Reflexão crítica: A Política em Hannah Arendt!
Hannah Arendt
Hannah Arendt uma das mais importantes filósofas do século XX. Cientista política germânica de origem judia nascida em Linden, Hanôver, Alemanha, consagrada como um dos grandes nomes do pensamento político contemporâneo por seus estudos sobre os regimes totalitários e sua visão crítica da questão judaica.
O QUE É POLÍTICA?
[Fragmento 1 (agosto de 1950)]
1. A política baseia-se na pluralidade dos homens. Deus criou o
homem, os homens são um produto humano mundano, e produto da
natureza humana. A filosofia e a teologia sempre se ocupam do
homem, e todas as suas afirmações seriam corretas mesmo se
houvesse apenas um homem, ou apenas dois homens, ou apenas
homens idênticos. Por isso, não encontraram nenhuma resposta
filosoficamente válida para a pergunta: o que é política? Mais, ainda:
para todo o pensamento científico existe apenas o homem — na
biologia ou na psicologia, na filosofia e na teologia, da mesma forma
como para a zoologia só existe o leão. Os leões seriam, no caso, uma
questão que só interessaria aos leões.
1
É surpreendente a diferença de categoria entre as filosofias
políticas e as obras de todos os grandes pensadores — até mesmo de
Platão. A política jamais atinge a mesma profundidade. A falta de
profundidade de pensamento não revela outra coisa senão a própria
ausência de profundidade, na qual a política está ancorada.
2. A política trata da convivência entre diferentes. Os homens se
organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais
num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças.
Enquanto os homens organizam corpos políticos sobre a família, em
cujo quadro familiar se entendem, o parentesco significa, em diversos
graus, por um lado, aquilo que pode ligar os mais diferentes e por
outro aquilo pelo qual formas individuais semelhantes podem separar-
se de novo umas das outras e umas contra as outras.
Nessa forma de organização, a diversidade original tanto é
extinta de maneira efetiva como também destruída a igualdade
essencial de todos os homens. A ruína da política em ambos os lados
surge do desenvolvimento de corpos políticos a partir da família. Aqui
já está indicado o que se torna simbólico na imagem da Sagrada
Família: Deus não criou tanto o homem como o fez com a família.1
3. Quando se vê na família mais do que a participação, ou seja,
a participação ativa na pluralidade, começa-se a bancar Deus, ou seja,
a agir como se pudesse sair, de modo natural, do princípio da
diversidade. Ao invés de se gerar um homem, tenta-se criar o homem
na imagem de si mesmo.
Porém, sob o ponto de vista prático-político, a família ganha sua
importância inquestionável porque o mundo assim está organizado,
porque nele não há nenhum abrigo para o indivíduo — vale dizer, para
os mais diferentes. As famílias são fundadas como abrigos e castelos
sólidos num mundo inóspito e estranho, no qual se precisa ter
parentesco. Esse desejo leva à perversão fundamental da coisa
política, porque anula a qualidade básica da pluralidade ou a perde
através da introdução do conceito de parentesco.
4. O homem, tal como a filosofia e a teologia o conhecem, existe
— ou se realiza — na política apenas no tocante aos direitos iguais que
os mais diferentes garantem a si próprios. Exatamente na garantia e
concessão voluntária de uma reivindicação juridicamente equânime
reconhece-se que a pluralidade dos homens, os quais devem a si
mesmos sua pluralidade, atribui sua existência à criação do homem.
5. A filosofia tem duas boas razões para não se limitar a apenas
encontrar o lugar onde surge a política. A primeira é:
2
a) Zoon politikon:
que pertencesse à sua essência — conceito que não procede; o
homem é a-político. A política surge no entre-os-homens; portanto,
totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma
substância política original. A política surge no intra-espaço e se
estabelece como relação. Hobbes compreendeu isso.
b) A concepção monoteísta de Deus, em cuja imagem o homem
deve ter sido criado. Daí só pode haver o homem, e os homens
tornam-se sua repetição mais ou menos bem-sucedida. O homem,
criado à imagem da solidão de Deus, serve de base ao state o f
nature as a war of all against all, de Hobbes. É a rebelião de cada
um contra todos os outros, odiados porque existem sem sentido —
sem sentido exclusivamente para o homem criado à imagem da
solidão de Deus.
A solução ocidental dessa impossibilidade da política dentro do
mito ocidental da criação é a transformação ou a substituição da
política pela História. Através da idéia de uma história mundial, a
pluralidade dos homens é dissolvida em um indivíduo-homem, depois
também chamada de Humanidade. Daí o monstruoso e desumano da
História, que só em seu final se afirma plena e vigorosamente na
política.
6. Torna-se difícil compreender que devemos ser livres de fato
num campo, ou seja, nem movidos por nós mesmos nem dependentes
do material dado. Só existe liberdade no âmbito particular do conceito
intra da política. Nós nos salvamos dessa liberdade justo na
―necessidade‖ da História. Um absurdo abominável.
7. Pode ser que a tarefa da política seja construir um mundo tão
transparente para a verdade como a criação de Deus. No sentido do
mito judaico-cristão, isso significaria: ao homem, criado à imagem de
Deus, foi dada capacidade genética para organizar os homens à
imagem da criação divina. Provavelmente, um absurdo — mas seria a
única demonstração e justificativa possível à idéia da lei da Natureza.
Na diversidade absoluta de todos os homens entre si —maior do
que a diversidade relativa de povos, nações ou raças — a criação do
homem por Deus está contida na pluralidade. Mas a política nada tem
a ver com isso. A política organiza, de antemão, as diversidades
absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às
diferenças relativas.
2
como se no homem houvesse algo político
3
CAPITULO 1 – OS PRECONCEITOS
[Fragmento 2b]
I Preconceito e Juízo3
Ao se falar de política, em nosso tempo, é preciso começar pelos
preconceitos que todos nós temos contra a política — quando não
somos políticos profissionais. Pois os preconceitos que compartilhamos
uns com os outros, naturais para nós, que podemos lançar-nos
mutuamente em conversa sem termos primeiro de explicá-los em
detalhes, representam em si algo político no sentido mais amplo da
palavra — ou seja, algo a se constituir num componente integral da
questão humana, em cuja órbita nos movemos a cada dia. Não se
precisa deplorar e, em nenhum caso, deve-se tentar modificar o fato
de os preconceitos desempenharem um papel tão extraordinário no
cotidiano — e com isso, na política. Pois nenhum homem pode viver
sem preconceitos, não apenas porque não teria inteligência ou
conhecimento suficiente para julgar de novo tudo que exigisse um
juízo seu no decorrer de sua vida, mas sim porque tal falta de
preconceito requereria um estado de alerta sobre-humano. Por isso, a
política tem de lidar sempre e em toda parte com o esclarecimento e
com a dispersão de preconceitos, o que não significa tratar-se, no caso
de uma educação para a perda de preconceitos, nem que aqueles que
se esforcem para fazer tal esclarecimento sejam livres de
preconceitos. A dimensão do estado de alerta e abertura para o mundo
determina o nível político e o caráter geral de uma época; mas não se
pode imaginar nenhuma época na qual os homens não pudessem
reincidir e confiar em seus preconceitos para amplas áreas de juízo e
decisão.
É evidente que essa justificação do preconceito enquanto medida
do juízo dentro da vida cotidiana tem seus limites. Ela só vale para os
verdadeiros preconceitos, quer dizer, para aqueles que não afirmem
ser juízos. Os verdadeiros preconceitos podem ser reconhecidos, em
geral, porque recorrem despreocupadamente a um ―dizem‖, ―acham‖,
sem que, é claro, essa apelação precise ser apresentada de maneira
expressa. Os preconceitos não são idiossincrasias pessoais que, apesar
da impossibilidade permanente de sua indemonstrabilidade, sempre
remontam a uma experiência pessoal dentro da qual persiste a
evidência de percepções sensoriais. Os preconceitos jamais têm essa
evidência, nem mesmo para aqueles a eles submetidos por falta de
experiência. Em contrapartida, como não são ligados a pessoas,
podem facilmente contar com o assentimento de outras, grandes
4
esforços de convencimento. Nisso, o preconceito diferencia-se do juízo
— com o qual, por outro lado, tem em comum o fato de nele os
homens se reconhecerem e a ele sentirem-se integrados — de modo
que o homem dotado de preconceitos sempre pode ter certeza de um
efeito, enquanto que o idiossincrático quase nunca pode realizar-se no
espaço político-público, só revelando-se no privado íntimo. Por
conseguinte, o preconceito desempenha um grande papel na coisa
social pura; na verdade, não existe nenhuma estrutura social que não
se baseie mais ou menos em preconceitos, através dos quais certos
tipos de homens são permitidos e outros excluídos. Quanto mais livre
de preconceitos é um homem, menos apto será para a coisa social
pura. Mas nós afirmamos não julgar, em absoluto, dentro da sociedade
e essa renúncia, essa substituição do juízo pelo preconceito só se
torna perigosa quando se alastra para o âmbito político, onde não
conseguimos mover-nos sem juízos porque, como veremos mais tarde,
o pensamento político baseia-se, em essência, na capacidade de
formação de opinião4
Uma das razões para a eficiência e a periculosidade dos
preconceitos reside no fato de neles sempre se ocultar um pedaço do
passado. Além disso, observando-se com mais atenção, vemos que um
verdadeiro preconceito pode ser reconhecido porque nele se oculta um
juízo já formado, o qual originalmente tinha uma legítima causa
empírica que lhe era apropriada e que só se tornou preconceito porque
foi arrastado através dos tempos, de modo cego e sem ser revisto.
Com relação a isso, o preconceito diferencia-se do mero boato que não
sobrevive ao dia ou à hora do rumor e no qual reina uma grande
confusão caleidoscópica de opiniões e juízos mais heterogêneos. O
perigo do preconceito reside no fato de originalmente estar sempre
ancorado no passado, quer dizer, muito bem ancorado e, por causa
disso, não apenas se antecipa ao juízo e o evita, mas também torna
impossível uma experiência verdadeira do presente com o juízo.
Quando se quer difundir preconceitos, é preciso sempre descobrir
primeiro o juízo anterior neles contido, ou seja, identificar seu
conteúdo original de verdade. Se porventura se passar ao largo disso,
batalhões inteiros de oradores esclarecidos e bibliotecas inteiras nada
podem conseguir, como mostram com clareza os infindos esforços
infinitamente infrutíferos em relação a problemas sobrecarregados de
preconceitos mais antigos e radicados, como é o caso dos negros nos
Estados Unidos ou o problema dos judeus.
Como o preconceito se antecipa ao juízo, recorrendo ao passado,
sua razão de ser temporal é limitada às épocas históricas — e formam,
em termos puramente quantitativos, a maior parte da História —, nas
quais o novo é relativamente raro e o velho predomina na estrutura
.
5
política e social. A palavra julgar tem, em nosso uso idiomático, dois
significados distintos um do outro por completo, que sempre
confundimos quando falamos. Ela significa, por um lado, o subordinar
do indivíduo e do particular a algo geral e universal, o medir
normalizador com critérios nos quais se verifica o concreto e sobre os
quais se decidirá. Em todos esses juízos encontra-se um preconceito;
só o indivíduo é julgado, mas não o próprio critério nem sua
adequabilidade para o medir. Também o critério foi um dia posto em
julgamento, mas depois esse juízo foi assumido e como que se tornou
um meio para se poder continuar julgando. Mas, julgar também pode
significar outra coisa bem diferente e, na verdade, sempre quando nos
confrontamos com alguma coisa que nunca havíamos visto antes e
para a qual não estão à nossa disposição critérios de nenhum tipo.
Esse julgar não tem parâmetro, não pode recorrer a coisa alguma
senão à própria evidência do julgado, não possui nenhum outro
pressuposto que não a capacidade humana do discernimento, e tem
muito mais a ver com a capacidade de diferenciar do que com a
capacidade de ordenar e subordinar.
Conhecemos bem esse julgar sem parâmetros no juízo estético
ou no juízo de gosto, sobre o qual, como sentenciou Kant, não se pode
―discutir‖, mas sim brigar e chegar a um acordo; e nós o conhecemos
na vida cotidiana sempre que, numa situação ainda desconhecida,
opinamos que este ou aquele teria julgado a situação correta ou
erradamente. Em toda crise histórica, são sempre os preconceitos que
cambaleiam primeiro, passa-se a não ter mais nenhuma confiança
neles e justamente porque não podem contar mais com o
reconhecimento, em seu caráter descomprometido do ―dizem‖,
―acham‖, no espaço limitado onde são justificados e usados, eles se
consolidam, com facilidade, em algo que, por natureza, não existe em
absoluto — ou seja, transformam-se naquelas pseudoteorias que,
enquanto visões de mundo fechadas ou ideologias que tudo explicam,
pretendem compreender a realidade histórica e política. Se a função
do preconceito é defender o homem julgante para não se expor
abertamente a cada realidade encontrada e daí ter de defrontá-la
pensando, então as visões de mundo e ideologias cumprem essa
tarefa — tão bem que protegem contra toda experiência, pois
supostamente todo o real está nelas previsto de alguma maneira. É
justamente essa universalidade distinta tão claramente dos
preconceitos — que são sempre de natureza parcial — que induz com
nitidez à conclusão de não se poder mais ter confiança não apenas no
preconceito, mas também nos critérios do preconceito e no que foi
nele prejulgado: indica textualmente que eles são inconvenientes.
Essa falha dos parâmetros no mundo moderno — a impossibilidade de
6
se julgar o que aconteceu e acontece de novo todos os dias, segundo
critérios fixos e reconhecidos por todos, de subordiná-lo como caso de
um esquema geral bem conhecido, assim como a dificuldade,
estreitamente ligada a isso, de indicar princípios de ação para o que
irá acontecer — foi descrita, como um niilismo inerente à época, como
uma desvalorização de todos os valores, uma espécie de crepúsculo
dos deuses e catástrofe da ordem mundial moral.
Todas essas interpretações pressupõem, de forma tácita, que só
se podem exigir juízos dos homens onde eles possuem parâmetros;
que a capacidade de discernimento não seja nada mais do que a
capacidade de agregar, de modo correto e adequado, o isolado ao
geral que lhe corresponde e sobre o qual se chegou a um acordo.
Sabe-se que a capacidade de discernimento insiste e deve insistir em
julgar de forma direta e sem parâmetros, mas as esferas nas quais tal
acontece — nas decisões de todo tipo, tanto de natureza pessoal como
pública, e no chamado ̳juízo de gosto‘ não são levadas a sério porque,
de fato, a coisa assim julgada jamais tem caráter imperativo, jamais
pode forçar os outros a uma concordância no sentido de uma
conclusão lógica e inevitável; pode apenas e tão-somente convencer.
Mas é um preconceito em si mesmo o fato de algo imperativo
adequar-se ao juízo; os critérios, enquanto duram, jamais podem ser
demonstrados de maneira forçada; só lhes serve, sempre, a evidência
limitada dos juízos sobre os quais todos concordaram e sobre os quais
não se precisa mais brigar nem discutir. Forçosa e unicamente
demonstráveis é a agregação, o medir e a adoção de critérios, a
regulamentação do isolado e do concreto, feita nesse sentido, e que
pressupõe a validade do critério segundo a natureza da coisa; e esse
agregar e regular no qual nada mais é decidido a não ser o proceder,
provando-se correta ou erradamente, tem muito mais a ver com um
pensamento que chega a conclusões do que com um pensamento que
julga. Portanto, a perda de critérios — a determinar, de fato, o mundo
moderno com sua facticidade e que não pode ser anulada por meio de
nenhum retorno a velhos conceitos do ̳bom‘ nem da formação
arbitrária de novos valores e critérios — só é uma catástrofe do mundo
moral quando se supõe os homens não estarem em condições de
julgar a coisa em si, que sua capacidade de discernimento não basta
para um julgar original. Na verdade, não se poderia exigir deles mais
do que a aplicação correta de regras conhecidas e a adoção apropriada
de critérios já existentes.
Se isso estiver certo, se pertencer à natureza do pensamento
humano o fato de os homens só poderem julgar ali onde têm à mão
critérios fixos e prontos, então de fato seria certo, como atualmente se
supõe, que na crise do mundo moderno não é tanto o mundo, mas sim
7
o próprio homem que saiu dos trilhos. Hoje, tal suposição se impôs
amplamente dentro dos estabelecimentos de ensino acadêmico, como
se pode reconhecer pelo fato de as disciplinas que têm a ver com a
história do mundo e com aquilo que sucede nela5
primeiro nas ciências sociais e depois na psicologia. Isso não significa
nada mais do que a renúncia do estudo ̳histórico‘ do mundo —
dissecado em suas camadas cronológicas em favor do estudo do modo
de conduta, primeiro, social e depois humano — o qual, por sua vez,
só pode tornar-se objeto de uma pesquisa sistemática quando se
exclui o homem atuante, o autor dos acontecimentos mundiais
demonstráveis, degradando-o a um ser que só reage, que pode ser
submetido a experiências e do qual até pode-se esperar ter
definitivamente sob controle. Talvez mais característico do que essa
disputa acadêmica das faculdades, na qual sempre se apresentam
reivindicações de poder nem um pouco acadêmicas, seja o fato de um
semelhante deslocamento do interesse do mundo para o homem
manifestar-se no resultado de uma pesquisa recente, na qual à
pergunta sobre o que estaria hoje no centro das preocupações seguiu-
se a resposta quase unânime: o homem6
ameaça do gênero humano pela bomba atômica (tal preocupação seria
justificada, na realidade); é evidente que os entrevistados
reportavam-se à essência do homem, entendendo-se com isso o
indivíduo. Num e noutro caso — e esses exemplos podem multiplicar-
se à vontade —, em nenhum momento duvida-se de o homem ter
saído dos trilhos ou estar em perigo; ou de ser quem deve ser
modificado.
Não importa como pode ser feita a pergunta, se é o homem ou o
mundo que corre perigo na crise atual, mas uma coisa é certa: a
resposta que empurra o homem para o ponto central das
preocupações do presente e que acha que deve modificá-lo, remediá-
lo, é apolítica em seu sentido mais profundo. Pois, no ponto central da
política está sempre a preocupação com o mundo e não com o homem
— e, na verdade, a preocupação com um mundo assim ou com um
mundo arranjado de outra maneira, sem o qual aqueles que se
preocupam e são políticos, julgam que a vida não vale a pena ser
vivida. E modifica-se o mundo tão pouco, modificando-se os homens
dele — abstraindo-se a impossibilidade prática de tal empreendimento
— quanto se muda uma organização ou uma associação, começando-
se a influenciar seus membros, de uma maneira ou de outra. Se se
quer mudar uma instituição, uma organização ou entidade pública
existente no mundo, então só se pode renovar sua constituição, suas
leis, seus estatutos e esperar que tudo mais se produza por si mesmo.
Isso está relacionado com o fato de que em toda parte em que os
terem sido diluídas
. Não se referia, contudo, à
8
homens se agrupam — seja na vida privada, na social ou na público-
política —, surge um espaço que os reúne e ao mesmo tempo os
separa uns dos outros. Cada um desses espaços tem sua própria
estruturabilidade que se transforma com a mudança dos tempos e que
se manifesta na vida privada em costumes; na social, em convenções
e na pública em leis, constituições, estatutos e coisas semelhantes.
Sempre que os homens se juntam, move-se o mundo entre eles, e
nesse interespaço ocorrem e fazem-se todos os assuntos humanos.
O espaço entre os homens que é o mundo, com certeza não
pode existir sem eles e um mundo sem homens, ao contrário de um
universo sem homens ou uma natureza sem homens, seria uma
contradição em si — sem isso significar, porém, que o mundo e as
catástrofes que nele ocorrem seriam reduzidos a um acontecer
puramente humano, muito menos reduzidos a algo que acontecesse
com ̳o homem‘ ou com a natureza do homem. Pois o mundo e as
coisas do mundo em cujo centro se realizam os assuntos humanos não
são a expressão — a impressão como que formada para fora — da
natureza humana, mas sim o resultado de algo que os homens podem
produzir: que eles mesmos não são, ou seja, coisas, e que os
pretensos âmbitos espirituais ou intelectuais só se tornam realidades
duradouras para eles, nas quais se podem mover, desde que existam
objetivados enquanto mundo real. Os homens agem nesse mundo real
e são condicionados por ele e exatamente por esse condicionamento
toda catástrofe ocorrida e ocorrente nesse mundo é neles refletida, co-
determina-os. Seria inimaginável tal catástrofe ser tão monstruosa,
tão aniquiladora do mundo a ponto de as capacidades formadoras do
mundo e realizadoras7 do homem também serem afetadas, e o homem
tornar-se tão ̳sem mundo‘, como o animal. Podemos até imaginar
que, no passado, tais catástrofes tenham acontecido em tempos pré-
históricos e que certas tribos dos chamados povos primitivos sejam
seus resíduos, suas sobras ̳sem mundo‘. Também podemos imaginar
que uma guerra atômica se permitisse a sobrevivência de alguma vida
humana, poderia provocar uma catástrofe assim através da destruição
do mundo inteiro. Mesmo assim, será sempre o mundo, bem como o
curso do mundo — do qual os homens não [são] mais senhores, do
qual se alhearam tanto que o automatismo inerente a todo processo
pode realizar-se sem ser impedido —, no qual os homens sucumbem.
Tampouco trata-se daquelas possibilidades de preocupação com os
homens acima mencionada. O pior e mais inquietante dela é
essencialmente o fato de não se interessar mais, em absoluto, por
esses perigos ̳externos‘ e, por conseguinte, altamente reais, e desviá-
los para um âmbito interior que pode no máximo ser refletido, mas
não tratado nem modificado.
9
Contra isso se poderia objetar com facilidade ser o mundo do
qual se fala aqui o mundo dos homens, quer dizer, o resultado do
fazer humano e do agir humano, como se queira entender isso. Essas
capacidades pertencem, com certeza, à natureza do homem; se
falham, não se deveria mudar a natureza do homem, antes de se
poder pensar numa mudança do mundo? Essa objeção é antiqüíssima
em sua essência e pode recorrer às melhores testemunhas — a saber,
a Platão que já censurava Péricles, afirmando que, depois da morte, os
atenienses não seriam melhores do que antes.
