Reflexão crítica: A Política em Hannah Arendt!



Hannah Arendt
Hannah Arendt  uma das mais importantes filósofas do século XX. Cientista política germânica de origem judia nascida em Linden, Hanôver, Alemanha, consagrada como um dos grandes nomes do pensamento político contemporâneo por seus estudos sobre os regimes totalitários e sua visão crítica da questão judaica.

O QUE É POLÍTICA?

[Fragmento 1 (agosto de 1950)]

1. A política baseia-se na pluralidade dos homens. Deus criou o 

homem, os homens são um produto humano mundano, e produto da 

natureza humana. A filosofia e a teologia sempre se ocupam do

homem, e todas as suas afirmações seriam corretas mesmo se 

houvesse apenas um homem, ou apenas dois homens, ou apenas 

homens idênticos. Por isso, não encontraram nenhuma resposta 

filosoficamente válida para a pergunta: o que é política? Mais, ainda: 

para todo o pensamento científico existe apenas o homem — na 

biologia ou na psicologia, na filosofia e na teologia, da mesma forma 

como para a zoologia só existe o leão. Os leões seriam, no caso, uma 

questão que só interessaria aos leões.

1

É surpreendente a diferença de categoria entre as filosofias 

políticas e as obras de todos os grandes pensadores — até mesmo de 

Platão. A política jamais atinge a mesma profundidade. A falta de 

profundidade de pensamento não revela outra coisa senão a própria 

ausência de profundidade, na qual a política está ancorada.

2. A política trata da convivência entre diferentes. Os homens se 

organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais 

num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças. 

Enquanto os homens organizam corpos políticos sobre a família, em 

cujo quadro familiar se entendem, o parentesco significa, em diversos 

graus, por um lado, aquilo que pode ligar os mais diferentes e por 

outro aquilo pelo qual formas individuais semelhantes podem separar-
se de novo umas das outras e umas contra as outras.

Nessa forma de organização, a diversidade original tanto é 

extinta de maneira efetiva como também destruída a igualdade 

essencial de todos os homens. A ruína da política em ambos os lados 

surge do desenvolvimento de corpos políticos a partir da família. Aqui 

já está indicado o que se torna simbólico na imagem da Sagrada 

Família: Deus não criou tanto o homem como o fez com a família.1

3. Quando se vê na família mais do que a participação, ou seja, 

a participação ativa na pluralidade, começa-se a bancar Deus, ou seja, 

a agir como se pudesse sair, de modo natural, do princípio da 

diversidade. Ao invés de se gerar um homem, tenta-se criar o homem 

na imagem de si mesmo.

Porém, sob o ponto de vista prático-político, a família ganha sua 

importância inquestionável porque o mundo assim está organizado, 

porque nele não há nenhum abrigo para o indivíduo — vale dizer, para 

os mais diferentes. As famílias são fundadas como abrigos e castelos 

sólidos num mundo inóspito e estranho, no qual se precisa ter

parentesco. Esse desejo leva à perversão fundamental da coisa 

política, porque anula a qualidade básica da pluralidade ou a perde 

através da introdução do conceito de parentesco.

4. O homem, tal como a filosofia e a teologia o conhecem, existe 

— ou se realiza — na política apenas no tocante aos direitos iguais que 

os mais diferentes garantem a si próprios. Exatamente na garantia e 

concessão voluntária de uma reivindicação juridicamente equânime 

reconhece-se que a pluralidade dos homens, os quais devem a si

mesmos sua pluralidade, atribui sua existência à criação do homem.

5. A filosofia tem duas boas razões para não se limitar a apenas 

encontrar o lugar onde surge a política. A primeira é:

2

a) Zoon politikon:

que pertencesse à sua essência — conceito que não procede; o 

homem é a-político. A política surge no entre-os-homens; portanto, 

totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma 

substância política original. A política surge no intra-espaço e se 

estabelece como relação. Hobbes compreendeu isso.

b) A concepção monoteísta de Deus, em cuja imagem o homem 

deve ter sido criado. Daí só pode haver o homem, e os homens 

tornam-se sua repetição mais ou menos bem-sucedida. O homem, 

criado à imagem da solidão de Deus, serve de base ao state o f 

nature as a war of all against all, de Hobbes. É a rebelião de cada 

um contra todos os outros, odiados porque existem sem sentido —

sem sentido exclusivamente para o homem criado à imagem da 

solidão de Deus.

