Sobre a História do Brasil: Estão reescrevendo ao contrário!
Eu nesta minha mania de poetizar
Quis hoje olhar para a nossa história
Compor uns versinhos rimados
Fiquei a imaginar quão belas foram as histórias
Vividas por essas terras antes da invasão europeia
Guardadas pelas matas fechadas
Banhadas nas nascente dos rios
Tendo como plateia o sol escaldante
Outras vezes as estrelas e a lua!
Imagino Pajés cientistas
Fazendo remédio de mato
Cacique organizando seu povo
Guerreiros se pintando pra caça e pra guerra
Iracemas aos milhares
Tão belas e livres como as jaguar e as cotovias
Evas antes da maça virar falsa ciência!
E a inocência virar pecado
Tanto paradoxo que mal cabem num só poema
Dividirei então a minha prosa em duas partes
Transcrevendo um dos dos primeiros documentos
(Carta de Caminha)
Sobre essa terra chamada primeiro de Ilha
Depois de Santa Cruz
Por fim Brasil!*
Depois de escrita a brilhante Carta
Sob a Égide da Cruz
Empunhada por Bandeirantes
Tudo por aqui foi profanado
O Guerreiro perseguido e aprisionado
A índia violada no seu corpo e na sua´lma
As florestas devastadas para roubar Pau Brasil
E colorir (da cor de sangue) as roupas do mundo "civilizado".
Vermelho também era o sangue que tingiu os navios negreiros
Homens, mulheres e crianças sequestrados e aqui escravizados
Sonhos e vidas usurpadas
Tudo em nome da "Ordem e do Progresso"
Escrito bem no centro da bandeira da nossa pátria
No lugar do nativo livre o africano escravo
As florestas deram lugar ao plantio do café e da cana
Do tronco se ouviu mais que o gemido
A voz do chicote foi respondida com o som do atabaque
E nos terreiros se viu orixás dançar
E muito capitão do mato na capoeira tombar
Em Palmares e por todo o território
Se ergueu Quilombos
A resistência forçou a princesa a assinar a lei Áurea
(ainda que fosse uma farsa)
Precedeu a Independência
(que ao povo não libertou)
E o Brasil virou República
Escreveu uma Carta Magna
A democracia foi exaltada
Depois pelos Militares amordaçada
O povo pegou em armas
Mais sangue inocente foi derramado
Vidas ceifadas
Mas as fardas recuaram
Teve Assembleia Constituinte
E muitos direitos foram assegurados
Partidos Políticos foram fundados
A sociedade se organizou em entidades e sindicatos
O Brasil foi chamado de emergente
Pagou a Dívida Externa
Fez programas para erradicar a miséria
Investiu em educação (Não o bastante é verdade)
Ampliou vagas nas Universidades
Parecia caminhar para o futuro
... ... ...
Foi quando apareceu Um Pato Inflável
Grande gordo alimentado pelos ricos empresários
E o kuá, kuá, kuá capitalista subjugou a consciência de classe
Lá se foi a democracia
Tomaram o poder
Não por força de armas bélicas
Pela mais perigosa de todas as armas
A ideologia excludente e reacionária.
Com o lema "uma ponte para o futuro"
Vimos (não caladas)
Nossa história sendo arbitrariamente
Reescrita ao contrário!
Quis hoje olhar para a nossa história
Compor uns versinhos rimados
Fiquei a imaginar quão belas foram as histórias
Vividas por essas terras antes da invasão europeia
Guardadas pelas matas fechadas
Banhadas nas nascente dos rios
Tendo como plateia o sol escaldante
Outras vezes as estrelas e a lua!
Imagino Pajés cientistas
Fazendo remédio de mato
Cacique organizando seu povo
Guerreiros se pintando pra caça e pra guerra
Iracemas aos milhares
Tão belas e livres como as jaguar e as cotovias
Evas antes da maça virar falsa ciência!
E a inocência virar pecado
Tanto paradoxo que mal cabem num só poema
Dividirei então a minha prosa em duas partes
Transcrevendo um dos dos primeiros documentos
(Carta de Caminha)
Sobre essa terra chamada primeiro de Ilha
Depois de Santa Cruz
Por fim Brasil!*
Depois de escrita a brilhante Carta
Sob a Égide da Cruz
Empunhada por Bandeirantes
Tudo por aqui foi profanado
O Guerreiro perseguido e aprisionado
A índia violada no seu corpo e na sua´lma
As florestas devastadas para roubar Pau Brasil
E colorir (da cor de sangue) as roupas do mundo "civilizado".