10
CAPITULO I: O SENTIDO DA POLÍTICA8
[Fragmento 3b]
A pergunta sobre o sentido da política e a desconfiança em relação à
política são muito antigas, tão antigas quanto a tradição da filosofia
política. Elas remontam a Platão e talvez até mesmo a Parmênides e
nasceram de experiências muito reais de filósofos com a polis:
significa como a forma de organização do convívio humano, que
determinou, de forma tão exemplar e decisiva, aquilo que entendemos
hoje por política que até mesmo nossa palavra para isso, em todos os
idiomas europeus, deriva daí.
Tão antigas quanto a pergunta sobre o sentido da política são as
respostas que justificam a política; quase todas as classificações ou
definições da coisa política que encontramos em nossa tradição são,
quanto a seu conteúdo original, justificações. Falando-se de maneira
bastante geral, todas essas justificações ou definições têm como
objetivo classificar a política como um meio para um fim mais elevado,
sendo a determinação dessa finalidade bem diferente ao longo dos
séculos. Contudo, essa diferença também pode ser reduzida a algumas
poucas respostas básicas, e o fato de assim ser indica a simplicidade
elementar das coisas com as quais temos de lidar aqui.
A política, assim aprendemos, é algo como uma necessidade
imperiosa para a vida humana e, na verdade, tanto para a vida do
indivíduo como da sociedade. Como o homem não é autárquico, porém
depende de outros em sua existência, precisa haver um provimento da
vida relativo a todos, sem o qual não seria possível justamente o
convívio. Tarefa e objetivo da política é a garantia da vida no sentido
mais amplo. Ela possibilita ao indivíduo buscar seus objetivos, em paz
e tranqüilidade, ou seja, sem ser molestado pela política — sendo
antes de mais nada indiferente em quais esferas da vida se situam
esses objetivos garantidos pela política, quer se trate, no sentido da
Antigüidade, de possibilitar a poucos a ocupação com a filosofia, quer
se trate, no sentido moderno, de assegurar a muitos a vida, o ganha-
pão e um mínimo de felicidade. Como, além disso, conforme Madison
observou um dia, trata-se nesse convívio de homens e não de anjos9
o provimento da vida só pode realizar-se através de um Estado, que
possui o monopólio do poder e impede a guerra de todos contra todos.
Comum a essas respostas é o fato de elas se julgarem naturais,
de que a política existe e existiu sempre e em toda parte, onde os
homens convivem num sentido histórico-civilizatório. Para esse caráter
11
natural, costuma-se recorrer à definição aristotélica do homem
enquanto ser político, e esse recurso não é indiferente porque a polis
determinou de maneira decisiva, tanto em termos de idioma como de
conteúdo, a concepção européia do que seria política originalmente e
que sentido ela tem. Tampouco é indiferente porque a citação a
Aristóteles baseia-se num equívoco também bastante antigo, embora
pós-clássico. Aristóteles, para quem a palavra politikon era de fato um
adjetivo da organização da polis e não uma designação qualquer para
o convívio humano, não achava, de maneira nenhuma, que todos os
homens fossem políticos ou que a política, ou seja, uma polis,
houvesse em toda parte onde viviam homens. De sua definição
estavam excluídos não apenas os escravos, mas também os bárbaros
asiáticos, remos de governo despótico, de cuja qualidade humana não
duvidava, de maneira alguma. Ele julgava ser apenas uma
característica do homem o fato de poder viver numa polis e que essa
organização da polis representava a forma mais elevada do convívio
humano; por conseguinte, é humana num sentido específico, tão
distante do divino que pode existir apenas para si em plena liberdade
e independência, e do animal cujo estar junto, onde existe, é uma
forma da vida em sua necessidade. Portanto, a política na acepção de
Aristóteles — e Aristóteles não reproduz aqui, como em muitos outros
pontos de seus escritos políticos, sua opinião sobre a coisa, mas sim a
opinião compartilhada por todos os gregos da época, embora em geral
não articulada — não é, de maneira nenhuma, algo natural e não se
encontra, de modo algum, em toda parte onde os homens convivem.
Ela existiu, segundo a opinião dos gregos, apenas na Grécia e mesmo
ali num espaço de tempo relativamente curto.
O que distingue o convívio dos homens na polis de todas as
outras formas de convívio humano que eram bem conhecidas dos
gregos, era a liberdade. Mas isso não significa entender-se aqui a coisa
política ou a política justamente como um meio para possibilitar aos
homens a liberdade, uma vida livre. Ser-livre e viver-numa-polis eram,
num certo sentido, a mesma e única coisa. A propósito, apenas num
certo sentido; posto que para poder viver numa polis, o homem já
devia ser livre em outro sentido — ele não devia estar subordinado
como escravo à coação de um outro nem como trabalhador à
necessidade do ganha-pão diário. Primeiro, o homem precisava ser
livre ou se libertar para a liberdade, e esse ser livre do ser forçado
pela necessidade da vida era o sentido original do grego schole ou do
romano otium, o ócio, como dizemos hoje. Essa libertação, diferente
da liberdade, era um objetivo que podia e devia ser atingido através
de determinados meios. O meio decisivo era a sociedade escravagista,
o poder com o qual outros eram forçados a assumir a preocupação
12
com a vida diária. Ao contrário de todas as formas de exploração
capitalista que perseguem sobretudo objetivos econômicos e servem
ao enriquecimento, no caso da exploração do trabalho escravo na
Antiguidade tratava-se de liberar os senhores por completo do
trabalho a fim de dispô-los para a liberdade da coisa política. Essa
libertação realizava-se através da coação e da força e baseava-se no
domínio absoluto que o dono da casa exercia em seu domicílio. Mas
esse domínio não era político, se bem que representasse uma condição
indispensável de toda a coisa política. Portanto, se quiserem entender
a coisa política no sentido da categoria meio-objetivo, ela era, tanto na
acepção grega como na acepção de Aristóteles, antes de qualquer
coisa um objetivo e não um meio. E o objetivo não era pura e
simplesmente a liberdade tal como ela se realizava na polis, mas sim a
libertação pré-política para a liberdade na polis. O sentido da coisa
política aqui, mas não seu objetivo, é os homens terem relações entre
si em liberdade, para além da força, da coação e do domínio ais com
iguais que só em caso de necessidade, ou seja, em tempos de guerra
davam ordens e obedeciam uns aos outros; porém, exceto isso,
regulamentavam todos os assuntos por meio da conversa mútua e do
convencimento recíproco.
A coisa política entendida nesse sentido grego está, portanto,
centrada em torno da liberdade, sendo liberdade entendida
negativamente como o não-ser-dominado e não-dominar, e
positivamente como um espaço que só pode ser produzido por muitos,
onde cada qual se move entre iguais. Sem esses outros que são meus
iguais não existe liberdade alguma e por isso aquele que domina
outros e, por conseguinte, é diferente dos outros em princípio, é mais
feliz e digno de inveja que aqueles a quem ele domina, mas não é
mais livre em coisa alguma. Ele também se move num espaço no qual
a liberdade não existe, em absoluto. Isso é difícil nós compreendermos
porque vinculamos à igualdade o conceito de justiça e não o de
liberdade e, desse modo, compreendemos mal a expressão grega para
uma constituição livre, a isonomia [Isonomie], em nosso sentido de
uma igualdade perante a lei. Porém, isonomia não significa que todos
são iguais perante a lei nem que a lei seja igual para todos, mas sim
que todos têm o mesmo direito à atividade política; e essa atividade
na polis era de preferência uma atividade da conversa mútua.
Por isso, isonomia é, antes de mais nada, liberdade de falar e
como tal o mesmo que isegoria; mais tarde, em Polibios, ambas
significam apenas isologia10
ouvir na forma de obedecer não eram avaliados como falar e ouvir
originais; não era uma conversa livre porquanto comprometida com
um fenômeno determinado não pela conversa, mas sim pelo fazer ou
. Porém, o falar na forma de ordenar e o
13
trabalhar. As palavras eram aqui como que o substituto do fazer e, na
verdade, de um fazer que pressupunha o forçar e o ser forçado.
Quando os gregos diziam que escravos e bárbaros eram aneu logou,
não dominavam a palavra, queriam dizer que eles se encontravam
numa situação na qual era impossível a conversa livre. Na mesma
situação encontra-se o déspota que só conhece o ordenar; para poder
conversar, ele precisava de outros de categoria igual à dele. Portanto,
para a liberdade não se precisava de uma democracia igualitária no
sentido moderno, mas sim de uma esfera limitada de maneira
estreitamente oligárquica ou aristocrática, na qual pelo menos os
poucos ou os melhores se relacionassem entre si como iguais entre
iguais. Claro que essa igualdade não tem a mínima coisa a ver com
justiça.
Decisivo dessa liberdade política era o fato de ser ela vinculada
espacialmente. Quem deixava sua polis ou era dela degredado, perdia
não apenas sua terra natal ou pátria, mas também o único espaço no
qual poderia ser livre; perdia a companhia daqueles que eram seus
iguais. Mas esse espaço da liberdade era tão pouco necessário ou
indispensável para sua vida e o sustento de sua existência que ele era
mais embaraçoso para ela. Os gregos sabiam por experiência própria
que um tirano sensato (o que chamamos hoje de déspota esclarecido)
era de grande vantagem para o puro bem-estar da cidade e o
florescimento das artes tanto materiais como intelectuais. Só a
liberdade estava extinta. Os cidadãos eram desterrados em suas
casas, e era isolado o espaço no qual se realizava o livre trânsito entre
iguais, a ágora. A liberdade não tinha mais nenhum espaço e isso
significava: não havia mais liberdade política.
Ainda não podemos tratar aqui do que acontecia, de fato, com
essa perda da coisa política que, na acepção da Antigüidade, coincidia
com a perda de liberdade. Tratamos aqui apenas de que uma breve
reminiscência daquilo que estava ligado originalmente ao conceito da
coisa política nos deve curar do preconceito moderno, segundo o qual
a política seria uma necessidade imperiosa e que ela teria existido
sempre e em toda parte. A política não é necessária, em absoluto —
seja no sentido de uma necessidade imperiosa da natureza humana
como a fome ou o amor, seja no sentido de uma instituição
indispensável do convívio humano. Aliás, ela só começa — onde cessa
o reino das necessidades materiais e da força física. Como tal, a coisa
política existiu sempre e em toda parte tão pouco que, falando em
termos históricos, apenas poucas grandes épocas a conheceram e
realizaram. Esses poucos e grandes acasos felizes da História são,
porém, decisivos; é só neles que se manifesta de cheio o sentido da
política e, na verdade, tanto o bem quanto a desgraça da coisa
14
política. Com isso, eles tornam-se determinantes, mas não a ponto de
poder ser copiadas as formas de organização que lhes são inerentes, e
sim porque certas idéias e conceitos que se tornaram plena realidade
para um curto período de tempo, também co-determinem as épocas
para as quais seja negada uma experiência plena com a coisa política.
A mais importante dessas idéias — que também para nós
pertence inegavelmente ao conceito da política e que, por conseguinte,
sobreviveu a todas as mudanças históricas e a todas as
transformações teóricas — é, sem dúvida, a idéia da liberdade. O fato
de a política e a liberdade serem ligadas e de a tirania ser a pior de
todas as formas de Estado — ser na prática antipolítica — estende-se
como uma diretriz através do pensar e agir da Humanidade até os
tempos mais recentes. Apenas as formas de Estado totalitárias e as
ideologias correspondentes — não o marxismo que proclamava o reino
da liberdade e compreendia a ditadura do proletariado, no sentido
romano, como uma instituição temporária da revolução — ousaram
cortar essa linha, mas o verdadeiro novo e assustador desse
empreendimento não é a negação da liberdade ou a afirmação que a
liberdade não é boa nem necessária para o homem, e sim a concepção
segundo a qual a liberdade dos homens precisa ser sacrificada para o
desenvolvimento histórico, cujo processo só pode ser impedido pelo
homem quando este age e se move em liberdade. Essa concepção é
comum a todos os movimentos políticos e ideológicos específicos. Do
ponto de vista teórico, torna-se decisivo a liberdade não ser localizada
nem no homem atuante e semovente nem no espaço que surge entre
os homens, mas sim apresentada num processo que se realiza pelas
costas do homem atuante e age, às escondidas, do outro lado do
espaço visível dos assuntos públicos. O modelo desse conceito de
liberdade é o rio que corre livremente, diante do qual qualquer
intervenção representa uma arbitrariedade a obstruir seu fluxo. As
modernas identificações da antiqüíssima oposição entre liberdade e
necessidade e o par de contrastes que a substitui, de liberdade e
intervenção, têm sua justificação secreta neste modelo. Em todos
esses casos, o moderno conceito de História substitui um conceito de
política qualquer que seja sua natureza; acontecimentos políticos e
agir político são diluídos no acontecer histórico, e a História é
compreendida, no sentido mais textual, como um fluxo da história. A
diferença entre esse difundido pensamento ideológico e as formas
totalitárias de Estado é que estas descobriram os meios políticos para
encaixar os homens no fluxo da História de tal maneira a ele ser
compreendido, em relação à ̳liberdade‘, ao fluxo ̳livre‘ dela,
exclusivamente como não podendo obstruir esse fluxo, ao contrário,
tornando-se um momento de sua aceleração. Os meios pelos quais
15
isso acontece são um processo externo de coação do terror e a
pressão exercida por dentro do pensamento ideológico, ou seja, um
pensamento que, bem no sentido do fluxo da História, também vem
junto no íntimo, por assim dizer. Esse desenvolvimento totalitário é,
sem dúvida, o passo decisivo no caminho da abolição da liberdade.
Mas não impede que, em termos teóricos, o conceito de liberdade
desapareça em toda parte onde, no pensamento dos novos tempos, o
conceito da História substitui o conceito da política.
Que a idéia de a política ter necessariamente alguma coisa a ver
com a liberdade, depois de haver nascido pela primeira vez na polis
grega, conseguir perdurar através dos milênios é tanto mais notável e
confortador porque quase não existe outro conceito no pensamento e
na experiência ocidental que se tenha transformado tanto e também
se enriquecido tanto no decorrer desse espaço de tempo.
Originalmente, ser livre nada mais significava que poder ir aonde bem
se desejasse, mas isso continha mais do que [aquilo] que hoje
entendemos como liberdade de ir e vir. Significava não apenas que
não se estava subordinado à coação de nenhum homem, mas também
que era possível distanciar-se de todo o âmbito da obrigação, da casa
e de sua ―família‖ (esse conceito romano que Mommsen traduziu um
dia apenas como servidão11). Tal liberdade só tinha o senhor da casa,
e ela não consistia em ele dominar os demais membros da casa, mas
que em função desse domínio, ele podia abandonar sua casa, a família
no sentido da Antiguidade. Evidente que o elemento do risco, da
aventura, era inerente a essa liberdade; a casa da qual o ir embora
era uma opção ao bel-prazer do homem livre, não era apenas o lugar
no qual os homens dominavam por necessidade e pressão, mas
também — e numa ligação mais estreita —o lugar onde a vida de cada
qual estava assegurada, onde tudo estava orientado para satisfazer às
necessidades vitais. Portanto, só podia ser livre quem estivesse
disposto a arriscar a vida, e tinha alma escrava; e era não-livre aquele
que se agarrava à vida com um amor grande demais — um vício para
o qual o idioma grego tinha uma palavra própria12
Essa concepção, de que só pode ser livre quem está disposto a
arriscar sua vida, nunca mais desapareceu de todo de nossa
consciência; o mesmo vale para a ligação entre a coisa política e
perigo e risco. A coragem é a mais antiga das virtudes políticas e ainda
hoje pertence às poucas virtudes cardeais da política, porque só
podemos chegar no mundo público comum a todos nós — que, no
fundo, é o espaço político — se nos distanciarmos de nossa existência
privada e da conexão familiar com a qual nossa vida está ligada. Aliás,
o espaço no qual entravam aqueles que ousavam ultrapassar a soleira
da casa já deixou de ser, em nossa época, um âmbito de grandes
.
16
empreendimentos e aventuras, no qual o homem só podia entrar e no
qual só podia esperar sair vitorioso se se ligasse a outros que eram
seus iguais. Além disso, é verdade que surge no mundo aberto para os
corajosos, os aventureiros e os ávidos por empreendimento uma
espécie de espaço público, mas ainda não-político no verdadeiro
sentido. Torna-se público esse espaço no qual avançam os ávidos por
façanhas, porque eles estão entre seus iguais e se podem conceder
aquele ver, ouvir e admirar o feito, cuja tradição vai fazer com que o
poeta e o contador de histórias mais tarde possam assegurar-lhes a
glória para a posteridade. Ao contrário do que acontece na vida
privada e na família, no recolhimento das quatro paredes, aqui tudo
aparece naquela luz que só pode ser criada em público, o que quer
dizer na presença de outros. Mas essa luz, condição prévia de toda
manifestação real, é enganadora enquanto for apenas pública e não-
política. O espaço público da aventura e do empreendimento
desaparece assim que tudo chega a seu fim, logo que dissolvido o
acampamento do exército e os ̳heróis‘ —que em Homero nada mais
significam que os homens livres — retornam para suas casas. Esse
espaço público só se torna político quando assegurado numa cidade,
quer dizer, quando ligado a um lugar palpável que possa sobreviver
tanto aos feitos memoráveis quanto aos nomes dos memoráveis
autores, e possa ser transmitido à posterioridade na seqüência das
gerações. Essa cidade a oferecer aos homens mortais e a seus feitos e
palavras passageiros um lugar duradouro constitui a polis — que é
política e, desse modo, diferente de outros povoamentos (para os
quais os gregos tinham uma palavra específica13), porque
originalmente só foi construída em torno do espaço público, em torno
da praça do mercado, na qual os livres e iguais podiam encontrar-se a
qualquer hora.
Essa estreita união do político com o homérico é de grande
importância para a compreensão de nosso conceito de liberdade
política tal como aparece em sua origem na polis grega. E não apenas
porque Homero se tornou o educador dessa polis, mas também porque
em conseqüência do auto-entendimento grego, a organização e
fundação da polis estavam ligadas, da maneira mais íntima, com as
experiências que existiam dentro do homérico. Desse modo, o conceito
central da polis livre e não dominada por nenhum tirano, pode ser
situado, sem dificuldade, no conceito da isonomia e da isegoria da
era homérica (Pauly-Wissowa, loc. cit.14), porque a enorme
experiência das possibilidades de uma vida entre iguais existia, de
fato, como modelo no épico de Homero; e, o que talvez fosse mais
importante, era possível compreender o surgimento da polis como
uma resposta a essas experiências. Isso podia acontecer de uma
17
maneira como que negativa — no sentido como Péricles referiu-se a
Homero na oração fúnebre: a polis precisava ser fundada para
assegurar um paradeiro para a grandeza do fazer e do falar humanos,
que fosse mais seguro15 do que a memória que o poeta fixava no
poema, tornando-a duradoura16. Também poderia ser compreendido
de modo positivo — no sentido conferido por Platão (na 11a
Epístola17): a polis nasceu do encontro de grandes acontecimentos na
guerra ou em outros feitos, quer dizer, das próprias atividades
políticas e de sua grandeza original. Em ambos os casos, são como se
o acampamento do exército de Homero não fosse desfeito, senão
depois que o regresso à pátria, quando fundasse a polis para então
encontrar um espaço onde pudessem reunir-se permanentemente.
Não importa quanto pode ter-se modificado através dessa constância
no futuro, o conteúdo da polis permanece ligado no homérico como em
sua origem.
A propósito, é natural que nesse sentido específico de espaço
político desvie-se aquilo que se entendia por liberdade; o sentido do
empreendimento e da aventura retrocede cada vez mais e aquilo que
era, de certo modo, apenas o acessório indispensável, a constante
presença de outros, o relacionamento com iguais na publicidade da
ágora, como Heródoto diz, a isegoria torna-se o verdadeiro conteúdo
do ser-livre. Ao mesmo tempo, a mais importante atividade para o
ser-livre desloca-se do agir para o falar, da ação livre para a palavra
Esse deslocamento é de grande importância, em nosso conceito
tradicional de liberdade no qual a concepção de que agir e falar são,
em princípio, separados um do outro, de que correspondem, de certa
maneira, a duas capacidades bem diferentes do homem: faz-se valer
de forma muito mais decisiva do que na própria história da Grécia.
Pois um dos traços essenciais mais notáveis e excitantes justamente
do pensamento grego é que nele, desde o começo — ou seja, já em
Homero — não ocorre tal separação de princípio entre falar e agir, e o
autor de grandes feitos também deve ser sempre, ao mesmo tempo,
um orador de grandes palavras — e não apenas porque grandes
palavras precisam acompanhar os grandes feitos, explicando-os, por
assim dizer, feitos esses que, caso contrário, cairiam mudos no
esquecimento, mas porque o próprio falar era compreendido a priori
como uma espécie de agir. É verdade que o homem não pode
proteger-se contra os golpes do destino, contra os golpes dos deuses,
mas pode opor-se a eles e retrucar-lhes no falar e, se bem que esse
retrucar não adiante nada, não mude a infelicidade nem atraia a
felicidade, essas palavras pertencem ao acontecer como tal; se as
palavras são iguais ao acontecimento, se (como no final de Antígona)
18
―grandes palavras‖ replicam e pagam na mesma moeda ―os grandes
golpes dos ombros altos‖, então o que sucede é algo grandioso e digno
da lembrança enaltecedora. A tragédia grega e seu drama, nela
tratado, baseiam-se nessa convicção básica, de que o falar é, nesse
sentido, uma espécie de ação, de que o declínio pode tornar-se um
feito se palavras forem lançadas em sua direção enquanto se
sucumbe.