A solução ocidental dessa impossibilidade da política dentro do 

mito ocidental da criação é a transformação ou a substituição da 

política pela História. Através da idéia de uma história mundial, a 

pluralidade dos homens é dissolvida em um indivíduo-homem, depois 

também chamada de Humanidade. Daí o monstruoso e desumano da 

História, que só em seu final se afirma plena e vigorosamente na 

política.

6. Torna-se difícil compreender que devemos ser livres de fato 

num campo, ou seja, nem movidos por nós mesmos nem dependentes 

do material dado. Só existe liberdade no âmbito particular do conceito 

intra da política. Nós nos salvamos dessa liberdade justo na 

―necessidade‖ da História. Um absurdo abominável.

7. Pode ser que a tarefa da política seja construir um mundo tão 

transparente para a verdade como a criação de Deus. No sentido do 

mito judaico-cristão, isso significaria: ao homem, criado à imagem de 

Deus, foi dada capacidade genética para organizar os homens à 

imagem da criação divina. Provavelmente, um absurdo — mas seria a 

única demonstração e justificativa possível à idéia da lei da Natureza.

Na diversidade absoluta de todos os homens entre si —maior do 

que a diversidade relativa de povos, nações ou raças — a criação do 

homem por Deus está contida na pluralidade. Mas a política nada tem 

a ver com isso. A política organiza, de antemão, as diversidades 

absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às 

diferenças relativas.

2

como se no homem houvesse algo político 

3

CAPITULO 1 – OS PRECONCEITOS

[Fragmento 2b]

I Preconceito e Juízo3

Ao se falar de política, em nosso tempo, é preciso começar pelos 

preconceitos que todos nós temos contra a política — quando não 

somos políticos profissionais. Pois os preconceitos que compartilhamos 

uns com os outros, naturais para nós, que podemos lançar-nos 

mutuamente em conversa sem termos primeiro de explicá-los em 

detalhes, representam em si algo político no sentido mais amplo da 

palavra — ou seja, algo a se constituir num componente integral da 

questão humana, em cuja órbita nos movemos a cada dia. Não se 

precisa deplorar e, em nenhum caso, deve-se tentar modificar o fato 

de os preconceitos desempenharem um papel tão extraordinário no 

cotidiano — e com isso, na política. Pois nenhum homem pode viver 

sem preconceitos, não apenas porque não teria inteligência ou 

conhecimento suficiente para julgar de novo tudo que exigisse um 

juízo seu no decorrer de sua vida, mas sim porque tal falta de 

preconceito requereria um estado de alerta sobre-humano. Por isso, a 

política tem de lidar sempre e em toda parte com o esclarecimento e 

com a dispersão de preconceitos, o que não significa tratar-se, no caso 

de uma educação para a perda de preconceitos, nem que aqueles que 

se esforcem para fazer tal esclarecimento sejam livres de 

preconceitos. A dimensão do estado de alerta e abertura para o mundo 

determina o nível político e o caráter geral de uma época; mas não se 

pode imaginar nenhuma época na qual os homens não pudessem 

reincidir e confiar em seus preconceitos para amplas áreas de juízo e 

decisão.