Vermelho também era o sangue que tingiu os navios negreiros
Homens, mulheres e crianças sequestrados e aqui escravizados
Sonhos e vidas usurpadas
Tudo em nome da "Ordem e do Progresso"
Escrito bem no centro da bandeira da nossa pátria
No lugar do nativo livre o africano escravo
As florestas deram lugar ao plantio do café e da cana
Do tronco se ouviu mais que o gemido
A voz do chicote foi respondida com o som do atabaque
E nos terreiros se viu orixás dançar
E muito capitão do mato na capoeira tombar
Em Palmares e por todo o território
Se ergueu Quilombos
A resistência forçou a princesa a assinar a lei Áurea
(ainda que fosse uma farsa)
Precedeu a Independência
(que ao povo não libertou)
E o Brasil virou República
Escreveu uma Carta Magna
A democracia foi exaltada
Depois pelos Militares amordaçada
O povo pegou em armas
Mais sangue inocente foi derramado
Vidas ceifadas
Mas as fardas recuaram
Teve Assembleia Constituinte
E muitos direitos foram assegurados
Partidos Políticos foram fundados
A sociedade se organizou em entidades e sindicatos
O Brasil foi chamado de emergente
Pagou a Dívida Externa
Fez programas para erradicar a miséria
Investiu em educação (Não o bastante é verdade)
Ampliou vagas nas Universidades
Parecia caminhar para o futuro
... ... ...
Foi quando apareceu Um Pato Inflável
Grande gordo alimentado pelos ricos empresários
E o kuá, kuá, kuá capitalista subjugou a consciência de classe
Lá se foi a democracia
Tomaram o poder
Não por força de armas bélicas
Pela mais perigosa de todas as armas
A ideologia excludente e reacionária.
Com o lema "uma ponte para o futuro"
Vimos (não caladas)
Nossa história sendo arbitrariamente
Reescrita ao contrário!
*Carta de Pero Vaz de Caminha
Senhor,
posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os
outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa
terra nova, que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar
disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para
o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer!
Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa
vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há
de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Da marinhagem e das singraduras do caminho não darei aqui
conta a Vossa Alteza -- porque o não saberei fazer -- e os pilotos devem ter
este cuidado.
E portanto, Senhor, do que hei de falar começo:
E digo quê:
A partida de Belém foi -- como Vossa Alteza sabe, segunda-feira
9 de março. E sábado, 14 do dito mês, entre as 8 e 9 horas, nos achamos entre
as Canárias, mais perto da Grande Canária. E ali andamos todo aquele dia em
calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês,
às dez horas mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, a saber da
ilha de São Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.
Na noite seguinte à segunda-feira amanheceu, se perdeu da
frota Vasco de Ataíde com a sua nau, sem haver tempo forte ou contrário para
poder ser !
Fez o capitão suas diligências para o achar, em umas e
outras partes. Mas... não apareceu mais !
E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo,
até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos
alguns sinais de terra, estando da dita Ilha -- segundo os pilotos diziam, obra
de 660 ou 670 léguas -- os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a
que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de
rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam
furabuchos.
Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de
terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de
outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos;
ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de
Vera Cruz!
Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças. E ao
sol-posto umas seis léguas da terra, lançamos ancoras, em dezenove braças --
ancoragem limpa. Ali ficamo-nos toda aquela noite. E quinta-feira, pela manhã,
fizemos vela e seguimos em direitura à terra, indo os navios pequenos diante --
por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, doze, nove braças -- até meia légua
da terra, onde todos lançamos ancoras, em frente da boca de um rio. E
chegaríamos a esta ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos.
E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete
ou oito, segundo disseram os navios pequenos que chegaram primeiro.
Então lançamos fora os batéis e esquifes. E logo vieram
todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor. E ali falaram. E o
Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele
começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de
maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou
vinte.
Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas
vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em
direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E
eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que
aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete
vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E
um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma
copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um
ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer de aljôfar, as
quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às
naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.
À noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que
fez caçar as naus. E especialmente a Capitaina. E sexta pela manhã, às oito
horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar
ancoras e fazer vela. E fomos de longo da costa, com os batéis e esquifes
amarrados na popa, em direção norte, para ver se achávamos alguma abrigada e
bom pouso, onde nós ficássemos, para tomar água e lenha. Não por nos já
minguar, mas por nos prevenirmos aqui. E quando fizemos vela estariam já na
praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam
juntado ali aos poucos. Fomos ao longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos
que fossem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que
amainassem.