Justamente essa concepção do falar encontra-se na origem da
descoberta do poder independente do logos pela filosofia grega, que
retrocede na experiência da polis e desaparece, por completo, da
tradição do pensamento político. A liberdade de externar opinião, o
direito de ouvir opiniões de outros e de também ser ouvido, que para
nós constitui também parte indispensável da liberdade política,
suplantou a liberdade não em contradição com ela, mas que possui
uma natureza bem diferente, característica do agir e do falar, desde
que seja uma ação. Essa liberdade consiste naquilo que chamamos de
espontaneidade que, segundo Kant, se baseia no fato de cada homem
ser capaz de começar uma série de novo por si mesmo. O fato de que
liberdade de agir é equivalente a estabelecer-um-início-e-começar-
alguma-coisa é ilustrado, da melhor maneira dentro do âmbito político
grego, porque a palavra archein tanto significa começar como
dominar. É evidente que esse duplo significado indica que
originalmente era chamado de guia aquele que começava uma coisa,
procurava companheiros a fim de poder levá-la a cabo; e esse levar a
cabo e levar-ao-fim-a-coisa-começada era o significado original da
palavra para agir, prattein. Encontramos esse acoplamento do ser-
livre com o começar na concepção romana, segundo a qual a grandeza
dos antepassados está contida na fundação de Roma e a liberdade,
dos romanos sempre pode ser atribuída a essa fundação — ab urbe
condita —, na qual foi feito um começo. Então, Agostinho
fundamentou ontologicamente essa liberdade romana experimentada,
dizendo ser o próprio homem um começo, um initium, porquanto
nem sempre existiu, senão que só veio ao mundo por meio do
nascimento. Apesar da filosofia política de Kant que, a partir da
experiência da Revolução Francesa, se tornou uma filosofia da
liberdade porque, em seu âmago, está centrada em torno do conceito
da espontaneidade, parece que só hoje reconhecemos o extraordinário
significado político inserido no poder-começar, pois as formas de
dominação total não se contentaram em pôr um fim no livre externar
de opinião, senão que puseram mãos à obra para exterminar, em
princípio, a espontaneidade do homem em todas as áreas. Por outro
lado, isso é inevitável sempre que o processo histórico-político foi
definido de maneira determinística, como algo definido de antemão e
19
segundo suas próprias leis, podendo ser reconhecido por isso. Contra a
possível determinação e distinguibilidade do futuro está o fato de o
mundo se renovar a cada dia por meio do nascimento e, pela
espontaneidade dos recém-chegados, está sempre se comprometendo
com um novo imprevisível. Só quando os recém-nascidos são privados
de sua espontaneidade, de seu direito a começar algo novo, o curso do
mundo pode ser determinado e previsto, de maneira determinística.
A liberdade de externar opinião, determinante para a
organização da polis, distingue-se da liberdade característica do agir,
do fazer um novo começo, porque numa medida muitíssimo maior não
pode prescindir da presença de outros e do ser-confrontado com suas
opiniões. É verdade que o agir também jamais pode realizar-se em
isolamento, porquanto aquele que começa alguma coisa só pode levá-
la a cabo se ganhar outros que o ajudem. Nesse sentido, todo agir é
um agir in concert, como Burke costumava dizer:18 ―é impossível agir
sem amigos e companheiros dignos de confiança‖ (Platão, 7a Epístola
325d19), ou seja, impossível no sentido do prattein grego, do
executar e do concluir. Mas isso mesmo é apenas uma fase do agir,
embora politicamente seja o mais importante, em suma, aquilo que
determina no final o que será feito dos assuntos dos homens e que
aspecto terão. Precede-lhe o começar, o ; essa iniciativa, que decide
quem será o guia ou archon, o primus inter pares, cabe ao
indivíduo e sua coragem de se envolver num empreendimento. Por
fim, alguém como Hércules — a quem os deuses ajudam — pode
realizar grandes façanhas mesmo sozinho e precisava dos homens
apenas para receber a notícia sobre elas. A própria liberdade da
espontaneidade é, por assim dizer, pré-política, se bem que sem ela
toda a liberdade política perderia seu melhor e mais profundo sentido;
ela só depende das formas de organização da vida em comum na
medida em que também pode ser organizada do mundo para fora. Mas
como, em última análise, ela nasce do indivíduo, é só em
circunstâncias muito desfavoráveis que ela ainda consegue salvar-se
da intervenção, por exemplo, de uma tirania; na produtividade do
artista, como de todos aqueles que produzem alguma coisa qualquer
do mundo no isolamento contra outros, também se apresenta a
espontaneidade e se pode dizer que nenhum produzir é possível que
não tenha sido criado por meio da capacidade para agir. Contudo,
muitas atividades do homem só podem realizar-se longe da esfera
política e essa distância é até, como veremos mais tarde20
condição essencial para determinadas produtividades humanas.
Algo bem diferente ocorre com a liberdade do falar um com o
outro. Ela só é possível no trato com outros. Sua importância sempre
foi múltipla e ambígua e, já na Antigüidade, possuía a ambigüidade
20
duvidosa que ainda tem para nós. Mas, naquele tempo como hoje, o
decisivo não era, de maneira alguma, cada um poder dizer o que bem
entendesse, ou cada homem ter um direito imanente de se expressar
tal como era. Trata-se aqui talvez da experiência de ninguém poder
compreender por si, de maneira adequada, tudo que é objetivo em sua
plenitude, porque a coisa só se mostra e se manifesta numa
perspectiva, adequada e inerente à sua posição no mundo. Se alguém
quiser ver e conhecer o mundo tal como ele é ̳realmente‘, só poderá
fazê-lo se entender o mundo como algo comum a muitos, que está
entre eles, separando-os e unindo-os, que se mostra para cada um de
maneira diferente e, por conseguinte, só se torna compreensível na
medida em que muitos falarem sobre ele e trocarem suas opiniões,
suas perspectivas uns com os outros e uns contra os outros. Só na
liberdade do falar um com o outro nasce o mundo sobre o qual se fala,
em sua objetividade visível de todos os lados. O viver-num-mundo-
real e o falar-sobre-ele-com-outros são, no fundo, a mesma e única
coisa, e a vida privada parecia ̳idiota‘ para os gregos porque os
privava dessa complexidade do conversar-sobre-alguma-coisa e, com
isso, da experiência sobre como a coisa acontecia, de fato, no mundo.
Essa liberdade de movimento, seja a liberdade de ir em frente e
começar algo novo e inaudito, ou seja, a liberdade de se relacionar
com muitos conversando e tomar conhecimento de muitas coisas que,
em sua totalidade, são o mundo em dado momento, não era nem é,
de maneira alguma, o objetivo da política — aquilo que seria
alcançável por meios políticos; é muito mais o conteúdo e sentido
original da própria coisa política. Nesse sentido, política e liberdade
são idênticas e sempre onde não existe essa espécie de liberdade,
tampouco existe o espaço político no verdadeiro sentido. Por outro
lado, os meios com os quais se pode fundar esse espaço político e
proteger sua existência não são, de modo algum, sempre e
necessariamente meios políticos. Desse modo, os gregos, por
exemplo, não reconheceram como atividades políticas legítimas —
quer dizer, como uma espécie de agir que está contida na essência da
polis — esses meios com os quais o espaço político é formado e
mantido. Eles eram de opinião que, para a fundação de uma polis, só
se precisava de um ato legislativo, mas esse legislador não era um
cidadão da polis e aquilo que ele fazia não era, em absoluto, ̳político‘.
Além disso, eram de opinião de que sempre que a polis tinha a ver
com outros Estados, não precisava mais proceder politicamente, senão
que podia empregar a força — seja porque sua existência corresse
perigo pelo poder de outras coletividades, seja porque ela mesma
desejasse tornar outros vassalos seus. O que hoje denominamos
política externa não era, em outras palavras, para os gregos a política
21
no verdadeiro sentido. Voltaremos a isso mais tarde21
importa aqui o fato de entendermos liberdade como algo político, e
não como o objetivo mais elevado dos meios políticos, e que pressão e
violência sempre foram, na verdade, meios para proteger o espaço
político, ou para fundá-lo e amplia-lo — mas sem serem políticos em si
como tal. São fenômenos marginais que pertencem ao fenômeno da
coisa política e, por causa disso, não são elas.
A partir desse espaço da política, que como tal realizava e
garantia tanto a realidade por muitos discutida e testemunhada como
a liberdade de todos, só se pode indagar por um sentido situado no
outro lado da esfera política se, como os filósofos da polis, conferir-se
preferência ao trato com poucos e não ao trato com muitos e chegar-
se à convicção de que o livre-conversar-sobre-alguma-coisa-com-
outros não produz a realidade, mas sim o engano; não a verdade, mas
a mentira.
Parece que Parmênides foi o primeiro a ter essa opinião, sendo
decisivo o fato de ele não separar os muitos maus dos poucos e
melhores — como Heráclito fazia e como, no fundo, correspondia ao
espírito agonal da vida política grega, no qual cada um devia esforçar-
se sempre para ser o melhor de todos. Parmênides distinguia muito
mais um caminho da verdade que só está aberto para o ―indivíduo qua
indivíduo‖, dos caminhos do engano nos quais se movem todos
aqueles, qualquer que seja a forma, que estão no caminho uns com os
outros. Platão seguiu-o até certo grau. Mas esse acompanhamento de
Platão só tem importância política porque ele não insiste no indivíduo,
e concretizando na fundação da academia uma concepção básica dos
poucos que, por seu lado, filosofavam de novo entre si num discurso
Platão, o pai da filosofia política do Ocidente, tentou de várias
maneiras contrapor-se à polis e aquilo que ela definia por liberdade.
Tentou-o por meio de uma teoria política na qual os critérios da coisa
política não são criados a partir da própria política, mas sim da
filosofia, por meio do aperfeiçoamento de uma constituição que
entrava em pormenores, cujas leis correspondem às idéias acessíveis
apenas aos filósofos, e por fim por meio inclusive de uma influência
sobre um soberano, do qual esperava que fosse transformar tal
legislação em realidade — tentativa que quase lhe custou a vida e a
liberdade. Entre tais tentativas está também a fundação da academia,
que se efetuou tanto contra a polis — enquanto uma delimitação ao
âmbito político original — como também, por outro lado, no sentido
justamente desse espaço político específico grego-ateniense — ou
seja, contanto que o conversar-um-com-o-outro se tornasse seu
. Para nós, só
22
verdadeiro conteúdo. Daí, junto com o âmbito da liberdade da coisa
política, surgiu um novo espaço da liberdade muitíssimo real, com
repercussão até hoje na forma de liberdade das universidades e de
liberdade de ensino acadêmico. Mas essa liberdade, se bem que
formada à imagem de uma liberdade originalmente experimentada
como política e entendida por Platão como um possível núcleo ou
ponto de partida, a partir do qual devia ser determinado o estar junto
de muitos no futuro, trouxe, de fato, ao mundo um novo conceito de
liberdade. Ao contrário de uma liberdade puramente filosófica e válida
apenas para os indivíduos, tão distante de tudo que é político, que só
o corpo do filósofo habita a polis, essa liberdade de poucos tem
completa natureza política. O espaço de liberdade da academia devia
ser um substituto válido para a praça do mercado, a ágora, o espaço
de liberdade central da polis. Para poder existir como tal, a minoria
precisava exigir, para sua atividade, seu conversar entre si, ser
dispensada das atividades da polis e da ágora, da mesma maneira que
os cidadãos de Atenas eram dispensados de todas as atividades que
serviam ao mero ganha-pão. Eles precisavam ser libertados da política
no sentido dos gregos, para serem livres para o espaço de liberdade
acadêmica, da mesma maneira como os cidadãos precisavam ser
libertados das necessidades da vida para a política. E precisavam sair
do espaço da própria coisa política, a fim de poder entrar no espaço da
̳coisa acadêmica‘, da mesma maneira como os cidadãos precisavam
sair da esfera privada de sua casa para se deslocarem para a praça do
mercado. Assim como a libertação do trabalho e das preocupações
com a vida eram pressupostos necessários para a liberdade da coisa
política, a libertação da política tornou-se pressuposto necessário para
a liberdade da coisa acadêmica.
Nesse contexto, ouvimos pela primeira vez que a política é algo
necessário, que a coisa política em sua totalidade é apenas um meio
para um objetivo mais elevado, situado fora de si mesmo, e que em
conseqüência precisa ser justificado no sentido de tal estabelecimento
de objetivo. Torna-se então surpreendente que o paralelismo que
recém-estabelecemos, em conseqüência do qual a liberdade
acadêmica simplesmente parece substituir a política e que polis e
academia se comportassem entre si como casa e polis, não é mais
válido aqui. Pois, a casa (e o provimento da vida que ocorria em sua
esfera) jamais foi justificada como um meio para um objetivo, como
se, falando aristotelicamente, a vida fosse um simples meio para a
̳boa vida‘ só possível na polis. Isso não era possível nem necessário
porque, dentro do mero âmbito da vida, a categoria objetivo-meio não
pode chegar a ser empregada: é evidente que o objetivo da vida e de
todas as atividades de trabalho relacionadas com ela é a manutenção
23
da vida e nada mais, e o impulso para o manter-se-em-vida com
trabalho não está situado do lado de fora da vida, mas sim contido no
processo da vida que nos obriga a trabalhar, assim como nos obriga a
comer. Se se quiser entender essa relação entre çasa e polis no
âmbito do objetivo-meio, então a vida garantida na casa não é o meio
para um objetivo mais elevado da liberdade política, senão que o
domínio das necessidades vitais e a dominação realizada sobre o
trabalho escravo são o meio da libertação para a coisa política.
Tal libertação através do domínio, a libertação de poucos para a
liberdade do filosofar através da dominação sobre muitos, foi proposta,
de fato, por Platão na forma do rei-filósofo, mas essa proposta não foi
admitida por nenhum filósofo depois dele e permaneceu sem nenhum
efeito político. Em contrapartida, a fundação da academia, justamente
porque não objetivava sobretudo a educação para política, como as
escolas dos sofistas e oradores, teve uma importância extraordinária
para aquilo que ainda entendemos por política. O próprio Platão ainda
podia acreditar que um dia a academia fosse conquistar e dominar a
polis. Para seus sucessores, para os filósofos que vieram a seguir, só
continuou determinante o fato de a academia garantir
institucionalmente um espaço de liberdade para a minoria, e essa
liberdade ser entendida desde o início em completa contradição com a
liberdade política da praça do mercado; ao mundo das opiniões
mentirosas e do falar enganador devia ser oposto um mundo contrário
da verdade e do falar adequado à verdade; à arte da retórica, a
ciência da dialética. O que se impôs e até hoje determina nossa
concepção de liberdade acadêmica não é a esperança de Platão de a
partir da academia determinar a polis, a partir da filosofia determinar
a política, mas sim o afastamento da polis, a apolitia,
contra a política.
O decisivo nesse contexto não é tanto o conflito entre a polis e
os filósofos — nos quais mais tarde teremos de entrar em detalhes23 —
mas sim não poder persistir a simples indiferença de um âmbito em
relação ao outro, na qual o conflito pareceu solucionado por um
momento, porquanto impossível o espaço da minoria e sua liberdade
— se bem que era também um âmbito público e não-privado —
desempenhar as duas funções, assim como a política incluía todos os
que estavam aptos para a liberdade. É evidente que a minoria, sempre
que se separou da maioria — seja na forma de uma indiferença
acadêmica, seja na forma de um domínio oligárquico —, caiu numa
dependência da maioria, em todas as questões da vida em comum nas
quais realmente se tinha de negociar. Assim, essa dependência no
sentido de uma oligarquia platônica pode ser entendida como
obrigação da maioria em cumprir as ordens da minoria, quer dizer,
22 a indiferença
24
assumir o verdadeiro agir; nesse caso, a dependência da minoria foi
superada pelo domínio, assim como a dependência dos livres em
relação às necessidades da vida pôde ser superada por meio de seu
domínio sobre uma casa de escravos, e a liberdade basear-se no
poder. Ou então, a liberdade da minoria é de natureza meramente
acadêmica e assim torna-se evidente ser dependente da boa vontade
do corpo político que a garante. Mas em ambos os casos a política não
tem mais a ver com a liberdade, não sendo, portanto, política no
sentido grego; refere-se muito mais a tudo que garante a própria
existência dessa liberdade, quer dizer, à administração e ao
provimento da vida na paz e à defesa na guerra. Assim, o âmbito de
liberdade da minoria não apenas tem o trabalho de se impor contra o
âmbito da coisa política determinada pela maioria; além disso, sua
mera existência depende da maioria; a existência simultânea da polis
é uma necessidade vital para a existência da academia, seja a
existência da platônica ou da universidade posterior. Com isso, é
evidente que a coisa política em sua plenitude é empurrada um degrau
para baixo, que faz parte da política [da polis] da conservação da vida;
torna-se uma necessidade por um lado em contradição com liberdade,
mas por outro forma seu pressuposto. Ao mesmo tempo, aparecem,
de maneira inegável, no ponto central de todo, esse âmbito, aqueles
aspectos da coisa política que originalmente, ou seja, no auto-
entendimento da polis, representavam fenômenos marginais. Para a
polis, o sustento da vida e a defesa não eram o ponto central da vida
política, e só eram políticos no verdadeiro sentido desde que as
conclusões sobre eles não fossem decretadas de cima para baixo, mas
sim se concebidas em comum no conversar de um com o outro e no
convencer mútuo. Mas justamente isso tornou-se indiferente na
justificação da política resultante do ponto de vista da liberdade da
minoria. Só era decisivo o fato de todas as questões da existência, das
quais a minoria não fosse o senhor, serem deixadas por conta do
âmbito da coisa política. É verdade que com isso ainda se nota uma
relação entre política e liberdade, mas apenas uma relação e não uma
identidade. A liberdade enquanto objetivo final da política estabelece
as fronteiras políticas; mas, o critério do agir dentro do próprio âmbito
político não é mais a liberdade, mas sim a competência e a capacidade
de assegurar a vida.
Essa degradação da política a partir da filosofia, tal como
conhecemos desde Platão e Aristóteles, depende por completo da
distinção entre maioria e minoria. Tem um efeito extraordinário,
demonstrável até nossos dias, sobre todas as respostas teóricas para a
pergunta sobre o sentido da política. Mas em termos políticos não
realizou mais que a apolitia das escolas filosóficas da Antigüidade e a
25
liberdade de ensino acadêmico das universidades. Em outras palavras,
sua eficiência política sempre estendeu-se apenas à minoria para a
qual a autêntica experiência filosófica era decisiva em sua estupenda
eficácia — uma experiência que, de acordo com seu próprio sentido,
levava de fato para fora do âmbito político da vida em comum e da
conversa em comum.
Contudo, a razão pela qual não prevaleceu esse efeito teórico —
pelo qual faz-se valer, até hoje, no auto-entendimento da política e
dos políticos, a concepção segundo a qual a coisa política é justificada
e precisa ser justificada através de objetivos mais elevados, situados
fora da coisa política (ainda que esses objetivos sejam, nesse meio
tempo, como é natural, de natureza muitíssimo mais mesquinho do
que eram originalmente) reside na negação e na reinterpretação da
política, semelhantes apenas no exterior, mas na verdade moldadas de
maneira bem diferente e muito mais radical, realizadas pelo
cristianismo. Ao mesmo tempo, pode parecer à primeira vista que o
cristianismo primitivo reivindicava para todos a mesma liberdade de
certo modo acadêmica da política, que as escolas filosóficas da
Antigüidade solicitavam para si. Tal impressão é fortalecida se
considerarmos que aqui também a negação da coisa política andava de
mãos dadas com o restabelecimento de um espaço existente ao lado
do político, no qual os fiéis se reuniam primeiro numa comunidade e
depois numa Igreja. Porém, esse paralelismo só se impôs de cheio
com o advento do Estado secularizado no qual, aliás, a liberdade
acadêmica e a religiosa têm estreita ligação, desde que lhes seja
garantida pública e juridicamente a liberdade da política pelo corpo
político. Uma vez entender-se por política tudo aquilo necessário para
o convívio dos homens, a fim de lhes possibilitar, enquanto indivíduos
ou em comunidade, uma liberdade situada além da política e da
necessidade justifica-se de fato que se meça o grau de liberdade de
cada corpo político pela liberdade acadêmica e religiosa por ele
tolerada, ou seja, pela extensão, por assim dizer, do espaço de
liberdade não-política que contém e mantém.
Justamente esse efeito político já direto da liberdade da política,
da qual a liberdade acadêmica se aproveitou de maneira
extraordinária, remonta a outras experiências mais radicais — no que
diz respeito à coisa política — do que as dos filósofos. No caso dos
cristãos não se tratava de se produzir um espaço da minoria junto ao
espaço da maioria, tampouco de se fundar um contra-espaço para
todos contra o espaço oficial, mas sim que um espaço público, não
importava se para a minoria ou para a maioria, era insuportável por
causa de sua publicidade. Quando Tertuliano diz que ―para nós, os
cristãos, nada é mais estranho que os assuntos públicos‖24
, a essência
26
encontra-se no caráter público. Costuma-se entender, sem dúvida com
razão, a negação do cristianismo antigo de participar dos assuntos
públicos a partir da perspectiva romana de uma divindade que
rivalizava com os deuses de Roma, ou a partir da visão do cristianismo
primitivo de uma expectativa escatológica, segundo a qual estaria
dispensada toda a preocupação com o mundo. Com isso, não se notam
as verdadeiras tendências antipolíticas da mensagem cristã e a
experiência que lhe serve de base, com aquilo que é essencial para o
estar junto dos homens. Não há dúvida de que no sermão de Jesus o
ideal da bondade desempenha o mesmo papel que o ideal da
sabedoria nas doutrinas de Sócrates: Jesus recusa-se a ser chamado
de bom pelos discípulos, no mesmo sentido em que Sócrates recusa
ser apresentado como sábio pelos alunos. Porém, a bondade precisa
ser escondida, não deve manifestar-se como aquilo que é. Uma
comunidade de homens, cuja opinião seja que com toda seriedade
todos os assuntos humanos devem ser regulamentados no sentido da
bondade; que, por conseguinte, não tem medo de pelo menos tentar
amar seus inimigos e de pagar o mal com o bem; que em outras
palavras acha decisivo o ideal da santidade — não apenas para a
salvação da própria alma no afastamento dos homens, mas para a
própria regulamentação dos assuntos humanos —, não pode fazer
outra coisa que se manter afastada do público e de sua luz. Ela precisa
agir em segredo porque o ser-visto e ser-ouvido geram forçosamente
aquele brilho e luz, nos quais toda a santidade — que pode
apresentar-se como quiser — torna-se, de imediato, hipocrisia.