É evidente que essa justificação do preconceito enquanto medida 

do juízo dentro da vida cotidiana tem seus limites. Ela só vale para os 

verdadeiros preconceitos, quer dizer, para aqueles que não afirmem 

ser juízos. Os verdadeiros preconceitos podem ser reconhecidos, em 

geral, porque recorrem despreocupadamente a um ―dizem‖, ―acham‖, 

sem que, é claro, essa apelação precise ser apresentada de maneira 

expressa. Os preconceitos não são idiossincrasias pessoais que, apesar 

da impossibilidade permanente de sua indemonstrabilidade, sempre 

remontam a uma experiência pessoal dentro da qual persiste a 

evidência de percepções sensoriais. Os preconceitos jamais têm essa 

evidência, nem mesmo para aqueles a eles submetidos por falta de 

experiência. Em contrapartida, como não são ligados a pessoas, 

podem facilmente contar com o assentimento de outras, grandes 

4

esforços de convencimento. Nisso, o preconceito diferencia-se do juízo 

— com o qual, por outro lado, tem em comum o fato de nele os 

homens se reconhecerem e a ele sentirem-se integrados — de modo 

que o homem dotado de preconceitos sempre pode ter certeza de um 

efeito, enquanto que o idiossincrático quase nunca pode realizar-se no 

espaço político-público, só revelando-se no privado íntimo. Por 

conseguinte, o preconceito desempenha um grande papel na coisa 

social pura; na verdade, não existe nenhuma estrutura social que não 

se baseie mais ou menos em preconceitos, através dos quais certos 

tipos de homens são permitidos e outros excluídos. Quanto mais livre 

de preconceitos é um homem, menos apto será para a coisa social 

pura. Mas nós afirmamos não julgar, em absoluto, dentro da sociedade 

e essa renúncia, essa substituição do juízo pelo preconceito só se 

torna perigosa quando se alastra para o âmbito político, onde não 

conseguimos mover-nos sem juízos porque, como veremos mais tarde, 

o pensamento político baseia-se, em essência, na capacidade de 

formação de opinião4

Uma das razões para a eficiência e a periculosidade dos 

preconceitos reside no fato de neles sempre se ocultar um pedaço do 

passado. Além disso, observando-se com mais atenção, vemos que um 

verdadeiro preconceito pode ser reconhecido porque nele se oculta um 

juízo já formado, o qual originalmente tinha uma legítima causa 

empírica que lhe era apropriada e que só se tornou preconceito porque 

foi arrastado através dos tempos, de modo cego e sem ser revisto. 

Com relação a isso, o preconceito diferencia-se do mero boato que não 

sobrevive ao dia ou à hora do rumor e no qual reina uma grande 

confusão caleidoscópica de opiniões e juízos mais heterogêneos. O 

perigo do preconceito reside no fato de originalmente estar sempre 

ancorado no passado, quer dizer, muito bem ancorado e, por causa 

disso, não apenas se antecipa ao juízo e o evita, mas também torna 

impossível uma experiência verdadeira do presente com o juízo. 

Quando se quer difundir preconceitos, é preciso sempre descobrir 

primeiro o juízo anterior neles contido, ou seja, identificar seu 

conteúdo original de verdade. Se porventura se passar ao largo disso, 

batalhões inteiros de oradores esclarecidos e bibliotecas inteiras nada 

podem conseguir, como mostram com clareza os infindos esforços 

infinitamente infrutíferos em relação a problemas sobrecarregados de 

preconceitos mais antigos e radicados, como é o caso dos negros nos 

Estados Unidos ou o problema dos judeus.

Como o preconceito se antecipa ao juízo, recorrendo ao passado, 

sua razão de ser temporal é limitada às épocas históricas — e formam, 

em termos puramente quantitativos, a maior parte da História —, nas 

quais o novo é relativamente raro e o velho predomina na estrutura 

.

5

política e social. A palavra julgar tem, em nosso uso idiomático, dois 

significados distintos um do outro por completo, que sempre 

confundimos quando falamos. Ela significa, por um lado, o subordinar 

do indivíduo e do particular a algo geral e universal, o medir 

normalizador com critérios nos quais se verifica o concreto e sobre os 

quais se decidirá. Em todos esses juízos encontra-se um preconceito; 

só o indivíduo é julgado, mas não o próprio critério nem sua 

adequabilidade para o medir. Também o critério foi um dia posto em 

julgamento, mas depois esse juízo foi assumido e como que se tornou 

um meio para se poder continuar julgando. Mas, julgar também pode 

significar outra coisa bem diferente e, na verdade, sempre quando nos 

confrontamos com alguma coisa que nunca havíamos visto antes e 

para a qual não estão à nossa disposição critérios de nenhum tipo. 