E velejando nós pela costa, na distância de dez léguas do
sítio onde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife
com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E
meteram-se dentro e amainaram. E as naus foram-se chegando, atrás deles. E um
pouco antes de sol-pôsto amainaram também, talvez a uma légua do recife, e
ancoraram a onze braças.
E estando Afonso Lopez, nosso piloto, em um daqueles
navios pequenos, foi, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para
isso, meter-se logo no esquife a sondar o porto dentro. E tomou dois daqueles
homens da terra que estavam numa almadia: mancebos e de bons corpos. Um deles
trazia um arco, e seis ou sete setas. E na praia andavam muitos com seus arcos
e setas; mas não os aproveitou. Logo, já de noite, levou-os à Capitaina, onde
foram recebidos com muito prazer e festa.
A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de
bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem
fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de
mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de
baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão
travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador.
Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço
e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte
que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber.
Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de
tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza, rapados todavia por
cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na
parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de ave amarela, que seria do
comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as
orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda
como, de maneira tal que a cabeleira era mui redonda e mui basta, e mui igual,
e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma
cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro,
mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau
Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no
chão, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de
cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou
o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e
depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E
também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e
novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata!
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz
consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse
ali.
Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.
Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e
não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos,
fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e se
provavam alguma coisa, logo a lançavam fora.
Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca;
não gostaram dele nada, nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o
seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram as bocas e lançaram-na fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal
que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois
tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava para a terra e novamente para
as contas e para o colar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos!
Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não
queríamos nós entender, por que lho não havíamos de dar! E depois tornou as
contas a quem lhas dera. E então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir
sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas;
e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas.
O Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cada um seu
coxim; e o da cabeleira esforçava-se por não a estragar. E deitaram um manto
por cima deles; e consentindo, aconchegaram-se e adormeceram.
Sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, fomos
demandar a entrada, a qual era mui larga e tinha seis a sete braças de fundo. E
entraram todas as naus dentro, e ancoraram em cinco ou seis braças --
ancoradouro que é tão grande e tão formoso de dentro, e tão seguro que podem
ficar nele mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus foram
distribuídas e ancoradas, vieram os capitães todos a esta nau do Capitão-mor. E
daqui mandou o Capitão que Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias fossem em terra e
levassem aqueles dois homens, e os deixassem ir com seu arco e setas, aos quais
mandou dar a cada um uma camisa nova e uma carapuça vermelha e um rosário de
contas brancas de osso, que foram levando nos braços, e um cascavel e uma campainha.
E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de dom João
Telo, de nome Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e
maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha
direitos à praia. Ali acudiram logo perto de duzentos homens, todos nus, com
arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levamos acenaram-lhes que se afastassem
e depusessem os arcos. E eles os depuseram. Mas não se afastaram muito. E mal
tinham pousado seus arcos quando saíram os que nós levávamos, e o mancebo
degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas
antes corriam a quem mais correria. E passaram um rio que aí corre, de água
doce, de muita água que lhes dava pela braga. E muitos outros com eles. E foram
assim correndo para além do rio entre umas moitas de palmeiras onde estavam
outros. E ali pararam. E naquilo tinha ido o degredado com um homem que, logo
ao sair do batel, o agasalhou e levou até lá. Mas logo o tornaram a nós. E com
ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.
E então se começaram de chegar muitos; e entravam pela
beira do mar para os batéis, até que mais não podiam. E traziam cabaças d'água,
e tomavam alguns barris que nós levávamos e enchiam-nos de água e traziam-nos
aos batéis. Não que eles de todo chegassem a bordo do batel. Mas junto a ele,
lançavam-nos da mão. E nós tomávamo-los. E pediam que lhes dessem alguma coisa.
Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava
um cascavel, e a outros uma manilha, de maneira que com aquela encarna quase
que nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas em troca de
sombreiros e carapuças de linho, e de qualquer coisa que a gente lhes queria
dar.
Dali se partiram os outros, dois mancebos, que não os
vimos mais.
Dos que ali andavam, muitos -- quase a maior parte
--traziam aqueles bicos de osso nos beiços.
E alguns, que andavam sem eles, traziam os beiços furados
e nos buracos traziam uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha. E
alguns deles traziam três daqueles bicos, a saber um no meio, e os dois nos
cabos.