Assim, no caso do afastamento dos primeiros cristãos da política
não se tratava, como no caso do afastamento dos filósofos, de um
abandono do âmbito dos assuntos humanos. Tal afastamento, comum
nas formas extremas de vida eremita nos primeiros séculos da era
cristã, estaria em retumbante contradição com o sermão de Jesus e foi
sentida bem cedo como uma heresia pela Igreja. Tratava-se muito
mais de uma proposição da mensagem cristã para um caminho de
vida, no qual os assuntos humanos deviam ser deslocados do âmbito
público para um âmbito intermédio entre homem e homem. O fato de
ter-se identificado e talvez confundido esse âmbito intermédio com a
esfera privada, porquanto em evidente oposição ao âmbito público-
político, encontra-se na natureza da situação histórica. A esfera
privada foi entendida através de toda a Antigüidade grego-romana
como única alternativa para o espaço público, sendo que, para a
interpretação de ambos os espaços, foi decisiva a oposição entre
aquilo que se queria mostrar para todo o mundo e a maneira como se
queria aparecer diante de todo o mundo e aquilo que só podia existir
em segredo e, por conseguinte, precisava continuar a salvo. Em
27
termos políticos foi decisivo que o cristianismo procurasse o
recolhimento e, nesse recolhimento, exigisse co-assumir aquilo que
sempre foi coisa do público25
Nesse contexto, não é necessário entrarem considerações de
como se conseguiu, dentro do decorrer histórico, transformar o caráter
consciente e radicalmente antipolítico do cristianismo, de maneira a
tornar possível uma espécie de política cristã; isso foi — abstraindo-se
a necessidade histórica propiciada pela decadência do Império Romano
— obra de um único homem, Agostinho, e possibilitada pela
extraordinária tradição ainda bem viva nele do pensamento romano. A
reinterpretação da coisa política foi de importância decisiva para toda
a tradição do Ocidente e, na verdade, não apenas para a tradição das
teorias e do imaginário, mas sim para os marcos nos quais acontecia
então a verdadeira história política. Foi então que o corpo político
também aceitou a concepção de que a política é um meio para um
objetivo mais elevado e que se trata da liberdade dentro da política
apenas porque a coisa política tem de libertar determinadas áreas. Só
que a liberdade da política não é mais uma questão da minoria, mas
sim, ao contrário, tornou-se uma questão da maioria que não devia
nem precisava preocupar-se com os negócios do governo, ao passo
que foi imposto à minoria o fardo de se preocupar com a ordem
política necessária aos assuntos humanos. No entanto, esse fardo não
resultou, como em Platão e nos filósofos, da situação humana básica
da pluralidade, que liga a minoria à maioria, o um a todos. Essa
pluralidade é, ao contrário, afirmada, e o motivo que determina a
minoria assumir sobre os próprios ombros o fardo do governar não é o
medo de ser dominado por piores. Agostinho exige expressamente que
a vida dos santos também se passe numa ―sociedade‖ e supõe com o
cunho de uma Civitas Dei, um Estado de Deus, que a vida dos
homens também é determinada politicamente em condições não-
terrenas — deixando em aberto se a coisa política também é um fardo
no Além. Em todo caso, o motivo para assumir nos próprios ombros o
peso da coisa política terrena é o amor ao próximo e não o medo dele.
Essa transformação do cristianismo realiza-se no pensamento e
ação de Agostinho,26 que no final restaurou a Igreja, que secularizou o
medo cristão em segredo ao ponto de os fiéis constituírem no mundo
um espaço público totalmente novo e determinado pela religião — o
qual, embora público, não era político. O caráter público desse espaço
dos fiéis — o único no qual, através de toda a Idade Média, as
necessidades políticas específicas do homem puderam ser levadas em
conta — sempre foi ambíguo; era antes de mais nada um local de
reunião e isso significa não apenas um prédio no qual homens se
reuniam, mas um espaço que foi construído expressamente como
.
28
reunidor de homens. Como tal, porém, não devia tornar-se um espaço
de aparição, devendo ser preservado o conteúdo original da
mensagem cristã. Ficou provado ser quase impossível impedir isso,
visto que está na natureza do caráter público, constituído pela reunião
de muitos, estabelecer-se como espaço de aparição. A política cristã
sempre esteve diante da dupla tarefa de, por um lado, assegurar-se
através da influência sobre a política secular, de que o local de reunião
não político dos fiéis esteja protegido de fora, e, por outro lado,
impedir que um local de reunião se torne um espaço de aparição, e
com isso que a Igreja se torne um poder secular-mundano, entre
outros. Daí verificou-se que a vinculação com o mundo correspondente
a tudo espacial e o faz aparecer e parecer, é muito mais difícil de se
combater do que a reivindicação de poder do secular, que se
apresenta de fora para dentro. Quando a Reforma conseguiu afastar
da Igreja tudo aquilo que tem a ver com aparência e manifestação,
transformando-a de novo em local de reunião para aqueles que, no
sentido dos Evangelhos, viviam no recolhimento, desapareceu também
o caráter público desses espaços da Igreja. Ainda que ao movimento
da Reforma não se tenha seguido a secularização de toda a vida
pública, da qual ela é vista, com freqüência, como precursora, e ainda
que, no rastro dessa secularização, a religião não se tenha tornado
coisa privada, a Igreja protestante dificilmente poderia ter assumido a
tarefa de oferecer aos homens um substituto para a cidadania da
Antigüidade —tarefa que, sem dúvida, a Igreja católica realizou
durante longos séculos após o declínio do Império Romano.
Não importa como sejam essas possibilidades e alternativas
hipotéticas, o decisivo é que desde o fim da Antigüidade e com o
nascimento de um espaço eclesiástico-público, a política secular
continuou vinculada às necessidades da vida resultantes do convívio
dos homens e com a defesa de uma esfera mais elevada, que até o fim
da Idade Média estava espacial e palpavelmente na existência das
igrejas. A Igreja precisa da política e, na verdade, tanto da política
mundana dos poderes seculares como da própria política religiosa
ligada ao âmbito eclesiástico, para poder manter-se e afirmar-se na
terra e neste mundo do lado de cá — enquanto Igreja visível, ou seja,
ao contrário da invisível cuja existência apenas acreditada continuou
sem ser molestada, em absoluto, pela política. A política precisava da
Igreja — não apenas da religião, mas sim da existência espacial
palpável das instituições religiosas —, a fim de provar sua razão de ser
mais elevada, por causa de sua legitimação. O que mudou com o
despontar dos tempos modernos não foi uma modificação de função
da coisa política; não é como se, de repente, à política fosse
adjudicada uma nova dignidade própria só dela. O que mudou foram,
29
pelo contrário, os âmbitos pelos quais a política parecia ser necessária.
O âmbito do religioso recaiu no espaço do privado, ao passo que o
âmbito da vida e de suas necessidades — que tanto na Antigüidade
como na Idade Média valera por excelência como âmbito privado —
recebeu nova dignidade e, na forma da sociedade, apareceu em
público.
Nisso, devemos diferenciar politicamente entre a democracia
igualitária do século XIX para a qual a co-participação de todos no
governo, seja em que forma for, é sempre um sinal imprescindível da
liberdade do povo, e o despotismo esclarecido do começo dos tempos
modernos para o qual valia que ―liberty and freedom consists in
having the government of those laws by wich their life and
their goods may be most their own: ‘tis not for having share
in government, that is nothing pertaining to’ em27‖. Em ambos
os casos é obrigação do governo em cujo espaço de ação cai a coisa
política a partir de então, proteger a livre produtividade da sociedade e
a segurança do indivíduo em seu âmbito privado. Não importa como
seja a relação entre cidadão e Estado: liberdade e política continuam
separadas uma da outra da maneira mais categórica, e ser livre no
sentido de uma atividade positiva a se desenvolver livremente está
localizado num âmbito que trata de coisas que, de acordo com sua
natureza, não podem ser, em absoluto, comuns a todos, ou seja, trata
da vida e da propriedade, quer dizer, trata daquilo que é próprio da
maioria. O fato de essa esfera do próprio, do idion, cujo permanecer
nela era tido como limitação ̳idiota‘ pela Antigüidade, ampliasse
enormemente através do novo fenômeno de um espaço social e de
forças produtivas sociais e não-individuais, não altera em nada o
estado de coisas, segundo o qual as atividades necessárias à
manutenção da vida e da propriedade, bem como para a melhoria da
vida e o aumento da propriedade, estão subordinadas à necessidade e
não à liberdade. O que os tempos modernos esperavam de seu Estado
e o que esse Estado fez, de fato, em grande escala foi uma libertação
dos homens para o desenvolvimento das forças produtivas sociais,
para a produção comum de mercadorias necessárias para uma vida
̳feliz‘.
Essa concepção de política dos tempos modernos para a qual o
Estado é uma função da sociedade ou um mal necessário para a
liberdade social, impôs-se, tanto em termos práticos como teóricos
contra as concepções moldadas de maneira bem diferente e inspiradas
pela Antigüidade, de uma soberania do povo ou da nação, que se
manifestaram em todas as revoluções dos tempos modernos. Só para
essas revoluções, da americana e francesa do século XVIII até a
revolução húngara mais recente, coincidem de maneira direta o ter-
30
participação-no-governo e o ser-livre. Mas essas revoluções e as
experiências diretas nelas verificadas sobre as possibilidades do agir
político não puderam, pelo menos até hoje, transformar-se em
nenhuma forma de Estado. Desde o advento do Estado nacional é
opinião corrente ser obrigação do governo proteger a liberdade da
sociedade para dentro e para fora, se preciso por meio da força. A
participação dos cidadãos no governo, qualquer que seja a forma, só é
tida como necessária para a liberdade porque o Estado, que
necessariamente precisa dispor de meios de força, precisa ser
controlado pelos governados no exercício dessa força. Acrescente-se a
informação de que, com o estabelecimento de uma esfera por mais
que limitada do agir político, surge um poder do qual a liberdade só
pode ser protegida se seu exercício for fiscalizado o tempo todo.
O que hoje entendemos por governo constitucional, não importa
se de natureza monárquica ou republicana, é, em essência, um
governo controlado pelos governados, restringido em suas
competências de poder e em sua aplicação de força. É indiscutível que
a restrição e controle ocorrem em nome da liberdade, tanto da
sociedade como do indivíduo; trata-se de estabelecer limites, os mais
amplos possíveis e necessários, para o espaço estatal do governar, a
fim de possibilitar a liberdade fora de seu espaço. Portanto, não se
trata, em todo caso, de possibilitar a liberdade de agir e de atuar
politicamente; ambos continuam sendo prerrogativa do governo e dos
políticos profissionais que se oferecem ao povo como seus
representantes no sistema de partidos, para representar seus
interesses dentro do Estado e, se for o caso, contra o Estado. A
relação entre política e liberdade, em outras palavras, também é
entendida nos tempos modernos de modo a ser a política um meio e a
liberdade seu objetivo mais elevado; portanto, a relação em si não
mudou, embora o conteúdo e a extensão da liberdade se tenham
modificado de forma bastante extraordinária. Assim, a pergunta sobre
o sentido da política é respondida por categorias e conceitos que são
extraordinariamente antigos e, por conseguinte também
extraordinariamente veneráveis. Embora os tempos modernos se
diferenciem, de forma tão decisiva, em seus aspectos políticos, de
todos os tempos anteriores, assim como também nos aspectos
espirituais e materiais. Só o fato da emancipação das mulheres e da
classe operária, quer dizer de grupos de homens que nunca antes
podiam mostrar-se na vida pública, dá um rosto radicalmente novo a
todas as questões políticas.
Aquilo que concerne a essa determinação da política como um
meio para o objetivo de uma liberdade situada fora de seu âmbito
também vale para os tempos modernos, embora nós só possamos
31
atestar isso numa medida bastante limitada. Ela é, entre as respostas
modernas para a pergunta sobre o sentido da política, aquela que
continua mais estreitamente ligada à tradição da filosofia política
ocidental e, dentro do pensamento estatal-nacional, mostra-se da
maneira mais clara no princípio do primado da política externa,
abordado por Ranke, mas que serve de base a todos os Estados
nacionais28. Muito mais característico do caráter igualitário das formas
modernas de Estado e da emancipação de operários e mulheres
ocorrida nos tempos modernos, na qual, falando em termos políticos,
se manifesta seu aspecto mais revolucionário, é uma definição de
Estado derivada do primado da política interna, segundo a qual ―o
Estado enquanto portador do poder é uma instituição indispensável
para a sociedade‖ (Theodor Eschenburg29). Entre essas duas
concepções — entre a opinião de o Estado e a coisa política serem uma
instituição indispensável para a liberdade, e a opinião que vê nele uma
instituição indispensável para a vida — está uma contradição
intransponível da qual, aliás, os defensores dessas teses quase não
têm consciência. Trata-se de uma grande diferença se a liberdade ou a
vida é cotada como o bem com valor mais alto —como parâmetro pelo
qual se orienta e se julga todo o agir político. Se entendemos por
política algo que, não importa qual a escala, surgiu em sua essência a
partir da polis e continua ligado a ela, então forma-se, no acoplamento
entre política e vida, uma contradição interna que revoga e arruína
justamente a coisa política específica.
Essa contradição manifesta-se da maneira mais palpável porque
sempre foi prerrogativa da política exigir, em certas circunstâncias, o
sacrifício da vida dos homens que nela participam. Só que, é claro,
essa exigência deve ser entendida no sentido de exigir-se do indivíduo
que sacrifique sua vida para o processo de vida da sociedade; de fato,
existe aqui uma relação que pelo menos impõe um limite para o risco
de vida: ninguém pode ou deve arriscar sua vida se com isso colocar
em perigo a vida da Humanidade. Ainda voltaremos a examinar essa
relação, que como tal chegou à nossa consciência porque só agora
dispomos da possibilidade de pôr um fim à vida da Humanidade e de
toda a vida orgânica30; na verdade, quase não existe uma categoria
política e quase não existe um conceito político tradicional que, medido
nessa mais jovem possibilidade, não se tenha demonstrado
ultrapassado na teoria e inaplicável na prática e, na verdade,
justamente porque, em certo sentido, o que está em jogo hoje, pela
primeira vez, também na política externa, é a vida, ou seja, a
sobrevivência da Humanidade.
Mas essa relação da própria liberdade com a sobrevivência da
Humanidade não risca do mapa a oposição entre liberdade e vida, na
32
qual se assentou toda a coisa política e que continua decisiva para
todas as virtudes especificamente políticas. Até se poderia dizer, com
muito direito, que é esse próprio fato, de que hoje o que está em jogo
na política é a existência nua e crua de todos, o sinal mais evidente da
calamidade em que nosso mundo caiu — calamidade que, entre outras
coisas, consiste em a política ameaçar ser riscada da face da Terra.
Pois o risco a ser corrido por aquele que lida na esfera política — na
qual deve levar tudo a conselho, antes de sua vida31
não à vida da sociedade ou da nação ou do povo, para o qual ele
sacrificaria sua vida; diz respeito muito mais à liberdade, tanto a
própria como a do grupo ao qual o indivíduo pode pertencer, e com ela
a segurança da existência do mundo no qual esse grupo ou esse povo
vive, e que ela construiu no trabalho de gerações para encontrar um
alojamento seguro e calculado a longo prazo para agir e conversar —
quer dizer para as verdadeiras atividades políticas.32 Em circunstâncias
normais, ou seja, nas circunstâncias que eram decisivas na Europa
desde a Antiguidade romana, a guerra era de fato apenas a
continuação da política por outros meios e isso significa que ela
sempre podia ser evitada se um dos adversários decidisse aceitar as
exigências do outro. Tal aceitação poderia custar a liberdade, mas não
a vida.
Essas circunstâncias, como todos sabemos, hoje não existem
mais; quando olhamos para trás, elas nos parecem uma espécie de
paraíso perdido. Mas se o mundo em que vivemos agora também não
deriva e nem se explica — de maneira causal ou no sentido de um
processo automático — pelos tempos modernos, mesmo assim ele
cresceu no solo desses tempos modernos. No que concerne à coisa
política, isso significa que tanto a política interna para a qual o objetivo
mais elevado era a própria vida como a política externa que se
orientava pela liberdade como o bem mais elevado, viam na força e no
agir violento seu verdadeiro conteúdo. Por fim, era decisivo que o
Estado se organizasse, de fato, como ̳portador da força‘ — não
importando se o objetivo dos meios da força eram determinados pela
vida ou pela liberdade. Em todo caso, a pergunta sobre o sentido da
política diz respeito hoje à conveniência ou inconveniência desses
meios públicos de força; ela surge do simples fato de a força que devia
proteger a vida ou a liberdade tornar-se tão terrivelmente poderosa
que ameaça não apenas a liberdade, mas sim a vida. Como é
justamente o aumento dos meios estatais de força que põe em perigo
o processo de vida de toda a Humanidade, a resposta — em si já
bastante duvidosa — que os tempos modernos oferecem à pergunta
sobre o sentido da política tornou-se hoje duplamente duvidosa.
, — diz respeito
33
A culpa por ter sido possível esse monstruoso aumento dos
meios de força e extermínio cabe não apenas às invenções técnicas,
mas também ao fato de que o espaço público-político tornou-se um
lugar de força, não apenas no auto-entendimento teórico dos tempos
modernos, mas também na realidade brutal. Só por isso foi possível o
progresso técnico transformar-se sobretudo num progresso das
possibilidades de extermínio mútuo. Como em toda parte onde os
homens agem em comum, surge o poder e como o agir em comum
dos homens acontece essencialmente no espaço político, o poder
potencial inerente a todos os assuntos humanos se fez valer num
espaço dominado pela força. Com isso, surge a ilusão de que poder e
força seriam a mesma coisa; e nas condições modernas, esse é
realmente o caso em amplas áreas. Porém, poder e força não são a
mesma coisa quanto à sua origem e sentido original; em certos
sentidos, chegam a ser antagonismos. Mas onde a força, que é um
fenômeno do indivíduo ou da minoria, liga-se ao poder, que só é
possível entre muitos, surge um aumento monstruoso do potencial de
força — por sua vez, provocado pelo poder de um espaço organizado,
mas que depois, como todo potencial de força, aumenta e se
desenvolve às custas do poder.
A pergunta sobre que papel cabe à força no trato interestatal dos
povos, e sobre como dele se pode eliminar o uso dos meios de força,
está hoje, desde a invenção das armas atômicas, no primeiro plano de
toda a política. Mas o fenômeno do tornar-se-superior da força às
custas de todos os outros fatores políticos é mais antigo; já se
mostrou na Primeira Guerra Mundial e nas grandes batalhas materiais
no teatro de guerra ocidental. O notável é que esse novo papel funesto
de uma força que se desenvolve de maneira automática e aumenta
sem cessar, de parte de todos os participantes, pegou os povos, os
estadistas e a opinião pública de forma totalmente despreparada e de
surpresa. De fato, o aumento da força no espaço público-estatal
consumou-se pelas costas dos homens atuantes, por assim dizer —
num século que supostamente é tido como um dos mais pacíficos e
menos violentos da História. Os tempos modernos que viam com mais
firmeza do que nunca a política apenas como um meio para a
conservação e fomento da vida da sociedade e, em conseqüência
disso, desenvolveu um esforço para limitar as competências da coisa
política ao mais necessário, puderam imaginar, não sem razão, que
lidariam com o problema da força de melhor forma que todos os
séculos anteriores. O que fizeram, de fato, foi eliminar, por completo,
a violência e o domínio direto do homem sobre o homem da esfera na
vida social que se alarga sem cessar. A emancipação da classe
operaria e das mulheres, quer dizer, de duas categorias que em toda a
34
história pré-moderna foram submetidas à força, indica, da maneira
mais clara, o ponto culminante desse desenvolvimento.
Nisso queremos deixar em suspenso por enquanto se essa
redução da violência na vida da sociedade pode ser equiparada, de
fato, com um ganho de liberdade. Em todo caso, no sentido da
tradição política, o não-ser-livre é duplamente determinado. Ele existe
quando se é submetido à força de um outro, mas também existe, e até
mesmo mais originalmente, quando se está sujeito à nua e crua
necessidade da vida. A atividade inerente à obrigação com a qual a
própria vida nos obriga a procurar o necessário é o trabalho. Em todas
as sociedades pré-modernas, o homem podia libertar-se desse
trabalho, forçando outros homens a trabalharem para ele, quer dizer,
por meio da força e da dominação. Na sociedade moderna, o
trabalhador não está sujeito a nenhuma força nem a uma dominação,
ele é forçado pela necessidade imediata inerente à própria vida.
Portanto, aqui a necessidade substituiu a força e é duvidoso qual
coação é mais repugnante, a coação da força ou a coação da
necessidade. Além disso, todo o desenvolvimento da sociedade só vai
até ali, ou seja, até o momento em que a automação abolir realmente
o trabalho, tornando todos os seus membros ̳trabalhadores‘ na
mesma medida — homens cuja atividade, não importa em que
consista, serve sobretudo para obter o necessário para a vida.