Esse julgar não tem parâmetro, não pode recorrer a coisa alguma 

senão à própria evidência do julgado, não possui nenhum outro 

pressuposto que não a capacidade humana do discernimento, e tem 

muito mais a ver com a capacidade de diferenciar do que com a 

capacidade de ordenar e subordinar.

Conhecemos bem esse julgar sem parâmetros no juízo estético 

ou no juízo de gosto, sobre o qual, como sentenciou Kant, não se pode 

―discutir‖, mas sim brigar e chegar a um acordo; e nós o conhecemos 

na vida cotidiana sempre que, numa situação ainda desconhecida, 

opinamos que este ou aquele teria julgado a situação correta ou 

erradamente. Em toda crise histórica, são sempre os preconceitos que 

cambaleiam primeiro, passa-se a não ter mais nenhuma confiança 

neles e justamente porque não podem contar mais com o 

reconhecimento, em seu caráter descomprometido do ―dizem‖, 

―acham‖, no espaço limitado onde são justificados e usados, eles se 

consolidam, com facilidade, em algo que, por natureza, não existe em 

absoluto — ou seja, transformam-se naquelas pseudoteorias que, 

enquanto visões de mundo fechadas ou ideologias que tudo explicam, 

pretendem compreender a realidade histórica e política. Se a função 

do preconceito é defender o homem julgante para não se expor 

abertamente a cada realidade encontrada e daí ter de defrontá-la 

pensando, então as visões de mundo e ideologias cumprem essa 

tarefa — tão bem que protegem contra toda experiência, pois 

supostamente todo o real está nelas previsto de alguma maneira. É 

justamente essa universalidade distinta tão claramente dos 

preconceitos — que são sempre de natureza parcial — que induz com 

nitidez à conclusão de não se poder mais ter confiança não apenas no 

preconceito, mas também nos critérios do preconceito e no que foi 

nele prejulgado: indica textualmente que eles são inconvenientes. 

Essa falha dos parâmetros no mundo moderno — a impossibilidade de 

6

se julgar o que aconteceu e acontece de novo todos os dias, segundo 

critérios fixos e reconhecidos por todos, de subordiná-lo como caso de 

um esquema geral bem conhecido, assim como a dificuldade, 

estreitamente ligada a isso, de indicar princípios de ação para o que 

irá acontecer — foi descrita, como um niilismo inerente à época, como 

uma desvalorização de todos os valores, uma espécie de crepúsculo 

dos deuses e catástrofe da ordem mundial moral.

Todas essas interpretações pressupõem, de forma tácita, que só 

se podem exigir juízos dos homens onde eles possuem parâmetros; 

que a capacidade de discernimento não seja nada mais do que a 

capacidade de agregar, de modo correto e adequado, o isolado ao 

geral que lhe corresponde e sobre o qual se chegou a um acordo. 

Sabe-se que a capacidade de discernimento insiste e deve insistir em 

julgar de forma direta e sem parâmetros, mas as esferas nas quais tal 

acontece — nas decisões de todo tipo, tanto de natureza pessoal como 

pública, e no chamado  ̳juízo de gosto‘ não são levadas a sério porque, 

de fato, a coisa assim julgada jamais tem caráter imperativo, jamais 

pode forçar os outros a uma concordância no sentido de uma 

conclusão lógica e inevitável; pode apenas e tão-somente convencer. 

Mas é um preconceito em si mesmo o fato de algo imperativo 

adequar-se ao juízo; os critérios, enquanto duram, jamais podem ser 

demonstrados de maneira forçada; só lhes serve, sempre, a evidência 

limitada dos juízos sobre os quais todos concordaram e sobre os quais 

não se precisa mais brigar nem discutir. Forçosa e unicamente 

demonstráveis é a agregação, o medir e a adoção de critérios, a 

regulamentação do isolado e do concreto, feita nesse sentido, e que 

pressupõe a validade do critério segundo a natureza da coisa; e esse 

agregar e regular no qual nada mais é decidido a não ser o proceder, 

provando-se correta ou erradamente, tem muito mais a ver com um 

pensamento que chega a conclusões do que com um pensamento que 

julga. Portanto, a perda de critérios — a determinar, de fato, o mundo 

moderno com sua facticidade e que não pode ser anulada por meio de 

nenhum retorno a velhos conceitos do  ̳bom‘ nem da formação 

arbitrária de novos valores e critérios — só é uma catástrofe do mundo 

moral quando se supõe os homens não estarem em condições de 

julgar a coisa em si, que sua capacidade de discernimento não basta 

para um julgar original. Na verdade, não se poderia exigir deles mais 

do que a aplicação correta de regras conhecidas e a adoção apropriada 

de critérios já existentes.