E andavam lá outros, quartejados de cores, a saber metade
deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, um tanto azulada; e outros
quartejados d'escaques.
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas
e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas,
tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito
bem olharmos, não se envergonhavam.
Ali por então não houve mais fala ou entendimento com
eles, por a barbana deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém.
Acenamos-lhes que se fossem. E assim o fizeram e passaram-se para além do rio.
E saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos
barris d'água que nós levávamos. E tornamo-nos às naus. E quando assim
vínhamos, acenaram-nos que voltássemos. Voltamos, e eles mandaram o degredado e
não quiseram que ficasse lá com eles, o qual levava uma bacia pequena e duas ou
três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não
trataram de lhe tirar coisa alguma, antes mandaram-no com tudo. Mas então
Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, que lhe desse aquilo. E ele tornou e
deu aquilo, em vista de nós, a aquele que o da primeira agasalhara. E então
veio-se, e nós levamo-lo.
Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por
galanteria, cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia seteado como São
Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; e outros, de vermelhas;
e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima,
daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão
graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições
envergonhara, por não terem as suas como ela. Nenhum deles era fanado, mas
todos assim como nós.
E com isto nos tornamos, e eles foram-se.
À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós
outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, perto da praia. Mas
ninguém saiu em terra, por o Capitão o não querer, apesar de ninguém estar
nela. Apenas saiu -- ele com todos nós -- em um ilhéu grande que está na baía,
o qual, aquando baixamar, fica mui vazio. Com tudo está de todas as partes
cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado.
Ali folgou ele, e todos nós, bem uma hora e meia. E pescaram lá, andando alguns
marinheiros com um chinchorro; e mataram peixe miúdo, não muito. E depois
volvemo-nos às naus, já bem noite.
Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão
ir ouvir missa e sermão naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se
arranjassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar um
pavilhão naquele ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com
todos nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz
entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que
todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com
muito prazer e devoção.
Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que
saíra de Belém, a qual esteve sempre bem alta, da parte do Evangelho.
Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma
cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e
proveitosa pregação, da história evangélica; e no fim tratou da nossa vida, e
do achamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob cuja obediência viemos, que
veio muito a propósito, e fez muita devoção.
Enquanto assistimos à missa e ao sermão, estaria na praia
outra tanta gente, pouco mais ou menos, como a de ontem, com seus arcos e
setas, e andava folgando. E olhando-nos, sentaram. E depois de acabada a missa,
quando nós sentados atendíamos a pregação, levantaram-se muitos deles e
tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns
deles se metiam em almadias -- duas ou três que lá tinham -- as quais não são
feitas como as que eu vi; apenas são três traves, atadas juntas. E ali se
metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da
terra, só até onde podiam tomar pé.
Acabada a pregação encaminhou-se o Capitão, com todos
nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos indo todos em
direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo na
dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de
uma almadia que lhes o mar levara, para o entregar a eles. E nós todos trás
dele, a distância de um tiro de pedra.
Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo
todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem
os arcos e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não os punham.
Andava lá um que falava muito aos outros, que se
afastassem. Mas não já que a mim me parecesse que lhe tinham respeito ou medo.
Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas. Estava tinto de
tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris, coxas e pernas até
baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a
tintura era tão vermelha que a água lha não comia nem desfazia. Antes, quando
saía da água, era mais vermelho. Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e
andava no meio deles, sem implicarem nada com ele, e muito menos ainda pensavam
em fazer-lhe mal. Apenas lhe davam cabaças d'água; e acenavam aos do esquife
que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão. E
viemo-nos às naus, a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem os mais
constranger. E eles tornaram-se a sentar na praia, e assim por então ficaram.
Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e sermão, espraia
muito a água e descobre muita areia e muito cascalho. Enquanto lá estávamos
foram alguns buscar marisco e não no acharam. Mas acharam alguns camarões
grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande e muito grosso; que em
nenhum tempo o vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e de amêijoas,
mas não toparam com nenhuma peça inteira. E depois de termos comido vieram logo
todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se
aportou; e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a
nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a
melhor mandar descobrir e saber dela mais do que nós podíamos saber, por irmos
na nossa viagem.
E entre muitas falas que sobre o caso se fizeram foi
dito, por todos ou a maior parte, que seria muito bem. E nisto concordaram. E
logo que a resolução foi tomada, perguntou mais, se seria bem tomar aqui por
força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui em
lugar deles outros dois destes degredados.