Também nesse sentido, o afastamento da força da vida da sociedade
teve como conseqüência, em primeiro lugar, o fato de ser concedido
um espaço muito maior do que antes à necessidade com a qual a vida
coage a todos. Na verdade, a vida da sociedade é dominada não pela
liberdade, mas sim pela necessidade; e não se trata de um acaso o
fato de o conceito de necessidade ter-se tornado tão dominante em
todas as modernas filosofias da história, nas quais o pensamento dos
tempos modernos se orienta filosoficamente e procura chegar a um
autoconhecimento.
O afastamento da força para fora do âmbito do domicílio e da
esfera semipública da sociedade ocorreu de forma totalmente
consciente; para poder existir sem força na vida cotidiana, o homem
fortaleceu a força da mão pública, do Estado, da qual acreditava poder
continuar senhor por tê-la definido expressamente como um mero
meio para o objetivo da vida social, do livre desenvolvimento das
forças produtivas. Não ocorreu aos tempos modernos que os próprios
meios de força poderiam tornar-se ̳produtivos‘, ou seja, aumentar
tanto (e mais ainda até) quanto as outras forças produtivas da
sociedade; isto porque para ela a verdadeira esfera do produtivo
coincidia com a sociedade e não com o Estado. O Estado era tido como
especificamente improdutivo e, em caso extremo, como um fenômeno
35
parasitário. Justamente porque se limitou a força ao âmbito estatal
que, de mais a mais, estava sujeito, nos governos constitucionais, ao
controle da sociedade através do sistema de partidos, acreditou-se ter
limitado ao mínimo a própria força, mínimo esse que como tal
permaneceria constante.
Sabemos que ocorreu o contrário. A época mais pacífica e menos
violenta, vista em termos históricos, acarretou o maior e mais terrível
desenvolvimento dos meios de força. E isso só é um paradoxo
aparente. O que não se calculou foi a combinação específica de força e
poder que só poderia realizar-se na esfera estatal-pública, porque é
nela que os homens agem em conjunto e geram poder. Não importa
quão estreitas sejam as competências desse âmbito, nem com que
exatidão se fazem suas fronteiras através de constituição e outros
controles; o simples fato de que ele deve continuar sendo um âmbito
público-político produz poder: e esse poder deve tornar-se uma
calamidade se concentrado quase exclusivamente em torno da força,
como é o caso dos tempos modernos, porque essa força desloca-se da
esfera privada do indivíduo para a esfera pública. Por mais absoluta
que possa ter sido a força do dono da casa sobre sua família no
sentido mais amplo, nos tempos pré-modernos — e, com certeza, ela
foi grande o bastante para designar o governo da casa de despótico no
sentido pleno da palavra —, essa força estava sempre limitada ao
indivíduo que a exercia; era uma força totalmente impotente que
continuava estéril tanto econômica como politicamente. Por mais
funesto que o exercício da força do dono da casa fosse para os
oprimidos, os próprios meios de força não poderiam prosperar nessas
circunstâncias; não poderiam tornar-se um perigo para todos porque
não havia um monopólio da força.
Vimos que a concepção de que a coisa política é um império dos
meios, cujo objetivo e parâmetro devem ser procurados fora deles é
extraordinariamente antiga e também extraordinariamente venerável.
Contudo, trata-se daquilo que no mais recente desdobramento se
tornou discutível, dessas concepções que moveram aquilo que
originalmente eram fenômenos fronteiriços e marginais da coisa
política — a força que em certas circunstâncias é necessária para
proteger, e o sustento da vida que deve ser assegurado antes que a
liberdade política seja possível — para o centro de todo agir político,
estabelecendo a força como meio cujo objetivo mais elevado devia ser
a conservação e a instituição da vida. A crise reside em que o âmbito
político ameaça aquilo por cuja causa ele parecia justificado. Nessa
situação modifica-se a pergunta sobre o sentido da política. A pergunta
hoje quase não é: qual é o sentido da política? É muito mais natural ao
sentimento dos povos que por toda parte se sentem ameaçados pela
36
política e nos quais os melhores se distanciam da política de maneira
consciente que a pergunta seja: tem a política ainda algum sentido?
As opiniões sobre o que é a política de fato servem de base para
as questões que esboçamos em resumo. Essas opiniões quase não
mudaram no decorrer de muitos séculos. Mudou apenas aquilo que
originalmente era conteúdo de juízos, que provinham diretamente de
determinadas experiências legítimas — o juízo e condenação da coisa
política a partir da experiência do filósofo ou do cristão, bem como a
correção de tais juízos e a justificação limitada da coisa política —, e
que há muito tempo já se tornou preconceito. Os preconceitos sempre
desempenham um grande e legítimo papel no espaço público-político.
Eles dizem respeito àquilo que todos nós compartilhamos sem querer
uns com os outros e onde não julgamos mais porque quase não temos
mais oportunidade de ter a experiência direta. Todos esses
preconceitos são juízos passados, desde que sejam legítimos e não
meros boatos. Nenhum homem pode viver sem eles porque uma vida
sem nenhum preconceito exigiria um estado de alerta sobre-humano,
uma prontidão que não se pode ter de modo constante para a todo
momento se encontrar e se deixar atingir pela totalidade da realidade,
como se cada dia fosse o primeiro ou o Dia do Juízo Final. Portanto,
preconceitos e disparates não são a mesma coisa. Justamente porque
os preconceitos sempre têm uma legitimidade inerente a eles é que se
deve aventurar-se com eles apenas quando eles não preencherem
mais sua função; significa quando não mais adequados para tirar uma
parte da realidade do homem julgante. Mas é justamente aí, quando
os preconceitos entram em evidente conflito com a realidade, que
começam a se tornar perigosos, e os homens que não se sentem mais
protegidos deles em seu pensamento, começam a fantasiá-los e
transformá-los em fundamento daquela espécie pervertida de teorias,
em geral chamadas de ideologias ou de mundividências. Contra tais
formações de ideologia surgidas de preconceitos, de nada adianta a
apresentação de uma visão de mundo oposta à respectiva ideologia
corrente, mas sim apenas a tentativa de substituir os preconceitos por
juízos. Nisso é inevitável que se reduza o preconceito ao juízo nele
contido e esse juízo, por seu turno, à experiência nele contida e da
qual ele nasceu.
Os preconceitos que, na crise de hoje, se opõem a uma
compreensão teórica daquilo que está em jogo, de verdade, na
política, dizem respeito a quase todas as categorias políticas nas quais
estamos habituados a pensar — mas sobretudo à categoria meio-
objetivo que entende a coisa política como um fim situado fora de si
mesmo, além da concepção de que o conteúdo da coisa política é a
força e, por fim, a convicção de que o domínio é o conceito central da
37
teoria política. Todos esses juízos e preconceitos nascem de uma
desconfiança contra a política, em si não injustificada. Mas essa
antiquíssima desconfiança transformou-se no preconceito atual contra
a política. Por trás dela está, desde a invenção da bomba atômica, o
medo muitíssimo justificado de que a Humanidade poderia apagar-se
do mapa por meio da política e dos meios de força à sua disposição. É
desse medo que nasce a esperança de a Humanidade ter juízo e, ao
invés de se eliminar, elimine a política. Essa esperança não é menos
justificada do que aquele medo. Pois a concepção segundo a qual a
política existiu sempre e em toda parte onde existiram e existem
homens, é ela própria um preconceito; o ideal socialista de uma
condição final da Humanidade sem Estado — que, em Marx, significa
sem política, não é de maneira alguma utópico: só é pavoroso33
Está na natureza de nosso objeto, no qual sempre temos a ver
com a maioria e o mundo surgido entre ela, a opinião pública não ser
omitida em seu tratamento. Porém, de acordo com essa opinião
pública, a pergunta sobre o sentido da política acendeu hoje por
completo na ameaça ao homem através da guerra e das armas
atômicas. Desse modo, é essencial que comecemos nossa discussão
com uma reflexão sobre a questão da guerra.
38
A GUERRA TOTAL
Quando a primeira bomba atômica caiu sobre Hiroshima, provocando
um fim rápido e inesperado da Segunda Guerra Mundial, um horror
percorreu o mundo. Naquela época ainda não se podia saber quão
justificado era esse horror. Uma única bomba atômica arrasou urna
cidade, fazendo em apenas poucos minutos o que o emprego
sistemático de ataques aéreos precisaria de semanas ou mesmo
meses. Que a condução da guerra, de novo como na Antigüidade,
podia dizimar não apenas os povos com ela relacionados, mas também
podia transformar num deserto o mundo por eles habitado, era do
conhecimento dos especialistas desde o bombardeio de Coventry e do
conhecimento de todo o mundo desde os ataques em massa, com
bombas, às cidades alemãs. A Alemanha já era um campo de ruínas, a
capital do país um monte de escombros, e a bomba atômica tal como
a conhecemos da Segunda Guerra Mundial — se bem que já repre-
sentasse algo absolutamente novo na história da ciência — estava no
cardápio da moderna condução da guerra e dai no âmbito dos
assuntos humanos, ou melhor, inter-humanos, dos quais a política
trata. Não mais como o ponto culminante, alcançável por um salto ou
num curto-circuito, através dos quais por assim dizer, o acontecer
avança com velocidade sempre alucinante.
Além disso, a destruição do mundo e o extermínio da vida
humana por meio da força não são novos nem terríveis e aqueles que
sempre achavam que uma condenação pura e simples da força
acabava no final numa condenação da coisa política, só deixaram de
ter razão há poucos anos, mais exatamente desde a invenção da
bomba de hidrogênio. Na destruição do mundo, nada é destruído a não
ser um produto da mão humana, e a força que é empregada para isso
corresponde, da maneira mais exata, à violência que é inerente, de
forma indissolúvel, a todos os processos humanos de produção. Os
meios de força necessários para a destruição são criados, por assim
dizer, à imagem e semelhança das ferramentas de produção, e o
instrumentário técnico de cada época abrange ambas as coisas na
mesma medida. O que os homens produzem também pode ser por
eles destruído; o que destroem também pode ser por eles
reconstruído. O poder destruir e o poder produzir estão em equilíbrio.
O vigor que destrói o mundo e lhe causa violência tem o mesmo vigor
das mãos que violentam a Natureza e destrói uma coisa natural —
talvez uma árvore para obter madeira e para produzir algo de madeira
—, para moldar o mundo.
Porém, não está em vigência incondicional o fato de que o poder
destruir e o poder produzir estão em equilíbrio. Isso só é válido para o
39
produzido por homens, não para o âmbito menos palpável e nem por
isso menos real das relações humanas, que surgiram através do agir
no sentido mais amplo. Mais tarde retornaremos a isso. O decisivo
para nossa situação de hoje é que, no verdadeiro mundo material, só
pode haver equilíbrio entre destruir e reconstruir enquanto a técnica
tenha a ver apenas com puros processos de produção e tal não é mais
o caso desde a descoberta da energia atômica, embora vivamos hoje
num mundo, em média, ainda determinado pela Revolução Industrial.
Também nesse mundo não temos mais a ver apenas com coisas
naturais, que aparecem de novo, transformadas de uma maneira ou
de outra, no mundo moldado pelos homens, mas sim com processos
naturais gerados pelos homens através da imitação e conduzidos
diretamente para o mundo dos homens. Já é característico desses
processos que se desenrolam de modo idêntico ao processo num
motor a explosão, produzindo portanto, em termos históricos,
catástrofes, cada uma dessas explosões ou catástrofes propulsionando
o processo. Nós nos encontramos, em quase todas as áreas da vida,
num processo assim, no qual as explosões e catástrofes significam não
apenas o declínio, mas também um progresso contínuo incitado por
elas —mas por enquanto não deve ser levado em consideração em
nosso contexto o caráter discutível dessa espécie de progresso. Talvez
a melhor maneira ̳política‘ de imaginar isso seja o fato de a
catastrófica derrota da Alemanha ter contribuído, de maneira
essencial, para tornar a Alemanha o país mais moderno e progressista
da Europa, ao passo que ficaram para trás os países que, como a
América, não são tão exclusivamente determinados pela técnica, nos
quais a velocidade do processo de produção e consumo torna
supérfluas as catástrofes por enquanto, ou os países como a França
que passaram por uma catástrofe palpavelmente destruidora. O
equilíbrio entre produzir e aniquilar não é perturbado através dessa
técnica moderna e do processo com o qual ela comprometeu o mundo
dos homens. Pelo contrário, parece que essas capacidades
estreitamente análogas soldaram-se de forma indissolúvel nesse
processo, de tal modo que produzir e destruir, mesmo quando
executados nas maiores medidas, se manifestam no final como duas
fases difíceis de serem separadas uma da outra, do mesmo processo
do progresso, no qual — para escolher um exemplo do dia a dia — a
demolição de uma casa é apenas o primeiro estágio da construção, e a
construção dessa casa, planejada apenas para um determinado tempo
de vida, já pode ser incluída num processo incessante de demolir e
reconstruir.
Tem-se duvidado, com freqüência e com certa razão, que o
homem, em meio a esse processo do progresso por ele mesmo
40
desencadeado, que transcorre necessariamente de maneira
catastrófica, ainda possa continuar sendo senhor e mestre do mundo
por ele construído e dos assuntos humanos. Nisso, permanece sendo
consternador o surgimento das ideologias totalitárias, nas quais o
homem já se entende como expoente desse processo catastrófico por
ele mesmo desencadeado, cuja função essencial consiste em estar a
serviço do processo do progresso e propulsioná-lo cada vez mais
rápido. Porém, a respeito dessa adequabilidade inquietante, não se
deve esquecer que isso são apenas ideologias e que também as forças
da Natureza que o homem forçou a permanecerem a seu serviço,
ainda devem ser calculadas em cavalo-vapor, quer dizer, em unidades
naturalmente conhecidas, devidamente deduzidas do meio-ambiente
imediato do homem. Se o homem consegue dobrar ou centuplicar sua
própria força por meio da utilização da Natureza, então se pode ver
nisso uma violentação da Natureza ao se concordar com a Bíblia,
segundo a qual o homem foi criado para cuidar da terra e para servi-
la, e não o contrário, ou seja, forçá-la a ficar às suas ordens. Mas não
importa quem serve quem aqui, ou quem foi predeterminado por
decreto divino para estar a serviço: de qualquer modo continua
incontestável que a força do homem, tanto como força produtiva ou
mão-de-obra, é um fenômeno da Natureza, sendo o poder inerente a
essa força. Portanto, é natural que, por fim, enquanto o homem tiver a
ver com as forças da Natureza, permanece num âmbito terrestre-
natural ao qual ele e sua própria força pertencem, pelo fato de ser um
ser vivo orgânico. Isso não se modifica pelo fato de ele empregar a
própria força junto com a força retirada da Natureza para produzir algo
totalmente não-natural, ou seja, um mundo — algo que não se
realizaria sem ele, de maneira apenas ̳natural‘. Ou dito de outra
maneira: enquanto o poder produzir e o poder destruir estiverem em
equilíbrio, tudo ainda estará acontecendo de certa forma correta, e o
que as ideologias totalitárias declararem sobre a escravização do
homem nos processos por ele desencadeados é, afinal de contas, um
fantasma ao qual se opõe o fato de os homens continuarem sendo
senhores do mundo por eles construído e mestres do potencial de
destruição por eles produzido.
Tudo isso só poderia ser modificado com a descoberta da energia
atômica, ou seja, com a invenção de uma técnica propulsionada por
processos de energia nuclear. Pois, aqui não são desencadeados
processos naturais, mas sim processos que não acontecem na
natureza terrestre, são conduzidos para a Terra para produzir o mundo
ou destruir o mundo. Esses próprios processos provêm do Universo
que cerca a Terra, e o homem que os coage com sua força, age aqui
não mais como um ser vivo natural, mas como um ser que, apesar de
41
só poder viver sob as condições terrestres e de sua natureza, pode,
entretanto, ambientar-se também no Universo. Essas forças universais
não podem ser medidas mais em cavalo-vapor ou alguma outra
medida natural e como elas são de natureza não-terrestre, podem
destruir a natureza da Terra assim como os processos naturais
manipulados pelo homem podem destruir o mundo construído pelo
homem. O horror que se apoderou da Humanidade quando se ouviu
falar da primeira bomba atômica foi um horror em relação a essa força
oriunda do Universo, quer dizer, no sentido mais verdadeiro da
palavra, uma força sobrenatural; a extensão das casas e ruas
destruídas assim como o número de vidas humanas exterminadas só
tiveram importância pelo fato de a fonte de energia recém-descoberta
causar, logo em seu nascimento, morte e destruição na maior escala,
possuída de uma tremenda força simbólica capaz de ficar gravada na
memória.
Esse horror mesclou-se e logo foi sobrepujado pela indignação
não menos justificada e, no momento, muito mais atual porque a
superioridade absoluta da nova arma foi experimentada em cidades
habitadas, superioridade essa que poderia ter sido demonstrada tão
bem quanto — e politicamente não com menos eficácia — num deserto
ou numa ilha desabitada. Também nessa indignação ficou-se sabendo
com antecipação de algo do qual só sabemos hoje, que na verdade é
monstruoso, ou seja, o fato não mais negado pelo estado-maior das
grandes potências, de que uma guerra, depois de posta em
andamento, será conduzida necessariamente com as armas que
estiverem à disposição das respectivas potências que a estão
travando. Isso só é natural se o objetivo da guerra não for mais
limitado e seu fim não for mais um acordo de paz entre os governos
em litígio, senão que a vitória deve produzir o aniquilamento estatal ou
até mesmo físico do adversário. Essa possibilidade só foi expressada
de maneira vaga na Segunda Guerra Mundial, pois já estava embutida
na exigência de uma capitulação incondicional, apresentada à
Alemanha [e] ao Japão, mas só foi realizada em todo seu horror
quando as bombas atômicas demonstraram, de repente, para o mundo
inteiro que, no caso das ameaças de completo extermínio, não se
tratava de conversa fiada vazia, senão que já estavam disponíveis, de
fato, os meios necessários para isso. Com certeza, hoje ninguém mais
duvida que uma terceira guerra mundial, no desenvolvimento
conseqüente dessas possibilidades, dificilmente terminará de outra
maneira que não com o extermínio dos derrotados. Todos nós já
estamos tão presos no feitiço da guerra total que quase não
conseguimos imaginar que, depois de uma guerra entre a Rússia e a
América, a Constituição americana ou o regime atual russo possa
42
sobreviver a uma derrota. Mas isso significa que, numa guerra futura,
não estará em jogo o ganho ou a perda do poder, as fronteiras,
mercados de venda e espaço vital, quer dizer, coisas que em si
poderiam ser alcançadas sem a força, no caminho da negociação
política. Com isso, a guerra deixou de ser a ultima ratio das
negociações que ocorrem em conferências, nas quais os objetivos da
guerra eram assentados no momento da suspensão das negociações,
de modo que as ações militares que eclodiam depois nada mais eram,
de fato, que a continuação da política por outros meios. Aqui trata-se
muito mais de alguma coisa que jamais poderia ser, de maneira
natural, objeto de negociações, trata-se da existência nua e crua de
um país e de um povo. Somente nesse estágio — em que a guerra não
pressupõe mais como viável a coexistência das partes inimigas e só
quer liquidar, de maneira violenta, os conflitos surgidos entre elas — a
guerra deixou realmente de ser um meio da política e começa, na
condição de guerra de extermínio, a romper os limites impostos à
coisa política e, com isso, a se auto-exterminar.
Essa condução da guerra total, como se diz hoje em dia, tem sua
origem, como se sabe, nas formas de domínio totalitário, com as quais
está forçosamente associada; a guerra de extermínio é a única guerra
conveniente ao sistema totalitário. Foram países de governo totalitário
que proclamaram a guerra total, mas com ela impingiram
necessariamente a lei de seu agir ao mundo não-totalitário. Mas
quando um princípio de tamanha envergadura vem ao mundo, é quase
impossível limitá-lo a talvez um conflito entre países totalitários e não-
totalitários. Isso ficou patente quando a bomba atômica foi empregada
contra o Japão e não contra a Alemanha de Hitler, para a qual ela foi
originalmente produzida. O revoltante nesse caso foi, entre outras
coisas, o fato de que se lidava, na verdade, com uma potência
imperialista, mas não com uma potência totalitária.
O horror que se propaga a todas as considerações políticas-
morais e a imediata indignação reagente política e moral tinham em
comum a compreensão do que a guerra total significava, de fato, e o
reconhecimento de que a condução da guerra total era um fato
consumado não apenas para os países de governo totalitário e os
conflitos por eles causados, mas sim para o mundo todo. Aquilo que a
princípio parecia impossível desde os romanos e, de fato, nos três ou
quatro séculos que chamamos de tempos modernos, posto que não
estava mais no coração do mundo civilizado o extermínio de povos
inteiros e o arrasar de civilizações inteiras, foi empurrado, de novo, de
um só golpe, para o âmbito do possível-possível-demais. Essa
possibilidade, embora nascida como resposta para uma ameaça
totalitária — uma vez que quase nenhum cientista teria pensado em
43
produzir a bomba atômica se não precisasse recear que a Alemanha de
Hitler pudesse fabricar e empregar a bomba —, tornou-se de imediato
uma realidade que quase não tinha mais a ver com o motivo que
causou seu surgimento.
Aqui, talvez pela primeira vez nos tempos modernos — embora
de maneira nenhuma na história por nós recordada, ultrapassou-se
uma restrição inerente ao agir violento, segundo a qual a destruição
resultante dos meios de força deve ser sempre parcial, deve sempre
concernir apenas a partes do mundo e a um número de vidas humanas
arranjado, mas jamais ao país inteiro ou a um povo inteiro. Mas
aconteceu com bastante freqüência na História o mundo de um povo
inteiro ser arrasado, os muros da cidade demolidos, os homens
assassinados e a população restante vendida como escrava, e só os
séculos dos tempos modernos não quiseram mais acreditar que isso
pudesse acontecer. Sempre se soube, de maneira mais ou menos
expressa, que isso representa um dos poucos pecados mortais da
coisa política. Os pecados mortais ou, falando de modo não patético, a
transposição da fronteira inerente ao agir violento consiste em duas
coisas distintas: por um lado, o matar diz respeito aqui não mais a
maiores ou menores números de homens — que, aliás, morreriam de
qualquer forma — mas sim a um povo e sua constituição política que
não são imortais na possibilidade e, no caso da constituição, até na
intenção. O que é morto, aqui, não é algo da mortal, mas sim algo
possivelmente imortal. Além disso e na mais estreita relação com isso,
a violência estende-se aqui não apenas ao produzido que, por seu
lado, também surgiu através da força e que, por conseguinte, pode ser
construído de novo por meio de um esforço poderoso, mas sim a uma
realidade política-histórica alojada nesse mundo produzido, que, como
não foi produzida, tampouco pode ser restaurada de novo. Quando um
povo perde a liberdade estatal, perde sua realidade política, mesmo
que consiga sobreviver fisicamente.
