração. Diminuindo o interesse pelo nosso ego, essa convicção prende-se pela raiz e tempera a nossa ansiedade. Disto deriva a serenidade calma e confiante que dão a fisionomia o caráter virtuoso e a boa consciência e tal expressão ressalta melhor depois duma boa ação, porque esta vem consolidar a base da nossa disposição psíquica. O egoísta sente-se cercado por estranhos e inimigos e toda a esperança se lhe funda no próprio bem-estar. O bondoso vive num mundo povoado por amigos. O bem-estar destes últimos é também o seu. Portanto, embora o conhecimento dos destinos humanos, em geral, não seja de molde a alegrá-lo, a firme convicção de encontrar o próprio ser em todas as criaturas viventes dá ao seu humor certa uniformidade e até alegria. Porquanto o interesse estendido sobre inumeráveis indivíduos não pode inquietar como quando se concentra sobre um só fenômeno. As vicissitudes que se derramam sobre a totalidade dos seres se compensam, enquanto as que dizem respeito a um só homem produzem necessariamente felicidade ou desventura.

Muitos outros, até o dia de hoje, estabeleceram princípios de moral, que apresentaram como preceitos de virtude ou como leis a que é preciso obedecer necessariamente. Eu, como já disse, não posso fazer outro tanto, porque não tenho lei, nem dever a impor a uma vontade eternamente livre. Mas em compensação, no encadeamento das minhas considerações enunciei uma verdade puramente teórica, da qual o conjunto desta obra é o desenvolvimento necessário, e que pode, em certa medida, ser tomada como para exercer missão análoga à dos princípios de moral aos quais fazia alusão pouco acima. Esta verdade é que a vontade constitui o em si de todo fenômeno, mas que ela mesma, enquanto é vontade pura, permanece liberta das formas do fenômeno e por consequência da multiplicidade. Se a aplico à conduta, não encontro, para exprimir esta verdade, fórmula mais elevada que a dos Vedas, que eu já citei: Tat twam asi! Isto és tu! Quem estiver em condições de, com toda a clareza de conhecimento e com toda a firmeza de convicção, pronunciá-la sobre qualquer criatura com que se ache em contato, esse pode estar certo de que possui com isso a fonte de toda a virtude e de toda a bem-aventurança e de que está na estrada que leva direito à salvação.

Antes de continuar e de fazer ver, qual conclusão de quanto havemos exposto, como o amor, cuja origem e essência encontramos na inteligência que penetra para além do princípio de individuação, conduz à redenção, ao abandono completo do querer-viver, ou seja de qualquer querer em geral, e como outro caminho, menos doce, porém, mais batido, conduz o homem ao mesmo resultado, devo ainda estabelecer e explicar uma proposição paradoxal, não porque paradoxal, mas sim porque verdadeira, e porque completará o pensamento que tenho de expor. Tal máxima é a seguinte: “Todo amor, cantas, é piedade”. (http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/representacao4.html)

Lúcia Peixoto
Filósofa, Professora de Filosofia,
Poeta, Artesã, Bacharel em Ciências da Religião,
Licenciada e Pós Graduada em Filosofia,
Pós-graduanda em Arteterapia
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