Se isso estiver certo, se pertencer à natureza do pensamento 

humano o fato de os homens só poderem julgar ali onde têm à mão 

critérios fixos e prontos, então de fato seria certo, como atualmente se 

supõe, que na crise do mundo moderno não é tanto o mundo, mas sim 

7

o próprio homem que saiu dos trilhos. Hoje, tal suposição se impôs 

amplamente dentro dos estabelecimentos de ensino acadêmico, como 

se pode reconhecer pelo fato de as disciplinas que têm a ver com a 

história do mundo e com aquilo que sucede nela5

primeiro nas ciências sociais e depois na psicologia. Isso não significa 

nada mais do que a renúncia do estudo  ̳histórico‘ do mundo —

dissecado em suas camadas cronológicas em favor do estudo do modo 

de conduta, primeiro, social e depois humano — o qual, por sua vez, 

só pode tornar-se objeto de uma pesquisa sistemática quando se 

exclui o homem atuante, o autor dos acontecimentos mundiais 

demonstráveis, degradando-o a um ser que só reage, que pode ser 

submetido a experiências e do qual até pode-se esperar ter 

definitivamente sob controle. Talvez mais característico do que essa 

disputa acadêmica das faculdades, na qual sempre se apresentam 

reivindicações de poder nem um pouco acadêmicas, seja o fato de um 

semelhante deslocamento do interesse do mundo para o homem 

manifestar-se no resultado de uma pesquisa recente, na qual à 

pergunta sobre o que estaria hoje no centro das preocupações seguiu-
se a resposta quase unânime: o homem6

ameaça do gênero humano pela bomba atômica (tal preocupação seria 

justificada, na realidade); é evidente que os entrevistados 

reportavam-se à essência do homem, entendendo-se com isso o 

indivíduo. Num e noutro caso — e esses exemplos podem multiplicar-
se à vontade —, em nenhum momento duvida-se de o homem ter 

saído dos trilhos ou estar em perigo; ou de ser quem deve ser 

modificado.

Não importa como pode ser feita a pergunta, se é o homem ou o 

mundo que corre perigo na crise atual, mas uma coisa é certa: a 

resposta que empurra o homem para o ponto central das 

preocupações do presente e que acha que deve modificá-lo, remediá-

lo, é apolítica em seu sentido mais profundo. Pois, no ponto central da 

política está sempre a preocupação com o mundo e não com o homem 

— e, na verdade, a preocupação com um mundo assim ou com um 

mundo arranjado de outra maneira, sem o qual aqueles que se 

preocupam e são políticos, julgam que a vida não vale a pena ser 

vivida. E modifica-se o mundo tão pouco, modificando-se os homens 

dele — abstraindo-se a impossibilidade prática de tal empreendimento 

— quanto se muda uma organização ou uma associação, começando-
se a influenciar seus membros, de uma maneira ou de outra. Se se 

quer mudar uma instituição, uma organização ou entidade pública 

existente no mundo, então só se pode renovar sua constituição, suas 

leis, seus estatutos e esperar que tudo mais se produza por si mesmo. 

Isso está relacionado com o fato de que em toda parte em que os 

terem sido diluídas 

. Não se referia, contudo, à 

8

homens se agrupam — seja na vida privada, na social ou na público-
política —, surge um espaço que os reúne e ao mesmo tempo os 

separa uns dos outros. Cada um desses espaços tem sua própria 

estruturabilidade que se transforma com a mudança dos tempos e que 

se manifesta na vida privada em costumes; na social, em convenções 

e na pública em leis, constituições, estatutos e coisas semelhantes. 