O que sucumbe aqui é um mundo de relações humanas, surgido
por meio do produzir, mas sim do agir e do falar, que em si jamais
chega a um fim e que — embora tecido com a coisa mais fugidia que
existe, a palavra passageira e o fato terrivelmente tenaz que, em
certas circunstâncias, como talvez no caso do povo judeu, pode
sobreviver milênios à perda do palpável mundo produzido. Isso,
porém, é uma exceção e, em geral, só pode existir dentro do mundo
produzido, através do sistema de relações surgidas a partir do agir, no
qual o passado continua vivendo na forma da História que fala e
sempre persuade, em cujo mundo pedras se aninham até também
falarem, testemunharem falando — mesmo que se tenha que
desenterra-las do sei da terra. É verdade que todo esse âmbito
44
verdadeiramente humano que forma a coisa política no sentido mais
estreito pode sucumbir através da força, mas ele não surgiu da força e
a determinação nele contida não é um fim por meio da força.
Esse mundo de relações não surgiu através da força ou do vigor
individual dos indivíduos, mas sim através do estar junto de muitos
indivíduos fazendo com que surgisse o poder e, na verdade, um poder
diante do qual até mesmo a maior força do indivíduo se torna
impotência. Esse poder pode ser enfraquecido por meio de todos os
fatores possíveis, assim como pode ser renovado de novo por meio de
todos os fatores possíveis; só a força pode liquidá-lo em definitivo,
quando esta se torna total e não deixa, textualmente, pedra sobre
pedra, homem ao lado de homem. Ambas as coisas estão na essência
da dominação total que, em termos de política interna, não se
contenta em restringir o indivíduo, porém aniquila todas as relações
inter-humanas por meio do terror sistemático. A ele corresponde a
guerra total que não se contenta com a destruição de pontos militares
importantes isolados, senão que arregaça as mangas — e pode
arregaçar as mangas em termos da técnica — para aniquilar todo o
mundo surgido entre os homens.
Seria relativamente fácil demonstrar que as teorias políticas e os
códices morais do Ocidente sempre tentaram excluir a verdadeira
guerra de extermínio do arsenal dos meios políticos; supostamente
seria mais fácil ainda mostrar que a eficácia dessas teorias e
exigências não andou muito bem das pernas. Está estranhamente na
natureza dessas coisas — que, no sentido mais amplo, diz respeito ao
nível de civilização que o homem impõe a si mesmo — que para elas
vale a palavra de Platão, segundo a qual é a arte poética com as
imagens e modelos por ela cunhados que ―forma os descendentes
adornados milhares de feitos dos pais da humanidade‖ (Fedro, 245).
Na Antiguidade, pelo menos no que dizia respeito à pura coisa política,
o maior objeto desses adornos formadores foi a Guerra de Tróia, em
cujos vitoriosos os gregos viam seus avós e em cujos derrotados os
romanos viam os seus. Assim, eles se tornam, como Mommsen
costumava dizer, ―o povo gêmeo‖ da Antigüidade, porque um mesmo e
único empreendimento era tido para ambos como o começo de sua
existência histórica. Essa guerra dos gregos contra Tróia — que
terminou com um aniquilamento tão completo da cidade a ponto de,
até tempos bem recentes, chegar-se a acreditar que ela nunca existiu
— poderia valer, com certeza, ainda hoje como primeiro exemplo da
guerra de extermínio.
Assim, para uma reflexão sobre o significado político da guerra
de extermínio que nos ameaça de novo pode-se ser permitido recordar
45
mais uma vez esses acontecimentos mais antigos e seus adornos —
sobretudo porque nos adornos dessa guerra tanto gregos como
romanos determinaram, de uma maneira multiplamente ligada e
multiplamente oposta para si, e com isso, em certa medida também
para nós, o que política devia significar originalmente e que espaço ela
devia ocupar na História. Nisso, é de importância decisiva o fato de a
canção de Homero não calar a respeito do homem vencido, de
testemunhar por Heitor não menos que por Aquiles e — embora a
vitória grega e a derrota troiana tenham sido decididas e garantidas de
antemão no conselho dos deuses — de essa vitória não fazer Aquiles
maior e Heitor menor, a causa dos gregos mais justa e a defesa de
Tróia não injusta. Homero também cantou a guerra de extermínio que
ficava séculos atrás de tal maneira que, em certo sentido, ou seja no
sentido da recordação poética e histórica, anulava de novo o
extermínio. Essa grande imparcialidade de Homero — que não é
nenhuma objetividade no sentido da moderna liberdade de valores,
mas sim no sentido da liberdade mais completa de interesses e da
mais completa independência do juízo da História, que em comparação
com ela consiste no juízo do homem atuante e de seu conceito de
grandeza — está no começo de todo o registro histórico, não apenas o
ocidental; posto que algo como isso que entendemos por História não
existia antes e em parte alguma, o que não torna o exemplo homérico
menos eficiente, pelo menos indiretamente. É a mesma idéia que
reencontramos na introdução de Heródoto, quando diz querer impedir
que ―feitos grandiosos e maravilhosos, realizados em parte por
helenos e em parte por bárbaros, caíssem no esquecimento‖ — ou
seja, uma idéia que, como Burckhardt observou um dia com razão,
―nenhum egípcio ou judeu poderia ter tido‖.
Sabe-se que o esforço grego para transformar a guerra de
extermínio numa guerra política jamais prosperou além da salvação
dos exterminados e vencidos, feita por Homero — posterior e
poeticamente determinada e recordativa da História e por essa
incapacidade sucumbiram, em última análise, as cidades-Estados da
Grécia. No que dizia respeito à guerra, a polis grega trilhou um outro
caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em
torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens
livres, e com isso centrou a verdadeira coisa política‘ — ou seja, aquilo
que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos negavam a
todos os bárbaros e a todos os homens não-livres — em torno do
conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o conversar-
sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como símbolo de um peitho
divino, uma força convincente e persuasiva que, sem violência e sem
coação, reinava entre iguais e tudo decidia. Em contrapartida, a guerra
46
e a força a ela ligada foram eliminadas por completo da verdadeira
coisa política, que surgia e [era] válida entre os membros de uma
polis; a polis se comportava, como um todo, com violência em relação
a outros Estados ou cidades-Estados, mas, com isso, segundo sua
própria opinião, comportava-se de maneira ̳a política‘. Por
conseguinte, nesse agir guerreiro, também era abolida
necessariamente a igualdade de princípio dos cidadãos, entre os quais
não devia haver nenhum reinante e nenhum vassalo. Justamente
porque o agir guerreiro não pode dar-se sem ordem e obediência e ser
impossível deixar-se as decisões por conta da persuasão, um âmbito
não-político fazia parte do pensamento grego. Entretanto, a esse
âmbito pertencia, no fundo, tudo aquilo que entendemos por política
externa; aqui, a guerra não é a continuação da política com outros
meios, mas sim, ao contrario, o negociar e o firmar tratado eram
sempre entendidos como uma continuação da guerra por outros
meios, com os meios da astúcia e da fraude.
Mas, a eficácia do homérico sobre o desenvolvimento da polis
grega não se esgotou nessa eliminação apenas negativa da força para
fora do âmbito da coisa política, o que só teve como conseqüência as
guerras, tal como antes, serem conduzidas segundo o princípio de que
o mais forte faz o que pode, e o mais fraco suporta o que precisa
suportar. O verdadeiro homérico na representação da Guerra de Tróia
só teve seu pleno efeito no modo em que a polis inclui em sua forma
de organização o conceito da luta como uma forma de convívio
humano não apenas legítimo, mas também o mais elevado, em certo
sentido, O que em geral se chama de espírito agonal dos gregos e que,
sem dúvida, ajuda a explicar (se é que algo assim deve ser explicado)
que nós encontremos, nos poucos séculos de seu apogeu, uma
genialidade maior e mais significativa — concentrada em
simplesmente todas as áreas do espírito — do que em qualquer outra
parte, não é, de maneira alguma, aquele esforço para se mostrar
como o melhor sempre e em toda parte, do qual Homero já fala e que,
de fato, possuía tamanha importância para os gregos: existe,
inclusive, em seu idioma um verbo para isso, de modo que aristeuein
(ser o melhor) podia ser entendido não apenas como um esforço, mas
sim como uma atividade que preenchia a vida. Essa competição mútua
tinha seu protótipo na luta de Heitor e Aquiles que, independente de
vitória e derrota, dá oportunidade a cada um deles de se mostrar
como é de verdade — para se pôr em evidência realmente e com isso
tornar-se completo, de fato. É muito parecido com a guerra entre
gregos e troianos, que dá a ambos a oportunidade de se manifestar
por completo, e que corresponde a uma contenda dos deuses que não
apenas dá o pleno significado à luta que está sendo travada na terra,
47
mas também indica, da maneira mais clara, que nos dois lados há algo
de divino, muito embora um desses lados esteja consagrado para a
derrota. A guerra contra Tróia tem dois lados, e Homero a vê com os
olhos do troiano não menos que com os olhos dos gregos. Essa
maneira homérica de demonstrar que todas as coisas têm dois lados,
que só se manifestam na luta, também serve de base para a palavra
de Heráclito, de que a guerra ―é o pai de todas as coisas‖. A violência
da guerra em todo seu terror origina-se aqui ainda diretamente na
força e potência do homem, que só pode dar provas dessa força inerte
nele se for enfrentado por alguma coisa ou alguém e então possa
demonstrá-la.
O que em Homero manifesta-se ainda não-separado — a violenta
força dos grandes feitos e a força irresistível das grandes palavras que
os acompanham e que justamente por isso convencem a reunião de
homens, que vêem e ouvem — encontramos mais tarde, já separadas
com bastante clareza uma da outra, nas competições — as únicas
ocasiões em que a Grécia inteira se reunia para admirar as forças
desenvolvidas sem violência — e nos desafios de oratória e no
incessante falar mútuo dentro da polis. Nisso, a bilateralidade das
coisas que em Homero se deu imediatamente no duelo, recai
exclusivamente no âmbito do falar, onde toda vitória torna-se tão
ambígua quanto a vitória de Aquiles, e uma derrota pode tornar-se tão
gloriosa quanto a de Heitor. Mas nos desafios de oratória não se fica
nos dois lados dos oradores que se manifestam neles como pessoas,
se bem que é inerente a cada discurso, de maneira imperiosa, não
importa o quão ̳objetivo‘ possa apresentar-se, ele também revelar-se
para o orador, de uma forma difícil de se apreender, mas nem por isso
menos penetrante e essencial. Aqui, a bilateralidade com a qual
Homero pôde poetar a Guerra de Tróia como um todo, torna-se uma
infinita variedade dos assuntos discutidos: desde que discutidos por
tantos na presença de muitos outros, são atraídos para a luz da
publicidade, onde são forçados, por assim dizer, a revelarem todos
seus lados. Somente em tal universalidade uma única e mesma coisa
pode revelar-se em toda sua realidade, sendo preciso ter presente que
cada coisa possui tantos lados e pode revelar-se em tantas
perspectivas quantos homens nela participam. Uma vez que o espaço
público-político é para os gregos a coisa comum (koinon), na qual
todos se reúnem, ele é o âmbito onde só então todas as coisas podem
revelar-se em toda sua universalidade. Essa capacidade fundada em
última análise na imparcialidade homérica, de ver a mesma e única
coisa primeiro de lados opostos e depois de todos os lados, que não
tem rival na Antigüidade e até nosso tempo ainda não foi superada em
sua intensidade emotiva, ainda serve de base para os truques dos
48
sofistas cuja importância para a libertação do pensamento humano das
ligações dogmáticas é subestimada, quando, seguindo-se o exemplo
de Platão, se a condena moralmente. Contudo, essa extraordinária
capacidade do argumentar tem importância de segunda categoria para
a constituição da coisa política, que se realizou pela primeira vez na
polis. O decisivo não é dar-se voltas em argumentos, nem se que
possa pôr afirmações de cabeça para baixo, mas sim que se adquiriu a
capacidade de ver, de fato, as coisas de diferentes lados: isso
significa, politicamente, que passou-se a saber abranger as muitas
posições possíveis no mundo real, a partir das quais a mesma coisa
pode ser contemplada e nas quais apresenta os aspectos mais
distintos, apesar de seu caráter particular. Isso é muitíssimo mais que
a eliminação do próprio interesse, na qual só se ganhou coisas
negativas e, além disso, ainda existe o perigo de, com a interrupção
do interesse, se perder a ligação com o mundo e a simpatia por seus
objetos e as coisas que se passam nele. A capacidade de se ver a
mesma coisa dos pontos de vista mais distintos permanece no mundo
dos homens, apenas troca a sua própria posição natural pela posição
dos outros, com os quais se está junto no mesmo mundo; consegue-
se assim uma verdadeira liberdade de movimento no mundo do
espiritual, que corre em paralela exata com a liberdade de movimento
do físico. O persuadir-um-ao-outro e o convencer-um-ao-outro que era
o verdadeiro modo do trato político dos cidadãos livres da polis,
pressupunha uma espécie de liberdade que não era ligada
imutavelmente, em termos espirituais ou físicos, ao próprio ponto de
vista ou posição.
Seu ideal característico e com isso o parâmetro para a especifica
aptidão política situa-se na phronesis, aquela compreensão do homem
político (do politikos, não do estadista que não existia em absoluto
dentro desse mundo) que tem tão pouco a ver com sabedoria que
Aristóteles até pôde definir em acentuada oposição à sabedoria dos
filósofos. Compreensão num estado de coisas político não significa
outra coisa que ganhar e ter presente a maior visão geral das
possíveis posições e pontos de vista, dos quais o estado de coisas
pode ser visto e a partir dos quais pode ser julgado. Quase não se
falou dessa phronesis através dos séculos, que em Aristóteles é a
verdadeira virtude cardinal da coisa política. Só a encontramos de
novo em Kant, na explanação da razão saudável do homem como um
bem do juízo. Ele a chama de ―maneira de pensar ampliada‖ e a define
expressamente como a capacidade ―[de] pensar no lugar de todos os
outros‖, mas infelizmente continua sendo característico que essa
capacidade política par excellence quase não desempenha um papel na
filosofia política própria de Kant, do desenvolvimento do imperativo
49
categórico. Pois a validade do imperativo categórico é deduzida do
―pensamento-em-uníssono-com-si-mesmo‖, e a razão legislativa não
pressupõe os outros, mas sim apenas um eu não contraditório. Na
verdade, o verdadeiro bem político na filosofia de Kant não é a razão
legisladora, mas sim o discernimento do qual é próprio conseguir não
se importar com «as condições privadas subjetivas do juízo‖. No senti
do da polis, o homem político, em sua excelência peculiar, era ao
mesmo tempo o mais livre, porque tinha a maior liberdade de
movimento em virtude de sua compreensão, sua capacidade de tomar
em consideração todas as posições.
Mas é importante ter presente que essa liberdade da coisa
política dependia, por completo, da presença e da igualdade de direitos
de muitos. Uma coisa só pode mostrar-se sob muitos aspectos quando
muitos estão presentes, aos quais ela aparece em respectivas
projeções diferentes. Quando esses outros com direitos iguais e suas
opiniões particulares são abolidos, como talvez numa tirania na qual
tudo e todos são sacrificados para o ponto de vista do tirano, ninguém
é livre e ninguém está apto para a compreensão, nem mesmo o tirano.
Além disso, essa liberdade da coisa política, que em seu
aperfeiçoamento mais elevado coincide com a compreensão, não tem
o mínimo a ver com nosso livre-arbítrio, ou com a libertas romana, ou
com o cristão liberum arbitrium; de fato, tem tão pouco a ver que falta
a palavra para tal no idioma grego. O indivíduo em seu isolamento
jamais é livre; só pode sê-lo quando adentra o solo da polis e age
nele. Antes de a liberdade se tornar uma espécie de distinção de um
homem ou de um tipo de homem —talvez do grego contra os bárbaros
—, ela é um atributo de uma determinada forma de organização de
homens entre si, e nada mais. Seu local de origem jamais está situado
num interior do homem, não importa com que forma, em sua vontade
ou em seu pensamento ou em seu sentir, mas sim no interespaço que
só surge quando muitos se reúnem e que só pode existir enquanto
ficarem juntos. Existia um espaço da liberdade e era livre aquele nele
admitido, e não-livre aquele dele excluído. O direito de admissão e,
portanto, de liberdade era um bem para o indivíduo que sobre o
destino de sua vida não decidia de maneira diferente da riqueza e da
saúde.
Assim, a liberdade era para o pensamento grego enraizada,
ligada a uma posição e limitada espacialmente, e as fronteiras do
espaço da liberdade coincidiam com os muros da cidade, da polis ou,
dito de forma mais exata, da ágora nela encerrada. Fora dessas
fronteiras situava-se, por um lado, o estrangeiro no qual não se
poderia ser livre, posto que nele não se era mais um cidadão ou,
melhor, um homem político; e por outro, a casa particular na qual
50
tampouco se poderia ser livre porque faltavam os demais com
igualdade de direitos, que juntos constituíam o espaço da liberdade.
Esse último era de importância ainda mais decisiva para o conceito
romano moldado de maneira bem diferente, sobre o que é a coisa
política, a coisa pública, a res publica ou república. Para os romanos, a
família caía tanto no âmbito dos não-livres que Mommsen traduziu a
palavra familia, de maneira sumária, por ―servidão‖. Porém, a razão
para essa servidão é dupla; em primeiro lugar, residia em que o pater
familias, o dono da casa, reinava como um verdadeiro monarca ou
déspota sozinho sobre sua casa multiforme, composta de mulher,
filhos e escravos; portanto, faltavam-lhe as pessoas com igualdade de
direitos diante das quais ele poderia aparecer em liberdade. Em
segundo lugar, essa casa dominada por um não podia ser admitida em
nenhum certame ou competição, porque precisava formar uma
unidade que só poderia ser destruída por interesses, posições e pontos
de vista antagônicos. Com isso, deixava de existir, de maneira
automática, aquela multiplicidade de aspectos nos quais o verdadeiro
conteúdo do ser-livre, do agir-e-conversar-em-liberdade estava livre
para se mover. Resumindo, a não-liberdade era o pressuposto de uma
unidade que não foi fendida, tão constitutiva para a vida em comum
na família quanto a liberdade e a luta de um com o outro para a vida
em comum na polis. Com isso, o espaço livre da coisa política
apresenta-se como uma ilha, na qual o princípio da força e da coação
é eliminado das relações dos homens. O que fica de fora desse estreito
espaço, a família, por um lado, e as relações da polis com outras
unidades políticas, por outro, continua sujeito ao princípio da coação e
ao direito do mais forte. Assim, segundo a concepção da Antiguidade,
o status do indivíduo é tão exclusivamente dependente do espaço no
qual ele se move de cada vez que o mesmo homem, como filho
crescido de um pai romano, ―era subordinado a seu próprio pai... na
condição de cidadão [poderia] cair no caso de dar-lhe ordens como
senhor‖.
Retornemos ao nosso ponto de partida. Tentamos recordar a
guerra de extermínio de Tróia em seus adornos homéricos para nos
lembrar quão bem os gregos deram conta do elemento exterminador
da força, que destruía o mundo e a coisa política. Como se os gregos
houvessem separado a luta sem a qual nem Aquiles nem Heitor jamais
poderiam ter-se revelado, de fato, tentando provar quem eram, da
coisa guerreira-militar da qual a força é oriunda, e, com isso,
transformando-a num elemento integrante da polis e da coisa política,
ao passo que deixavam por conta de seus poetas e historiadores a
preocupação com o que devia ser dos vencidos e derrotados nas
guerras seguintes. Contudo, deve-se observar que sua própria obra,
51
mas não a atividade através da qual ela surgiu, tornou-se de novo
parte da polis e da coisa política — não diferente das estátuas de
Fídias e outros artistas cujas obras pertenciam ao estoque da coisa
política pública palpável no mundo, ao passo que eles mesmos, por
causa de sua profissão, não eram tidos como iguais e cidadãos livres.
Nisso continua decisiva, para a cunhagem do tipo grego de homem na
polis, a figura de Aquiles, o empenho constante para se distinguir,
para ser sempre o melhor de todos e ganhar fama imortal. A
necessária presença de muitos no geral e de muitos de igual categoria
em especial, o local de reunião homérico da ágora, que no caso da
expedição contra Tróia só pôde manifestar-se porque muitos ̳reis‘,
quer dizer, homens livres, que viviam isolados em suas casas
associaram-se para um grandioso empreendimento que precisava de
todos — no fundo, de cada um porque só nesse estar juntos, longe da
casa natal e de sua estreiteza, era possível ganhar fama: o estar junto
homérico dos heróis era despido também de caráter temporário que
dependia da aventura. A polis ainda está inteiramente ligada à ágora
homérica, mas esse local de reunião é agora perpétuo, não o
acampamento de um exército que depois do trabalho feito se retira de
novo e precisa esperar séculos até se encontrar um poeta que conceda
aquilo que tem direito perante deuses e homens por causa da
grandeza de seus feitos e palavras — a fama imortal. Então, assim
esperava a polis em seu apogeu (tal como sabemos através do
discurso de Péricles), ela mesma assumiria possibilitar a luta sem toda
violência e garantir a glória sem poeta e sem versos, a única maneira
pela qual os mortais podem tornar-se imortais.