E concordaram em que não era necessário tomar por força
homens, porque costume era dos que assim à força levavam para alguma parte
dizerem que há de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor
informação da terra dariam dois homens desses degredados que aqui deixássemos
do que eles dariam se os levassem por ser gente que ninguém entende. Nem eles
cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor
estoutros o não digam quando cá Vossa Alteza mandar.
E que portanto não cuidássemos de aqui por força tomar
ninguém, nem fazer escândalo; mas sim, para os de todo amansar e apaziguar,
unicamente de deixar aqui os dois degredados quando daqui partíssemos.
E assim ficou determinado por parecer melhor a todos.
Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em
terra. E ver-se-ia bem, quejando era o rio. Mas também para folgarmos.
Fomos todos nos batéis em terra, armados; e a bandeira
conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e,
antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e
acenaram que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra,
passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais ancho que um jogo de
mancal. E tanto que desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e
meteram-se entre eles. E alguns aguardavam; e outros se afastavam. Com tudo, a
coisa era de maneira que todos andavam misturados. Eles davam desses arcos com
suas setas por sombreiros e carapuças de linho, e por qualquer coisa que lhes
davam. Passaram além tantos dos nossos e andaram assim misturados com eles, que
eles se esquivavam, e afastavam-se; e iam alguns para cima, onde outros
estavam. E então o Capitão fez que o tomassem ao colo dois homens e passou o
rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que aquela do
costume. Mas logo que o Capitão chamou todos para trás, alguns se chegaram a
ele, não por o reconhecerem por Senhor, mas porque a gente, nossa, já passava
para aquém do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas, daquelas já
ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, de tal maneira que os nossos
levavam dali para as naus muitos arcos, e setas e contas.
E então tornou-se o Capitão para aquém do rio. E logo
acudiram muitos à beira dele.
Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e
quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam
bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas,
não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho até o quadril
e a nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor
natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os
colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim
descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma.
Também andava lá outra mulher, nova, com um menino ou
menina, atado com um pano aos peitos, de modo que não se lhe viam senão as
perninhas. Mas nas pernas da mãe, e no resto, não havia pano algum.
Em seguida o Capitão foi subindo ao longo do rio, que
corre rente à praia. E ali esperou por um velho que trazia na mão uma pá de
almadia. Falou, enquanto o Capitão estava com ele, na presença de todos nós;
mas ninguém o entendia, nem ele a nós, por mais coisas que a gente lhe
perguntava com respeito a ouro, porque desejávamos saber se o havia na terra.
Trazia este velho o beiço tão furado que lhe cabia pelo
buraco um grosso dedo polegar. E trazia metido no buraco uma pedra verde, de
nenhum valor, que fechava por fora aquele buraco. E o Capitão lha fez tirar. E
ele não sei que diabo falava e ia com ela para a boca do Capitão para lha
meter. Estivemos rindo um pouco e dizendo chalaças sobre isso. E então
enfadou-se o Capitão, e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um
sombreiro velho; não por ela valer alguma coisa, mas para amostra. E depois
houve-a o Capitão, creio, para mandar com as outras coisas a Vossa Alteza.
Andamos por aí vendo o ribeiro, o qual é de muita água e
muito boa. Ao longo dele há muitas palmeiras, não muito altas; e muito bons
palmitos. Colhemos e comemos muitos deles.
Depois tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio,
onde tínhamos desembarcado.
E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando,
uns diante os outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se
então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o
qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua
gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e
riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali
muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles
espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo os segurou e afagou
muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais montezes, e foram-se para
cima.
E então passou o rio o Capitão com todos nós, e fomos
pela praia, de longo, ao passo que os batéis iam rentes à terra. E chegamos a
uma grande lagoa de água doce que está perto da praia, porque toda aquela
ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares.
E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles
meter-se entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um
tubarão que Bartolomeu Dias matou. E levavam-lho; e lançou-o na praia.
Bastará que até aqui, como quer que se lhes em alguma
parte amansassem, logo de uma mão para outra se esquivavam, como pardais do
cevadouro. Ninguém não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais. E
tudo se passa como eles querem -- para os bem amansarmos !