Sempre que os homens se juntam, move-se o mundo entre eles, e 

nesse interespaço ocorrem e fazem-se todos os assuntos humanos.

O espaço entre os homens que é o mundo, com certeza não 

pode existir sem eles e um mundo sem homens, ao contrário de um 

universo sem homens ou uma natureza sem homens, seria uma 

contradição em si — sem isso significar, porém, que o mundo e as 

catástrofes que nele ocorrem seriam reduzidos a um acontecer 

puramente humano, muito menos reduzidos a algo que acontecesse 

com  ̳o homem‘ ou com a natureza do homem. Pois o mundo e as 

coisas do mundo em cujo centro se realizam os assuntos humanos não 

são a expressão — a impressão como que formada para fora — da 

natureza humana, mas sim o resultado de algo que os homens podem 

produzir: que eles mesmos não são, ou seja, coisas, e que os 

pretensos âmbitos espirituais ou intelectuais só se tornam realidades 

duradouras para eles, nas quais se podem mover, desde que existam 

objetivados enquanto mundo real. Os homens agem nesse mundo real 

e são condicionados por ele e exatamente por esse condicionamento 

toda catástrofe ocorrida e ocorrente nesse mundo é neles refletida, co-
determina-os. Seria inimaginável tal catástrofe ser tão monstruosa, 

tão aniquiladora do mundo a ponto de as capacidades formadoras do 

mundo e realizadoras7 do homem também serem afetadas, e o homem 

tornar-se tão  ̳sem mundo‘, como o animal. Podemos até imaginar 

que, no passado, tais catástrofes tenham acontecido em tempos pré-

históricos e que certas tribos dos chamados povos primitivos sejam 

seus resíduos, suas sobras  ̳sem mundo‘. Também podemos imaginar 

que uma guerra atômica se permitisse a sobrevivência de alguma vida 

humana, poderia provocar uma catástrofe assim através da destruição 

do mundo inteiro. Mesmo assim, será sempre o mundo, bem como o 

curso do mundo — do qual os homens não [são] mais senhores, do 

qual se alhearam tanto que o automatismo inerente a todo processo 

pode realizar-se sem ser impedido —, no qual os homens sucumbem. 

Tampouco trata-se daquelas possibilidades de preocupação com os 

homens acima mencionada. O pior e mais inquietante dela é 

essencialmente o fato de não se interessar mais, em absoluto, por 

esses perigos  ̳externos‘ e, por conseguinte, altamente reais, e desviá-

los para um âmbito interior que pode no máximo ser refletido, mas 

não tratado nem modificado.

9

Contra isso se poderia objetar com facilidade ser o mundo do 

qual se fala aqui o mundo dos homens, quer dizer, o resultado do 

fazer humano e do agir humano, como se queira entender isso. Essas 

capacidades pertencem, com certeza, à natureza do homem; se 

falham, não se deveria mudar a natureza do homem, antes de se 

poder pensar numa mudança do mundo? Essa objeção é antiqüíssima 

em sua essência e pode recorrer às melhores testemunhas — a saber, 

a Platão que já censurava Péricles, afirmando que, depois da morte, os 

atenienses não seriam melhores do que antes.

10

CAPITULO I: O SENTIDO DA POLÍTICA8

[Fragmento 3b]

A pergunta sobre o sentido da política e a desconfiança em relação à 

política são muito antigas, tão antigas quanto a tradição da filosofia 

política. Elas remontam a Platão e talvez até mesmo a Parmênides e 

nasceram de experiências muito reais de filósofos com a polis: 

significa como a forma de organização do convívio humano, que 

determinou, de forma tão exemplar e decisiva, aquilo que entendemos 

hoje por política que até mesmo nossa palavra para isso, em todos os 

idiomas europeus, deriva daí.

Tão antigas quanto a pergunta sobre o sentido da política são as 

respostas que justificam a política; quase todas as classificações ou 

definições da coisa política que encontramos em nossa tradição são, 

quanto a seu conteúdo original, justificações. Falando-se de maneira 

bastante geral, todas essas justificações ou definições têm como 

objetivo classificar a política como um meio para um fim mais elevado, 

sendo a determinação dessa finalidade bem diferente ao longo dos 

séculos. Contudo, essa diferença também pode ser reduzida a algumas 

poucas respostas básicas, e o fato de assim ser indica a simplicidade 

elementar das coisas com as quais temos de lidar aqui.