Os romanos eram o povo gêmeo dos gregos porque deduziam
sua origem enquanto povo do mesmo acontecimento, a Guerra de
Tróia, ―porque não se achavam romúlidas, mas sim enéides‖,
achavam-se descendentes dos troianos, assim como os gregos
julgavam-se descendentes dos aqueus. Desse modo, deduziam
conscientemente sua existência política de uma derrota, a qual se
seguiu uma nova fundação em terra estranha, mas na verdade não a
nova fundação de um novo inaudito, mas a fundação renovada para
algo velho, a fundação de uma nova pátria e de uma nova casa para
os penates, os deuses do rebanho real em Tróia, que Enéias salvou na
fuga junto com pai e filho sobre o mar para o Lácio. Tratava-se, como
nos diz Virgilio no aperfeiçoamento definitivo do adorno grego, siciliano
e romano do ciclo de lendas troianas, da anulação da derrota de Heitor
e do aniquilamento de Tróía: ―Um novo Páris acende-me de novo o
fogo que abala as ameias de Pérgamo‖. Essa é a tarefa de Enéias e,
visto a partir dessa tarefa, através de Heitor a vitória é mantida
afastada dos gregos durante dez anos, e não de Aquiles: Heitor torna-
52
se o verdadeiro herói da lenda. Mas isso não é decisivo. O decisivo é
que, na repetição da Guerra de Tróia em solo italiano, invertem-se as
relações do poema homérico. Se Enéias é ao mesmo tempo o sucessor
de Páris e de Heitor, então ele atiça de fato o fogo por uma mulher,
mas não por Helena e uma adúltera, mas sim por Lavínia, uma noiva,
e igual a Heitor ele encontra a ira implacável e a cólera invencível de
um Aquiles, ou seja, ao Turnus que se identifica expressamente —
―comunica a Príamo então que encontraste aqui também a Aquiles‖;
mas quando se chega no duelo, Turnus foge, quer dizer, Aquiles, e
Enéias, quer dizer Heitor, o persegue. Assim como é evidente que
Heitor não põe a fama acima de tudo mesmo na representação
homérica, mas sim que ―tomba um defensor lutando por seus altares
domésticos‖, a Enéias não pode ser arrancado o pensamento na alta
fama e grandes feitos de Dido, porque ―não lhe parece que o próprio
louvor valha o esforço e flagelos‖; mas apenas a lembrança no filho e
descendentes, a preocupação com a continuidade da geração e sua
fama que para os romanos continha a garantia da imortalidade
terrena.
Essa origem — primeiro transmitido como lenda e depois
adornada cada vez de forma mais consciente e rica — da existência
política romana a partir de Tróia e da guerra que se travou em torno
da cidade pertence, sem dúvida, aos acontecimentos mais estranhos e
excitantes da história ocidental. É como se comparasse aqui a
bilateralidade poético-espiritual e a imparcialidade do poema homérico
com uma realidade plena e cumprida que realiza algo nunca antes
realizado na História; ao que parece, tampouco pode ser realizado
nela, ou seja, a plena justiça para com a causa dos vencidos não de
parte da posteridade julgadora — que sempre pode dizer com e desde
Catão: victrix causa diis placuit sed victa Catoni — mas de parte
do próprio decorrer histórico. Já é bastante inaudito que Homero cante
a glória dos vencidos e, assim, no próprio poema glorificante mostra
que um mesmo e único acontecimento pode ter dois lados e que o
poeta, ao contrário da realidade, não tem o direito de, com a vitória de
um lado, abater e matar o outro lado, pela segunda vez. Porém, o
mesmo se passa na realidade — e se pode esclarecer com facilidade o
quanto a auto-interpretação dos povos é parte integrante de tal
realidade, quando se pensa que os romanos, enquanto sucessores dos
troianos, defenderam, em sua primeira contato demonstrável com os
gregos, a Ílion de mesma origem —, parece muito mais inaudito; pois
é como se no começo da história ocidental houvesse, de fato, uma
guerra no sentido de Heráclito, [ou seja, uma guerra] que se tornou ―o
pai de todas as coisas‖ porque forçou o mesmo e único acontecimento
a se manifestar em seus dois lados, que originalmente eram virados
53
de costas um para o outro. Desde então, não existe para nós, tanto no
mundo físico como no mundo histórico-político, nada mais que se
torne coisa ou fenômeno em plena realidade, quando descoberto e
classificado em sua riqueza de aspectos e mostrado de todos os lados
e todos os ângulos possíveis no mundo dos homens, chega ao
conhecimento e à articulação.
Somente a partir dessa perspectiva determinada como romana,
na qual o fogo é atiçado de novo para abolir o extermínio, talvez
possamos compreender o que é em si, de verdade, a guerra de
extermínio e por que não deve ter nenhum lugar na política,
independente de todas as considerações morais. Se for correto que
uma coisa só é realmente no mundo do histórico-político, assim como
no mundo do físico, quando mostrar-se e puder ser percebida de todos
os lados, então ela sempre precisará ser observada e definida por uma
pluralidade de homens ou de povo, ou de uma pluralidade de ângulos,
para se fazer realidade possível e garantir sua continuidade. Em outras
palavras, só surge mundo porque há perspectivas, e só existe por
causa de uma correspondente ordem de coisas. Se um povo, ou um
Estado, ou apenas um determinado grupo de homens, é exterminado
porque, em todo caso, tem uma posição qualquer no mundo que
ninguém pode duplicar sem dificuldade, que apresenta uma visão de
mundo só realizável por ele —, então não é apenas um povo, um
Estado ou uma certa quantidade de homens que morre, senão que
uma parte do mundo comum é aniquilada — um lado do mundo
mostrado antes, mas que jamais poderá mostrar-se de novo. Por
conseguinte, o aniquilamento iguala-se aqui não apenas a uma espécie
de fim do mundo, senão que atinge também os aniquiladores. A rigor,
a política não tem tanto a ver com os homens como tem a ver com o
mundo surgido entre eles e que sobreviverá a eles; na medida em que
se torna destruidora e causa fins de mundo, ela destrói e se aniquila a
si mesma. De outra maneira: quanto mais povos houver no mundo
que tenham entre si essa relação e outras, mais mundo se formará
entre eles e maior e mais rico será o mundo. Quantos mais pontos de
vista houver num povo, a partir dos quais possa ser avistado o mesmo
mundo, habitado do mesmo modo por todos e estando diante dos
olhos de todos, do mesmo modo, mais importante e mais aberta para
o mundo será a nação. Mas se acontecer o contrário e, através de uma
tremenda catástrofe, só restar um povo na face da Terra e se esse
povo chegar ao ponto em que todos vêem e entendem tudo a partir da
mesma perspectiva e vivem entre si em plena unanimidade, então o
mundo terá chegado ao fim, no sentido histórico-político, e os homens
sem mundo que restarem na face da Terra quase mais nada terão em
comum conosco — tanto quanto aquelas tribos sem mundo e sem
54
relações que vegetavam de um lado para o outro, encontradas pela
humanidade européia na descoberta de novos continentes, que foram
tomadas de volta para o mundo dos homens ou exterminadas, sem ter
consciência de que também eram homens. Em outras palavras, só
pode haver homem na verdadeira acepção onde existe mundo, e só
pode haver mundo no verdadeiro sentido onde a pluralidade do gênero
humano seja mais do que a simples multiplicação de uma espécie.
Por conseguinte, é da maior importância que a Guerra de Tróia
repetida em solo italiano, à qual o povo romano atribui sua existência
política e histórica, não terminasse de novo, por seu lado, com o
aniquilamento dos derrotados, mas sim com uma aliança e um
tratado. Não se tratava apenas de atiçar o fogo de novo para
simplesmente inverter o desenlace, mas sim de inventar um novo
desfecho para tal fogo-guerra. Contrato e aliança, de acordo com sua
origem e seu conceito cunhado tão ricamente pelos romanos, estão
ligados, do modo mais estreito, com a guerra entre povos e, segundo
a concepção romana, representam a continuação natural, por assim
dizer, de toda e qualquer guerra. Nisso também há algo de homérico
ou talvez alguma coisa que já existia antes do próprio Homero quando
ele pôs mãos à obra para dar sua cunhagem poética definitiva ao ciclo
de lendas troianas. Residia no reconhecimento de que também o
encontro mais hostil de homens faz surgir alguma coisa que só é
comum a eles, justamente porque — como Platão um dia expressou —
―tal como o agente faz, o sofredor também sofre‖ (Górgias,476), é
assim e não de outra maneira, de modo que quando fazer e sofrer
passam, podem tornar-se posteriormente os dois lados de um mesmo
acontecimento. Mas com isso o próprio acontecimento já foi
transformado de luta em uma outra coisa, que só se torna acessível
para o olhar retroativo e enaltecedor do poeta ou do historiador.
Politicamente, porém, o encontro que ocorre na luta só pode manter-
se como encontro quando a luta é interrompida antes do
aniquilamento do vencido e dela surge um estar junto de novo tipo.
Todo tratado de paz, mesmo quando não for verdadeiro, mas sim um
ditado, trata de uma reorganização daquilo que já existia antes da
conflagração das hostilidades, e também do que se manifesta no
decorrer das hostilidades como algo em comum do agente e do
sofredor. Uma tal transformação [do simples aniquilamento em algo
diferente e duradouro] *
não deixa morrer pelo menos a glória e a honra do vencido e através
da qual o nome de Aquiles permaneceu ligado para sempre ao de
Heitor. Mas, no caso dos gregos, tal transformação do estar junto
hostil permaneceu totalmente limitado ao poético e retroativo e não
pôde tornar-se diretamente eficaz na política.
se encontra na imparcialidade homérica que
55
Portanto, contrato e aliança enquanto concepções centrais da
coisa política são, em termos históricos, não apenas de origem
romana, mas também ambas as coisas são estranhas, em sua
essência mais profunda, ao caráter grego e à sua concepção do âmbito
da coisa política, ou seja, da polis. O que sucedeu quando os
descendentes de Tróia chegaram em solo italiano foi nada mais nada
menos do que o fato de a política surgir exatamente ali onde no caso
dos gregos chegava em suas fronteiras e achava um fim, ou seja, no
âmbito intermediário não entre os cidadãos de igual categoria de uma
cidade, mas sim entre os povos estranhos entre si e que se
defrontavam em desigualdade, que só a luta reuniu. É verdade que,
como vimos, também no caso dos gregos a luta e com ela a guerra foi
o começo de sua existência política, mas apenas até o ponto em que,
nessa luta, tornaram-se eles mesmos e uniram-se para se assegurar
da confirmação definitiva e perpétua da própria essência. No caso dos
romanos, a mesma luta tornou-se aquilo em que reconheciam a si
mesmos e aos parceiros; quando a luta chegou ao fim, não se
retiraram de novo para si mesmos e a sua glória nos muros de sua
cidade, mas haviam ganho algo novo, um novo âmbito político
assegurado através do tratado com o qual os inimigos de ontem
tornaram-se os aliados de amanhã. Falando politicamente, o contrato
que liga dois povos faz surgir um novo mundo entre eles ou, de
maneira mais exata, garante a continuação da existência de um
mundo novo, só comum a eles, surgido quando eles se encontraram
na luta e, no fazer e no sofrer, produziram um igual.
Essa solução da questão da guerra — quer tenha sido
originalmente própria dos romanos ou tenha surgido apenas
posteriormente no recordar e no adornar da guerra de extermínio de
Tróia — é a origem tanto do conceito de lei como da importância
extraordinária que a lei e a formação da lei experimentaram no
pensamento político romano. Pois, a lex romana, em completa
diferença e até mesmo em oposição àquilo que o gregos conheciam
por nomos, significa originalmente ―ligação duradoura‖ e, em seguida,
contrato tanto no direito de Estado como no privado. Portanto, uma lei
é algo que liga os homens entre si e se realiza não através de um ato
de força ou de um ditado, mas sim através de um arranjo ou um
acordo mútuo. O fazer da lei, essa ligação duradoura que se segue à
guerra violenta, é ele mesmo totalmente ligado à conversa e à réplica
daí a algo que, tanto na opinião dos gregos como na dos romanos,
estava no centro de tudo que é político.
Nisso, porém, é decisivo que só para os romanos a atividade
legisladora e com isso a própria lei caíam no âmbito da verdadeira
coisa política, ao passo que segundo a concepção grega a atividade do
56
legislador era tão radicalmente separada das verdadeiras atividades e
ocupações políticas dos cidadãos dentro da polis que o legislador nem
ao menos precisava ser cidadão da cidade, podendo ser contratado
de fora — como um escultor ou um arquiteto a quem se podia
encomendar o que fosse preciso para a cidade. Em contrapartida, a lei
das doze tábuas de Roma, se bem que em seus pormenores possa ter
sido determinada por modelos gregos, não é obra de um único
homem, mas sim o contrato entre duas partes em luta, o patriciado e
os plebeus, que precisava do assentimento de todo o povo, aquele
consensus omnium ao qual a historiografia romana sempre atribuiu
―um papel singular‖ (Altheim) quando da redação de leis. Para esse
tipo de contrato é importante que — no caso dessa lei básica a qual
remonta, de fato, à fundação do povo romano, do populus romanus
— não se trata de conciliar as partes em litígio no sentido de ser
abolida pura e simplesmente a diferença entre patriciado e plebeus.
Ocorreu o contrário; uma expressa proibição de casamento, mais tarde
abolida de novo, entre patrícios e plebeus acentuava a separação, de
maneira mais expressa do que antes. Só foi conciliada a relação de
inimizade. Mas o aspecto legal específico da regulamentação, no
sentido romano, residia em que, a partir de então, um contrato, uma
eterna ligação, ligava entre si a patrícios e plebeus. A res publica, a
questão pública que surgiu a partir desse contrato e que se tornou a
república romana, estava localizada no espaço intermediário entre os
parceiros antes inimigos. Portanto, a lei é, aqui, algo que institui de
novo relações entre homens, e quando liga homens entre si, não o faz
no sentido do direito natural no qual todos os homens são
identificados, com um voto da consciência da natureza, por assim
dizer, como bons e maus; não no sentido de mandamentos proferidos
de fora para todos os homens do mesmo modo, mas no sentido do
acordo entre contraentes. E assim como tal acordo só pode realizar-se
quando é defendido o interesse de ambas as partes, no caso da
protolei romana, também tratava-se de ―estabelecer uma lei comum
que levasse em conta as duas partes‖ (Altheim).
Para avaliar corretamente a extraordinária fecundidade política
do conceito romano de lei além da coisa moral, que deve continuar
secundária em nossa reflexão, é preciso rememorar, em poucas
palavras, a concepção grega, moldada de modo bem diferente, daquilo
que originalmente é lei. A lei, como os gregos entendiam, não era
acordo nem contrato, não surgiu entre os homens no falar de duas
partes e no agir e contra-agir e, por conseguinte, não é algo inserido
no âmbito político, mas é, em essência, imaginado por um legislador e
precisa ser aprovado, antes de poder entrar na verdadeira coisa
política. Como tal, é pré-política, no sentido de ser constitutiva para
57
todo o ulterior agir político e o lidar politicamente entre si. Assim como
os muros da cidade [com] os quais Heráclito compara a lei, precisam
ser construídos primeiro antes de poder existir uma cidade
identificável em sua forma e em suas fronteiras, a lei determina a
verdadeira fisionomia de seus habitantes, através da qual ela se
distingue e sobressai de todas as outras cidades e seus habitantes. A
lei é a circunvalação-fronteira produzida e feita por um homem, dentro
da qual nasce então o espaço da verdadeira coisa política, no qual
muitos se movem livremente. Por isso, Platão invoca Zeus, o protetor
das fronteiras e dos marcos, antes de pôr mãos à obra e promulgar
suas leis para uma cidade recém-fundada. Trata-se, em essência, de
estabelecer fronteira e não de ligação e união. A lei é, por assim dizer,
aquilo segundo a qual uma polis forma sua vida a seguir, que não
pode ser abolida sem renúncia à própria identidade, e cuja violação é
igual à transposição de uma fronteira imposta à existência e que, por
conseguinte, é Hibris. A lei não vale no lado de fora da polis, sua força
obrigatória estende-se apenas sobre o espaço que ela encerra e limita.
Violar a lei e deslocar-se para fora das fronteiras da polis eram, para
Sócrates, a mesma e única coisa, no sentido mais textual da palavra.
Nisso é decisivo que a lei — se bem que encerre o espaço no
qual os homens vivem entre si sob a renúncia à força — tem algo de
violento e, na verdade, tanto no que diz respeito a seu surgimento
como à sua essência. Ela surgiu através de produção e não do agir; o
legislador é igual ao urbanista e ao arquiteto, não ao estadista e ao
cidadão. A lei produz o espaço da coisa política e contém o violento-
brutal, próprio de todo produzir.
Como tal, uma coisa feita está em oposição ao que surgiu de
maneira natural, não precisando de ajuda alguma, nem de deuses
nem de homens, para ser. Assim, é próprio de tudo que não é
natureza e não surgiu através de si mesmo, uma lei pela qual é
produzido, cada um depois do outro, e entre essas leis não existe
nenhuma relação, tampouco quanto entre aquilo por elas imposto.
―Uma lei‖, assim expressou Píndaro num famoso fragmento (no 48, ed.
Boeckh) também citado por Platão, ―é o rei de todos, dos mortais e
dos imortais, e, ao criar justiça, desempenha a coisa mais violenta
com mão prepotente‖. Em relação aos homens a ela subordinados,
essa coisa violenta expressa-se porque as leis ordenam, porque elas
são os senhores e comandantes da polis na qual mais ninguém tem o
direito de dar ordem a outra pessoa de igual categoria. Assim, as leis
são pai e déspota de uma só vez, como Sócrates explica ao amigo em
Críton (5O-51) — e isso não apenas porque a coisa despótica
predominava na casa da Antigüidade, determinando também a relação
entre pai e filho, de modo a insinuar ―pai e déspota‖, mas também
58
porque a lei produziu o cidadão, por assim dizer, assim como o pai
gerou o filho (pelo menos é tanto pressuposto de sua existência
política como o pai é a condição da existência física do filho) e, por
conseguinte, na opinião da polis — embora não mais na opinião de
Platão e de Sócrates —, cabe a ela a educação do cidadão (Apologie
— Nomoi) Porém, como a relação de obediência à lei não tem um fim
natural como a relação de obediência ao pai, a relação entre senhor e
escravos pode ser comparada de novo, de modo que o cidadão livre da
polis era, em relação à lei, quer dizer, em relação à fronteira dentro da
qual ele era livre e [onde] situava-se o espaço da liberdade — um
―filho e escravo‖ durante toda a vida. Assim, os gregos, que dentro da
polis não estavam subordinados à força do comando de nenhum
homem, puderam advertir aos persas para não subestimarem sua
força de combate, pois todos eles temiam a lei de sua polis não menos
do que os persas ao grande rei. Como quer que se interprete esse
conceito grego de lei, de maneira nenhuma a lei poderia servir para
construir uma ponte entre um povo e outro, entre uma coletividade
política dentro do mesmo povo e outra. Também no caso da fundação
de uma nova colônia, a lei da cidade-mãe não bastava, senão que
aqueles que se mudavam para fundar uma nova polis precisavam de
novo de um legislador, de um nomothetes, de um compositor de leis,
antes que o novo âmbito político pudesse ser reconhecido como
assegurado. É evidente que, sob essas condições básicas, era
simplesmente impossível a formação de um reino — e também é
verdade que, através das guerras persas, foi despertada uma espécie
de consciência nacional helênica, a consciência do mesmo idioma e da
mesma constituição política de toda Hélade. A união de toda Hélade
teria conseguido preservar o povo grego do declínio; nesse caso, a
verdadeira essência grega também teria declinado.
Talvez se avalie a distância que separava essa concepção de lei
enquanto único comandante ilimitado da polis da romana, da maneira
mais fácil se nos lembrarmos que Virgílio o Latino, a quem Enéias vai,
considera como povo ―aquele que sem grilhões e leis... se atém por
impulso próprio aos costumes do deus mais velho‖ (VII, 2O3-4). A lei
só surge ali porque trata-se agora de fazer um contrato entre os
estabelecidos e os recém-chegados. Roma foi fundada sobre esse
contrato, e se a missão de Roma é ―pôr sob a lei toda a orbe‖ (VII,
231): então, isso não significa outra coisa que atrelar toda a orbe num
sistema de contrato para o qual esse povo era o único qualificado,
porque sua própria existência histórica derivava de um contrato.
Se se quiser expressar isso cm categorias modernas, então é
preciso dizer que no caso dos romanos a política começou como
política externa; portanto, exatamente com aquilo que, segundo o
59
pensamento grego, estava situado fora de toda a política. Também
para os romanos o âmbito político só podia surgir e existir dentro da
coisa legal; mas esse âmbito surgia e se multiplicava ali onde
diferentes povos se encontravam entre si. Esse encontro é guerreiro, e
a palavra latina populus significava originalmente ―mobilização para o
exército‖ (Altheim), mas essa guerra não é o fim, porém o começo da
política, ou seja, de um espaço político novo, surgido do tratado de
paz e de aliança. Pois esse também é o sentido da ―demência‖ romana
tão famosa na Antigüidade, do parcere subiectis, da deferência para
com os vencidos através da qual Roma organizou primeiro as regiões e
povos da Itália e depois as possessões fora da Itália. Nem mesmo a
destruição de Cartago é um reparo a esse princípio levado a efeito na
realidade política de verdade, o princípio de jamais aniquilar, mas de
sempre aumentar e firmar novos tratados. Aniquilado ali não foi o
poder militar, ao qual Cipião ofereceu condições tão inauditamente
favoráveis depois da vitória romana a ponto de o historiador moderno
perguntar-se se ele agiu mais em seu interesse ou mais no interesse
de Roma (Mommsen), e tampouco foi a potência comercial
concorrente no Mediterrâneo, mas sim sobretudo ―um governo que
nunca cumpria a palavra e jamais perdoava‖ e, desse modo,
encarnava o verdadeiro princípio político anti-romano contra o qual a
diplomacia romana era impotente e que teria aniquilado Roma, se não
tivesse sido aniquilado por Roma. Catão pode ter pensado assim, ou
pelo menos de maneira parecida, e lhe seguem os modernos
historiadores que justificam a destruição da cidade, a única rival de
Roma ainda existente na escala mundial da época.