Ao velho com quem o Capitão havia falado, deu-lhe uma
carapuça vermelha. E com toda a conversa que com ele houve, e com a carapuça
que lhe deu tanto que se despediu e começou a passar o rio, foi-se logo
recatando. E não quis mais tornar do rio para aquém. Os outros dois o Capitão
teve nas naus, aos quais deu o que já ficou dito, nunca mais aqui apareceram --
fatos de que deduzo que é gente bestial e de pouco saber, e por isso tão
esquiva. Mas apesar de tudo isso andam bem curados, e muito limpos. E naquilo
ainda mais me convenço que são como aves, ou alimárias montezinhas, as quais o
ar faz melhores penas e melhor cabelo que às mansas, porque os seus corpos são
tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode ser mais! E isto me faz
presumir que não tem casas nem moradias em que se recolham; e o ar em que se
criam os faz tais. Nós pelo menos não vimos até agora nenhumas casas, nem coisa
que se pareça com elas.
Mandou o Capitão aquele degredado, Afonso Ribeiro, que se
fosse outra vez com eles. E foi; e andou lá um bom pedaço, mas a tarde
regressou, que o fizeram eles vir: e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe
arcos e setas; e não lhe tomaram nada do seu. Antes, disse ele, que lhe tomara
um deles umas continhas amarelas que levava e fugia com elas, e ele se queixou
e os outros foram logo após ele, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então
mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de
rama verde e de feteiras muito grandes, como as de Entre Douro e Minho. E assim
nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.
Segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a
tomar água. Ali vieram então muitos; mas não tantos como as outras vezes. E
traziam já muito poucos arcos. E estiveram um pouco afastados de nós; mas
depois pouco a pouco misturaram-se conosco; e abraçavam-nos e folgavam; mas
alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e
por alguma carapucinha velha e por qualquer coisa. E de tal maneira se passou a
coisa que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles para onde
outros muitos deles estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos
arcos e barretes de penas de aves, uns verdes, outros amarelos, dos quais creio
que o Capitão há de mandar uma amostra a Vossa Alteza.
E segundo diziam esses que lá tinham ido, brincaram com
eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos
quase todos misturados: uns andavam quartejados daquelas tinturas, outros de
metades, outros de tanta feição como em pano de ras, e todos com os beiços
furados, muitos com os ossos neles, e bastantes sem ossos. Alguns traziam uns
ouriços verdes, de árvores, que na cor queriam parecer de castanheiras, embora
fossem muito mais pequenos. E estavam cheios de uns grãos vermelhos, pequeninos
que, esmagando-se entre os dedos, se desfaziam na tinta muito vermelha de que
andavam tingidos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.
Todos andam rapados até por cima das orelhas; assim mesmo
de sobrancelhas e pestanas.
Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de
tintura preta, que parece uma fita preta da largura de dois dedos.
E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a
outros dois degredados que fossem meter-se entre eles; e assim mesmo a Diogo
Dias, por ser homem alegre, com que eles folgavam. E aos degredados ordenou que
ficassem lá esta noite.
Foram-se lá todos; e andaram entre eles. E segundo depois
diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez
casas, as quais diziam que eram tão compridas, cada uma, como esta nau
capitaina. E eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de
razoável altura; e todas de um só espaço, sem repartição alguma, tinham de
dentro muitos esteios; e de esteio a esteio uma rede atada com cabos em cada
esteio, altas, em que dormiam. E de baixo, para se aquentarem, faziam seus
fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma numa extremidade, e outra na
oposta. E diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e
que assim os encontraram; e que lhes deram de comer dos alimentos que tinham, a
saber muito inhame, e outras sementes que na terra dá, que eles comem. E como
se fazia tarde fizeram-nos logo todos tornar; e não quiseram que lá ficasse
nenhum. E ainda, segundo diziam, queriam vir com eles. Resgataram lá por
cascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos,
muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos, e carapuças de penas
verdes, e um pano de penas de muitas cores, espécie de tecido assaz belo,
segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de
mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e nós tornamo-nos às naus.
Terça-feira, depois de comer, fomos em terra, fazer
lenha, e para lavar roupa. Estavam na praia, quando chegamos, uns sessenta ou
setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se
esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos.
E misturaram-se todos tanto conosco que uns nos ajudavam a acarretar lenha e
metê-las nos batéis. E lutavam com os nossos, e tomavam com prazer. E enquanto
fazíamos a lenha, construíam dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que se
ontem para isso cortara. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E
creio que o faziam mais para verem a ferramenta de ferro com que a faziam do
que para verem a cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam
sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas
talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, porque lhas viram lá.
Era já a conversação deles conosco tanta que quase nos estorvavam no que
havíamos de fazer.