A política, assim aprendemos, é algo como uma necessidade 

imperiosa para a vida humana e, na verdade, tanto para a vida do 

indivíduo como da sociedade. Como o homem não é autárquico, porém 

depende de outros em sua existência, precisa haver um provimento da 

vida relativo a todos, sem o qual não seria possível justamente o 

convívio. Tarefa e objetivo da política é a garantia da vida no sentido 

mais amplo. Ela possibilita ao indivíduo buscar seus objetivos, em paz 

e tranqüilidade, ou seja, sem ser molestado pela política — sendo 

antes de mais nada indiferente em quais esferas da vida se situam 

esses objetivos garantidos pela política, quer se trate, no sentido da 

Antigüidade, de possibilitar a poucos a ocupação com a filosofia, quer 

se trate, no sentido moderno, de assegurar a muitos a vida, o ganha-
pão e um mínimo de felicidade. Como, além disso, conforme Madison 

observou um dia, trata-se nesse convívio de homens e não de anjos9

o provimento da vida só pode realizar-se através de um Estado, que 

possui o monopólio do poder e impede a guerra de todos contra todos.

Comum a essas respostas é o fato de elas se julgarem naturais, 

de que a política existe e existiu sempre e em toda parte, onde os 

homens convivem num sentido histórico-civilizatório. Para esse caráter 

11

natural, costuma-se recorrer à definição aristotélica do homem 

enquanto ser político, e esse recurso não é indiferente porque a polis 

determinou de maneira decisiva, tanto em termos de idioma como de 

conteúdo, a concepção européia do que seria política originalmente e 

que sentido ela tem. Tampouco é indiferente porque a citação a 

Aristóteles baseia-se num equívoco também bastante antigo, embora 

pós-clássico. Aristóteles, para quem a palavra politikon era de fato um 

adjetivo da organização da polis e não uma designação qualquer para 

o convívio humano, não achava, de maneira nenhuma, que todos os 

homens fossem políticos ou que a política, ou seja, uma polis, 

houvesse em toda parte onde viviam homens. De sua definição 

estavam excluídos não apenas os escravos, mas também os bárbaros 

asiáticos, remos de governo despótico, de cuja qualidade humana não 

duvidava, de maneira alguma. Ele julgava ser apenas uma 

característica do homem o fato de poder viver numa polis e que essa 

organização da polis representava a forma mais elevada do convívio 

humano; por conseguinte, é humana num sentido específico, tão 

distante do divino que pode existir apenas para si em plena liberdade 

e independência, e do animal cujo estar junto, onde existe, é uma 

forma da vida em sua necessidade. Portanto, a política na acepção de 

Aristóteles — e Aristóteles não reproduz aqui, como em muitos outros 

pontos de seus escritos políticos, sua opinião sobre a coisa, mas sim a 

opinião compartilhada por todos os gregos da época, embora em geral 

não articulada — não é, de maneira nenhuma, algo natural e não se 

encontra, de modo algum, em toda parte onde os homens convivem. 

Ela existiu, segundo a opinião dos gregos, apenas na Grécia e mesmo 

ali num espaço de tempo relativamente curto.