Não importa como possa aparecer essa justificação: em nosso
contexto, é decisivo que justamente a justificação não correspondia ao
pensamento romano e não pôde ser imposta pelos historiadores
romanos. Teria sido romano deixar a cidade inimiga existir na condição
de adversária, da maneira como tentou o mais velho Cipião, o
vitorioso sobre Aníbal; romano foi lembrar o destino dos antepassados
e, como o destruidor da cidade, Emiliano Cipião, desfazer-se em
pranto sobre as ruínas da cidade e, pressentindo a própria desgraça,
citar Homero: ―Virá o dia em que a santa Ílion cairá, / o próprio
Príamo e o povo do rei derrubado à lança‖; por fim, romano foi deduzir
o começo do declínio a partir dessa vitória, que terminou com um
aniquilamento que tornou Roma uma potência mundial, dedução essa
que costumavam fazer quase todos os historiadores romanos até
Tácito. Em outras palavras, romano foi saber que o outro lado da
própria existência, justamente quando se revelou como tal na guerra,
deve ser poupado e mantido vivo — não por misericórdia para com os
outros, mas sim por causa do aumento da cidade que a partir de então
60
devia abranger também esse estrangeiro numa nova aliança. Então,
esse bom-senso determinou que os romanos lutassem, a despeito de
todos os seus interesses imediatos, de maneira decidida em favor da
liberdade e independência dos gregos, mesmo que tal procedimento,
em vista da situação existente de fato nas poleis gregas, se
apresentasse muitas vezes como imprudência sem sentido. Não
porque se quisesse reparar na Grécia aquilo que se pecou em Cartago,
mas porque se julgava justamente o caráter grego como o verdadeiro
reverso correspondente ao romano. Para os romanos era como se
Heitor encontrasse Aquiles mais uma vez e lhe oferecesse a aliança
depois da guerra travada. Só que, infelizmente, nesse meio tempo
Aquiles ficou velho e implicante.
Aqui também seria errado adotar parâmetros morais e pensar
num sentimento moral que se estenda à coisa política. Cartago foi a
primeira cidade com a qual Roma teve a ver: era igual a Roma em
termos de poder e, ao mesmo tempo, encarnava um princípio oposto
ao romano. Por conseguinte, nessa cidade foi demonstrado pela
primeira vez que o princípio político romano do tratado e da aliança
não era aplicável em toda parte, que possuía seus limites. Para
compreender isso, devemos ter presente que as leis com as quais
Roma organizou primeiro as regiões romanas e depois os países do
mundo não eram apenas contratos em nossa acepção, senão que
visavam a uma ligação duradoura, e que portanto continham, em
essência, uma aliança. Desses aliados de Roma, os socii — que eram
quase todos os antigos inimigos derrotados — resultou a societas
romana que nada tem a ver com sociedade, mas sim com associação e
a relação nela contida. O que os romanos aspiravam não era tanto
aquele Imperium Romanum, aquele domínio romano sobre povos e
terras que, como sabemos desde Mommsen, tocou-lhes mais contra a
própria vontade e lhes foi impingido, quanto uma Societas Romana,
um sistema de aliança fundado por Roma e infinitamente dilatável, no
qual povos e terras estavam ligados a Roma não apenas através de
tratados temporários e renováveis, mas sim por alianças eternas. Os
romanos falharam no caso de Cartago justamente porque ali só seria
possível, no máximo, um tratado entre iguais com os mesmos direitos,
uma espécie de coexistência, falando em termos modernos, e porque
tal tratado moderno estava fora das possibilidades do pensamento
romano.
Isso não deve ser atribuído a nenhum acaso e tampouco a uma
burrice. O que os romanos não conheciam e que tampouco podiam
conhecer dentro da experiência básica da qual era determinada sua
existência política do começo ao fim, eram justamente aquelas
características inerentes ao agir que haviam determinado que os
61
gregos se limitassem ao nomos e por lei entendessem não uma
ligação e uma relação, mas sim uma fronteira, algo que encerrava,
impossível de ser transposto. Pois era inerente ao agir, justamente
porque segundo sua essência está sempre produzindo relações e
ligações para onde quer que se estenda, um descomedimento e, como
Ésquilo achava, uma insaciabilidade que só podia ser mantida dentro
dos limites, a partir de fora, através de um nomos, uma lei na
acepção grega. O descomedimento, como os gregos achavam, não
reside no descomedimento do homem atuante e sua Hibris, mas sim
no fato de as relações surgidas através do agir, são e devem ser de tal
espécie que entram no ilimitado. Toda relação causada pelo agir recai,
porquanto liga homens atuantes, numa rede de relações e
relacionamentos na qual desencadeia novas relações, muda de
maneira decisiva a constelação de relacionamentos já existentes e
segue alastrando-se sempre e pondo em ligação e movimento cada
vez mais do que o homem atuante poderia prever. O nomos grego
opõe-se a essa investida contra o ilimitado e restringe o negociado
àquilo que se passa dentro de uma polis entre homens, e liga de volta
na polis aquilo que está situado do outro lado dessa polis, com que a
polis tem de entrar em contato em seus feitos. Segundo o modo de
pensar grego é só com isso que o agir se torna político, quer dizer,
vinculado à polis e com isso à mais elevada forma de convívio
humano. Do nomos que limita e impede que ele se volatilize num
mesmo sistema de relações que crescem sem cessar, o negociado
recebe a forma permanente, que o transforma em proeza, que pode
ser lembrado e conservado em sua grandeza, significando sua
transcendência. Com isso, o nomos opõe-se à fugacidade de tudo que
é mortal, fugacidade característica e sentida de maneira tão nítida
pelos gregos da era trágica, a fugacidade da palavra falada assim
como do volatilizar-se do ato consumado. Os gregos apagaram essa
força produtora de formas de seu nomos, tornando-se incapazes de
constituir um reino; não há nenhuma dúvida de que, no final, toda
Hélade sucumbiu ao nomos das poleis, das cidades-Estados que
decerto se multiplicaram ao colonizar, mas jamais puderam unir-se e
juntar-se numa ligação duradoura. Mas se poderia dizer com o mesmo
direito que os romanos tornaram-se vítimas de sua lei, de sua lex
que, é verdade, lhes possibilitou instituir ligações e alianças
duradouras onde quer que chegassem, mas ilimitadas em si e, desse
modo, muito contra sua própria vontade e sem nenhuma vontade de
poder ou mesmo ambição de poder, lhes impôs o domínio sobre a
orbe, domínio esse que, tão logo alcançado, só poderia sucumbir de
novo em si mesmo. No entanto, quase reside na natureza da própria
coisa que, com a queda de Roma, sucumbisse para sempre o ponto
central de um mundo e com ele talvez a possibilidade especificamente
62
romana de centrar o mundo inteiro em torno de um ponto central; ao
passo que ainda hoje, quando pensamos no declínio de Atenas,
podemos supor que com isso não desapareceu para sempre, de
maneira alguma, um ponto central do mundo, mas sim um ápice das
possibilidades humanas-mundanas.
Mas os romanos pagaram por sua inaudita capacidade de fazer
aliança e ligação duradoura que aumentava sem parar, não apenas
com um aumento do império que no final entrou na escala do
incomensurável-, com o que sucumbiu a cidade e a Itália por ela
dominada. Pagaram, de maneira menos catastrófica em termos
políticos, porém não menos decisiva em termos intelectuais, com a
perda da imparcialidade grego-homérica, com o sentido de grandeza
e transcendência em todas as suas formas onde quer que se encontre,
com a vontade de se tornar imortais através do glorificar. A
historiografia e a poesia dos romanos são romanas num sentido
exclusivo, assim como a poesia e a historiografia grega jamais foram
gregas, nem mesmo na decadência; trata-se aqui sempre apenas do
apontamento da história da cidade e de tudo aquilo que a afeta
diretamente; quer dizer, de seu aumento e difusão desde sua
fundação: ab urbe condita, ou, como em Virgílio, da narrativa
daquilo que levou à fundação da cidade, os feitos e viagens de Enéias:
dum conderet urbem. Em certo sentido, se poderia dizer que os
gregos, aniquiladores de seus inimigos, eram historicamente mais
justos e nos transmitiram muitíssimo mais do que os romanos, que
transformavam seus rivais em seus aliados. Mas esse julgamento
também é errado quando entendido moralmente. Pois os vencedores
romanos compreenderam, de maneira primorosa, o aspecto
especificamente moral da derrota e se perguntaram através da fala do
inimigo derrotado se eles não seriam ―conquistadores do mundo
ladrões cujo instinto de destruição não encontra mais terra‖, se sua
mania de criar relações em toda parte e de levar [a outros] a ligação
eterna da lei, também não poderia ser interpretada como sendo [eles]
―o único de todos os povos que ambicionava, com igual paixão, a
plenitude e o vazio‖, de modo que, pelo menos do ponto de vista dos
vencidos, poderia parecer muito bem que aquilo que chamavam de
―domínio‖ equivalesse a roubar, matar e furtar, e que a pax romana, a
famosa paz romana, fosse apenas o nome para o deserto que
deixavam para trás (Tácito, Agrícola). Porém, por mais
impressionantes que possam ser essas e semelhantes observações,
quando são medidas na moderna historiografia patriota e nacionalista,
o lado oposto ostentado por elas é apenas o reverso humano geral de
uma vitória, o lado do derrotado na qualidade de derrotado. A
concepção de que poderia haver algo simplesmente diferente, que
63
podia ser igual a Roma em grandeza e, por conseguinte, igualmente
digno da história retroativa: esse pensamento com o qual Heródoto
introduz a guerra persa, estava bem distante dos romanos.
Não importa como quer que se saia a limitação romana
caracterítica nessas coisas, é indubitável que o conceito de uma
política externa e com isso a concepção de uma ordem política fora
das fronteiras do próprio corpo do povo ou da cidade são de origem
exclusivamente romana. Essa politização romana do espaço entre os
povos está nos primórdios do mundo ocidental; foi ela que criou o
mundo ocidental qualificado como mundo. Até os romanos houve
muitas civilizações ricas, grandes e extraordinárias, mas o que havia
entre elas não era mundo algum mas sim um deserto através do qual,
quando as coisas iam bem, relações se tramavam como linhas e
atalhos finos através de terra erma, e que quando as coisas iam mal
se propagavam em guerras aniquiladoras e arruinavam o mundo
existente. Nós estamos acostumados a entender lei e direito no
sentido dos dez mandamentos enquanto mandamentos e proibições,
cujo único sentido consiste em que eles exigem obediência, que
deixamos cair no esquecimento, com facilidade, o caráter espacial
original da lei. Toda lei cria, antes de mais nada, um espaço no qual
ela vale, e esse espaço é o mundo em que podemos mover-nos em
liberdade. O que está fora desse espaço, esta sem lei e, falando com
exatidão, sem mundo; no sentido do convívio humano é um deserto.
Está na essência das ameaças tanto da política interna como da
externa, com as quais estamos confrontados desde o advento das
formas de dominação total, que elas fazem desaparecer a verdadeira
coisa política tanto da política interna como da externa. Se as guerras
deviam tornar-se de novo guerras de extermínio, então desde os
romanos a coisa política específica da política externa desapareceu e
as relações entre os povos caíram de novo naquele espaço sem lei e
sem política, que destrói o mundo e produz o deserto. Pois o que é
exterminado numa guerra de extermínio é muitíssimo mais do que o
mundo do adversário derrotado; é sobretudo o espaço intermédio
entre os parceiros da guerra e entre os povos, que em sua totalidade
formam o mundo na terra. Para esse mundo intermédio, que agradece
seu surgimento não ao produzir mas sim ao agir dos homens, não vale
o que dissemos no começo — que assim como pode ser aniquilado por
mão humana também pode ser produzido de novo por mão humana.
Pois o mundo das relações que surge a partir do agir, a verdadeira
atividade política do homem, é muito mais difícil de se destruir do que
o mundo produzido das coisas, no qual o produtor e feitor continua
sendo o único mestre e senhor. Mas se esse mundo de relação é
devastado, a lei do agir político cujos processos dentro da coisa
64
política só podem ser anulados de fato, com muita dificuldade é
substituída pela lei do deserto que, como um deserto entre homens,
desencadeia processos devastadores que trazem em si o mesmo
descomedimento inerente ao livre agir causador de relações dos
homens. Conhecemos esses processos de devastação através da
História e quase não conhecemos um caso em que puderam ser
levados a uma paralisação, antes de levarem no declínio todo um
mundo com toda sua riqueza de relações.
Notas
1. Antiquado para: Deus não criou o homem tanto como criou a
família.
2. Em grego no original.
3. Atualização e revisão de O preconceito contra a política
4. Hannah Arendt não se pronunciou em detalhes sobre o
dicernicmento nos manuscritos deixados. Mas, devemos notar que a
tese com a qual ela se ocuparia mais tarde com tanta intensidade,
ou seja, que ―o pensamento político se funda sobre tudo no
dicernimento‖, já é formulada nessa época da primeira fase. Para
isso, veja também Fragmento 3c, p. 85 e seg., além da p. 190 no
Apêndice e nota 66 no Comentário.
5. No original: ... e o sucedido nela
6. Não pôde ser apurado de que ―pesquisa‖ se trata (que também é
mencionada em outra parte dos manuscritos aqui publicados, veja
pp. 189-190). Isso é muito lamentável porque é provável que a
partir dessa fonte se pudessem tirar conclusões para a datação dos
fragmentos. Compare também com Comentário p. 151 e seg.
7. No original: que a capacidade formadora do mundo e realizadora.
8. Revisto e atualizado de: Introdução: Tem a Política ainda algum
sentido?
9. The Federalist, no 51 (Madison): ―Mas o que é o governo em si a
não sero maior de todos os reflexos da natureza humana? Se os
homens fossem anjos, não haveria necessidade de governo algum.
Se anjos governassem os homens, não seriam necessários
controles internos nem externos sobre o governo. Ao moldar um
governo que deve ser administrado por homens sobre homens, a
grande dificuldade reside nisso: você precisa primeiro capacitar o
governo a controlar os governados e, no passo seguinte, obrigá-lo a
se autocontrolar‖. Citado segundo: Alexander Hamilton et al.; The
Federalist Papers, com uma introdução... de Clinton Rossiter,
Nova York: A Mentor Book (ME 2541), 1961, p. 322.
65
10. Compare Victor Ehrenberg, art. ―Isonomia‖, in Paulys Real-
Encyclopaedie der classichen Altertumwissenscha ften,
Supl., tomo 7 (1950), p. 293 e segs.
11. Theodor Mommsen, Roemische Geschichte, 3 tomos, 5 a ed.,
Berlim: Weidmann, 1868-1870, tm. 1, p.62.
12. A palavra é ―philopsychia‖. Compare para isso Jacob
Burckhardt. Compare para isso Jacob Burckhardt, Griechische
Kulturgeschichte, edição completa, 4 tomos, Munique: dtv
(6075-6078), tm. 2, p. 391: ―... o amor à vida (philopsychia) é
uma repreensão da qual os gregos e os trágicos constumavam
preservar seus personagens heróicos... Em geral, o amor à vida era
atribuído aos serviçais e escravos como uma característica vil, que
os diferenciava dos homens livres‖. Essa citação também se
encontra num apontamento conservado no epsódio de Arendt em
Washington.
13. É provável que seja aludida a palavra asty, para a qual H. G.
Liddle e R. Scott, A Greek English Lexicon, Oxford, Claredon
(ed. 1968, p. 263), documenta o seguinte significado: ―no sentido
material, o oposto a polis.‖
14. Ehrenberg, l. c.
15. No original: de confiança
16. Segundo Thucídides, II, 41; compare Hannah Arendt, Vita Activa
oder Vom taetigen Leben, nova edição 1981, Munique-Zurique:
Piper (SP 217), 1983, p. 190 e seg. Veja também abaixo, p. 102 e
nota 37.
17. Veja ―As Cartas transmitidas com o nome de Platãp‖, tit. de
Hieronymus e Friedirch Mueller, in Platão, Sämtliche Werke, na
tradução de Friedrich Schleiermacher com a numeração de
Stephanus, 3 tomos, Hamburgo: Rowohrt (RK 1, 14, 27), 1957-
1958, tm. I, pp. 285-336, p. 333 (= 2a Carta, 359b).
18. Edmund Burke, em Thoughts on the Cause of the Present
Discontentes (1970: ―Eles [isto é, os Whigs no reinado da Rainha
Anne, ed.] acreditavam que nenhum homem poderia agir com
efeito, senão agisse de comum acordo; que nenhum homem
poderia agir de comum acordo, se não agisse com confiança; que
nenhum homem poderia agir com confiança, se não estivesse ligado
por opiniões comuns, afeições comuns e interesses comuns‖. Citado
aqui segundo extrato em Edmund Burke, On Government,
Politcs and Society, escolhido e editado por B. W. Hill, Nova
York: Internat. Library, 1976, pp. 75-119, p. 117.
19. Veja ―As Cartas Transmitidas com o nome de Platão‖, l. c., p.
303.
20. Refere-se à distância da esfera política, que se presta sobre tudo
às atividades produtivas artesanais e artísticas, mas também ao
66
filosofar pensante. Hannah Arendt só chega a falar de leve sobre
ambos nos manuscritos deixados (compare p. 101 e seg.). É
possível que tivessem previstas explicações corresposndentes para
a introdução (veja no Apêndice Documento 1), mas não estava
planejado o assentado terceiro capítulo ―A Posição Socrática‖.
21. Veja Fragmento p. 73 e segs., além do Fragmento 3c no qual se
faz referência à política externa como uma concepção
especificamente romana, p. 122 e segs.
22. A palavra não tem comprovação léxica, tampouco como
―apolitéia‖.
23. Essa referência poderia relacionar-se com o planejado capítulo
―A Posição Socrática‖.
24. Tertuliano, Apologeticus, 38: ―nec ulla magis res aliena
quam publica‖. Compare Arendt, Vita Activa, l. c., p. 71
25. No original acompanha o seguinte texto: ―Pois, os cristãos
não ficam satis feitos em exercer uma misericórdia que vá
além da coisa política; eles têm a pretensão expressa de
‘exercer a justiça’ – e o dar esmolas, do qual fala Mt 6, 1
e segs., e uma concepção judaica bem como do
cristianismo primitivo , em conseqüência totalmente da
justiça e não da misericórdia – só que essa atividade não
deve aparecer diante dos olhos dos homens, não deve ser
vista por eles, mas sim permanecer tão firmemente oculta
que a mão esquerda não possa saber o que a direita faz ,
quer dizer que o autor se ja excluído como observador de
seu próprio feito .‖
26. No original: É sobre a base dessa transformação que se realiza
no pensamento e ação de Agostinho...
27. Carlos I em seu discurso antes de sua decapitação em 30 de
janeiro de 1649: ―Para o povo desejo verdadeiramente sua
liberdade e libertação tanto quanto qualquer outra pessoa. Mas
devo dizer-lhes que sua liberdade e libertação consiste em ter
governo – aqulas leis pelas quais sua vida e seus bens possam ser
seus ao máximo. Não é ter uma parte no governo. Isso não lhes diz
respeito‖. Citado aqui de acordo com Hugh Ross Williamson, The
Day They Killed the King, Nova York: Macmillan, 1957, pp. 139-
144, p. 143. Williamson chama atenção para o fato de que existem
várias versões desse discurso.
28. Compare, por exemplo, Leopold von Ranke, Die grossen
Maechte (1833), em: o mesmo, Geschichte und Politik:
Ausgwaehlte Aufsätze und Meisterschriften, ed. por Hans
Hofmann, Stuttgart: Kroener, 1942, pp. 1-53, p. 2. Não pôde ser
descoberto se Arendt refere-se diretamente a esse ou outros
trechos de Ranke ou se sua afirmação baseia-se apenas numa
67
avaliação geral da obra de Ranke. Compare, porém, Politisches
Gespraech (1836), pp. 78-114, p. 97 na mesma antologia de
Ranke; o título da página provavelmente formulado pelo editor é
―Primado da Política Exterior‖; Ranke faz Karl dizer: ―Parece que na
política as relações exteriores desempenham um grande papel‖.
29. Compare Theodor Eschenburg, Staat und Gesellscha ft in
Deustschland, Stuttgart: Schwab, 1956 p. 19. A citação em
Eschenburg é: ―O Estado como portador da força é uma instituição
da sociedade imprescindível para esta‖.
30. Nos fragmentos deixados, esse pensamento é exposto,
sobretudo no Fragmento 3d.
31. A formulação obsoleta ―levar o conselho‖ pode ter sido inspirada
no poeta de Goethe ―Amyntas‖, em cuja última linha está escrito:
―Quem confiar no amor, leva sua vida a conselho?‖ Agradeço essa
referência à administradora do espólio de Arendt, dra. Lotte
Koehler, Nova York.
32. No original: alojamento de confiança.
33. No original, segue-se o seguinte texto entre parêntese:
―Infelizmente, Marx foi muito melhor historiador do que
teórico e , em geral, só aumentou muito conceitualmente
enquanto teoria aquilo que podia ser demonstrado , de
maneira objetiva, como tendência histórica. O extinguir -se
da coisa pública pertence a essas tendências objetivamente
demonstráveis dos tempos modernos.
Fontes:
https://docs.google.com/folderview?docId=0B-YLV8egGwSuMEd2V0Rlb0hWdTQ&id=0B-YLV8egGwSudGJCc2NQTHJVVVk
Comentários
Postar um comentário