E o Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que
fossem lá à aldeia e que de modo algum viessem a dormir às naus, ainda que os
mandassem embora. E assim se foram.
Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha,
atravessavam alguns papagaios essas árvores; verdes uns, e pardos, outros,
grandes e pequenos, de sorte que me parece que haverá muitos nesta terra.
Todavia os que vi não seriam mais que nove ou dez, quando muito. Outras aves
não vimos então, a não ser algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me maiores
bastante do que as de Portugal. Vários diziam que viram rolas, mas eu não as
vi. Todavia segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infinitas
espécies, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!
E cerca da noite nós volvemos para as naus com nossa
lenha.
Eu creio, Senhor, que não dei ainda conta aqui a Vossa
Alteza do feitio de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, e as
setas compridas; e os ferros delas são canas aparadas, conforme Vossa Alteza
verá alguns que creio que o Capitão a Ela há de enviar.
Quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou
todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que
cada um podia levar. Eles acudiram à praia, muitos, segundo das naus vimos. Seriam
perto de trezentos, segundo Sancho de Tovar que para lá foi. Diogo Dias e
Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem ordenara que de toda
maneira lá dormissem, tinham voltado já de noite, por eles não quererem que lá
ficassem. E traziam papagaios verdes; e outras aves pretas, quase como pegas,
com a diferença de terem o bico branco e rabos curtos. E quando Sancho de Tovar
recolheu à nau, queriam vir com ele, alguns; mas ele não admitiu senão dois
mancebos, bem dispostos e homens de prol. Mandou pensar e curá-los mui bem essa
noite. E comeram toda a ração que lhes deram, e mandou dar-lhes cama de
lençóis, segundo ele disse. E dormiram e folgaram aquela noite. E não houve
mais este dia que para escrever seja.
Quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase
pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E em querendo o Capitão
sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda
não ter comido, puseram-lhe toalhas, e veio-lhe comida. E comeu. Os hóspedes, sentaram-no
cada um em sua cadeira. E de tudo quanto lhes deram, comeram mui bem,
especialmente lacão cozido frio, e arroz. Não lhes deram vinho por Sancho de
Tovar dizer que o não bebiam bem.
Acabado o comer, metemo-nos todos no batel, e eles
conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem
revolta. E logo que a tomou meteu-a no beiço; e porque se lhe não queria
segurar, deram-lhe uma pouca de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço da
parte de trás de sorte que segurasse, e meteu-a no beiço, assim revolta para
cima; e ia tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que
saímos em terra, foi-se logo com ela. E não tornou a aparecer lá.
Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de
aí a pouco começaram a vir. E parece-me que viriam este dia a praia
quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Alguns deles traziam arcos e setas; e
deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam
conosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o
não podiam beber. Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de
boa vontade! Andavam todos tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas
pinturas que agradavam. Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas
vontades, e levavam-na aos batéis. E estavam já mais mansos e seguros entre nós
do que nós estávamos entre eles.
Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este
arvoredo até um ribeiro grande, e de muita água, que ao nosso parecer é o mesmo
que vem ter à praia, em que nós tomamos água. Ali descansamos um pedaço,
bebendo e folgando, ao longo dele, entre esse arvoredo que é tanto e tamanho e
tão basto e de tanta qualidade de folhagem que não se pode calcular. Há lá
muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons palmitos.
Ao sairmos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos
em direitura à cruz que estava encostada a uma árvore, junto ao rio, a fim de
ser colocada amanhã, sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a
beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. E a
esses dez ou doze que lá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo
foram todos beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência que, se nós
entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não
têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os
degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não
duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e
hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque
certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente
neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu
bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer
creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja
acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a
Deus que com pouco trabalho seja assim!
Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca,
cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao
viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas
sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais
e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes
comemos.
Nesse dia, enquanto ali andavam, dançaram e bailaram
sempre com os nossos, ao som de um tamboril nosso, como se fossem mais amigos
nossos do que nós seus. Se lhes a gente acenava, se queriam vir às naus,
aprontavam-se logo para isso, de modo tal, que se os convidáramos a todos,
todos vieram. Porém não levamos esta noite às naus senão quatro ou cinco; a
saber, o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um que já trazia por pagem; e
Aires Gomes a outro, pagem também. Os que o Capitão trazia, era um deles um dos
seus hóspedes que lhe haviam trazido a primeira vez quando aqui chegamos -- o
qual veio hoje aqui vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta
noite mui bem agasalhados tanto de comida como de cama, de colchões e lençóis,
para os mais amansar.
E hoje que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela
manhã, saímos em terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio,
contra o sul onde nos pareceu que seria melhor arvorar a cruz, para melhor ser
vista. E ali marcou o Capitão o sítio onde haviam de fazer a cova para a
fincar. E enquanto a iam abrindo, ele com todos nós outros fomos pela cruz, rio
abaixo onde ela estava. E com os religiosos e sacerdotes que cantavam, à
frente, fomos trazendo-a dali, a modo de procissão. Eram já aí quantidade
deles, uns setenta ou oitenta; e quando nos assim viram chegar, alguns se foram
meter debaixo dela, ajudar-nos. Passamos o rio, ao longo da praia; e fomos
colocá-la onde havia de ficar, que será obra de dois tiros de besta do rio.
Andando-se ali nisto, viriam bem cento cinqüenta, ou mais. Plantada a cruz, com
as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram
altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e
oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta
ou sessenta deles, assentados todos de joelho assim como nós. E quando se veio
ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se
levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim até se chegar ao fim; e
então tornaram-se a assentar, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos
pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos, com as mãos
levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos
fez muita devoção.
Estiveram assim conosco até acabada a comunhão; e depois
da comunhão, comungaram esses religiosos e sacerdotes; e o Capitão com alguns
de nós outros. E alguns deles, por o Sol ser grande, levantaram-se enquanto
estávamos comungando, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de
cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, se conservou ali com aqueles que ficaram.
Esse, enquanto assim estávamos, juntava aqueles que ali tinham ficado, e ainda
chamava outros. E andando assim entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo
para o altar, e depois mostrou com o dedo para o céu, como se lhes dissesse
alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos!
Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima, e
ficou na alva; e assim se subiu, junto ao altar, em uma cadeira; e ali nos
pregou o Evangelho e dos Apóstolos cujo é o dia, tratando no fim da pregação
desse vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, que nos causou mais devoção.
Esses que estiveram sempre à pregação estavam assim como
nós olhando para ele. E aquele que digo, chamava alguns, que viessem ali.
Alguns vinham e outros iam-se; e acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho
muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda.
E houveram por bem que lançassem a cada um sua ao pescoço. Por essa causa se
assentou o padre frei Henrique ao pé da cruz; e ali lançava a sua a todos -- um
a um -- ao pescoço, atada em um fio, fazendo-lha primeiro beijar e levantar as
mãos. Vinham a isso muitos; e lançavam-nas todas, que seriam obra de quarenta
ou cinqüenta. E isto acabado -- era já bem uma hora depois do meio dia -- viemos
às naus a comer, onde o Capitão trouxe consigo aquele mesmo que fez aos outros
aquele gesto para o altar e para o céu, (e um seu irmão com ele). A aquele fez
muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca; e ao outro uma camisa destoutras.
E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não
lhes falece outra coisa para ser toda cristã, do que entenderem-nos, porque
assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos; por onde pareceu a
todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza
aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e
convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe
logo de vir clérigo para os batizar; porque já então terão mais conhecimentos
de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje
também comungaram.
Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma
mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano com que se
cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava
de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é
tal que a de Adão não seria maior -- com respeito ao pudor.
Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive se se
convertera, ou não, se lhe ensinarem o que pertence à sua salvação.
Acabado isto, fomos perante eles beijar a cruz. E
despedimo-nos e fomos comer.
Creio, Senhor, que, com estes dois degredados que aqui
ficam, ficarão mais dois grumetes, que esta noite se saíram em terra, desta
nau, no esquife, fugidos, os quais não vieram mais. E cremos que ficarão aqui
porque de manhã, prazendo a Deus fazemos nossa partida daqui.
Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais
contra o sul vimos, até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste
porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco
léguas de costa. Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras, umas
vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima toda chã e muito cheia de
grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia... muito chã e muito formosa.
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos,
não podíamos ver senão terra e arvoredos -- terra que nos parecia muito
extensa.
Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou
outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito
bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste
tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em
tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por
causa das águas que tem!
Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me
que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa
Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui
esta pousada para essa navegação de Calicute bastava. Quanto mais, disposição
para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber,
acrescentamento da nossa fé!
E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que
nesta Vossa terra vi. E se a um pouco alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo
que tinha de Vos tudo dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo.
E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que
levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de
ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê,
mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro -- o que d'Ela
receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje,
sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha.
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