O que distingue o convívio dos homens na polis de todas as 

outras formas de convívio humano que eram bem conhecidas dos 

gregos, era a liberdade. Mas isso não significa entender-se aqui a coisa 

política ou a política justamente como um meio para possibilitar aos 

homens a liberdade, uma vida livre. Ser-livre e viver-numa-polis eram, 

num certo sentido, a mesma e única coisa. A propósito, apenas num 

certo sentido; posto que para poder viver numa polis, o homem já 

devia ser livre em outro sentido — ele não devia estar subordinado 

como escravo à coação de um outro nem como trabalhador à 

necessidade do ganha-pão diário. Primeiro, o homem precisava ser 

livre ou se libertar para a liberdade, e esse ser livre do ser forçado 

pela necessidade da vida era o sentido original do grego schole ou do 

romano otium, o ócio, como dizemos hoje. Essa libertação, diferente 

da liberdade, era um objetivo que podia e devia ser atingido através 

de determinados meios. O meio decisivo era a sociedade escravagista, 

o poder com o qual outros eram forçados a assumir a preocupação 

12

com a vida diária. Ao contrário de todas as formas de exploração 

capitalista que perseguem sobretudo objetivos econômicos e servem 

ao enriquecimento, no caso da exploração do trabalho escravo na 

Antiguidade tratava-se de liberar os senhores por completo do 

trabalho a fim de dispô-los para a liberdade da coisa política. Essa 

libertação realizava-se através da coação e da força e baseava-se no 

domínio absoluto que o dono da casa exercia em seu domicílio. Mas 

esse domínio não era político, se bem que representasse uma condição 

indispensável de toda a coisa política. Portanto, se quiserem entender 

a coisa política no sentido da categoria meio-objetivo, ela era, tanto na 

acepção grega como na acepção de Aristóteles, antes de qualquer 

coisa um objetivo e não um meio. E o objetivo não era pura e 

simplesmente a liberdade tal como ela se realizava na polis, mas sim a 

libertação pré-política para a liberdade na polis. O sentido da coisa 

política aqui, mas não seu objetivo, é os homens terem relações entre 

si em liberdade, para além da força, da coação e do domínio ais com 

iguais que só em caso de necessidade, ou seja, em tempos de guerra 

davam ordens e obedeciam uns aos outros; porém, exceto isso, 

regulamentavam todos os assuntos por meio da conversa mútua e do 

convencimento recíproco.

A coisa política entendida nesse sentido grego está, portanto, 

centrada em torno da liberdade, sendo liberdade entendida 

negativamente como o não-ser-dominado e não-dominar, e 

positivamente como um espaço que só pode ser produzido por muitos, 

onde cada qual se move entre iguais. Sem esses outros que são meus 

iguais não existe liberdade alguma e por isso aquele que domina 

outros e, por conseguinte, é diferente dos outros em princípio, é mais 

feliz e digno de inveja que aqueles a quem ele domina, mas não é 

mais livre em coisa alguma. Ele também se move num espaço no qual 

a liberdade não existe, em absoluto. Isso é difícil nós compreendermos 

porque vinculamos à igualdade o conceito de justiça e não o de 

liberdade e, desse modo, compreendemos mal a expressão grega para 

uma constituição livre, a isonomia [Isonomie], em nosso sentido de 

uma igualdade perante a lei. Porém, isonomia não significa que todos 

são iguais perante a lei nem que a lei seja igual para todos, mas sim

que todos têm o mesmo direito à atividade política; e essa atividade 

na polis era de preferência uma atividade da conversa mútua.

Por isso, isonomia é, antes de mais nada, liberdade de falar e 

como tal o mesmo que isegoria; mais tarde, em Polibios, ambas 

significam apenas isologia10

ouvir na forma de obedecer não eram avaliados como falar e ouvir 

originais; não era uma conversa livre porquanto comprometida com 

um fenômeno determinado não pela conversa, mas sim pelo fazer ou 

. Porém, o falar na forma de ordenar e o 

13

trabalhar. As palavras eram aqui como que o substituto do fazer e, na 

verdade, de um fazer que pressupunha o forçar e o ser forçado. 

Quando os gregos diziam que escravos e bárbaros eram aneu logou, 

não dominavam a palavra, queriam dizer que eles se encontravam 

numa situação na qual era impossível a conversa livre. Na mesma 

situação encontra-se o déspota que só conhece o ordenar; para poder 

conversar, ele precisava de outros de categoria igual à dele. Portanto, 

para a liberdade não se precisava de uma democracia igualitária no 

sentido moderno, mas sim de uma esfera limitada de maneira 

estreitamente oligárquica ou aristocrática, na qual pelo menos os 

poucos ou os melhores se relacionassem entre si como iguais entre 

iguais. Claro que essa igualdade não tem a mínima coisa a ver com 

justiça.

Decisivo dessa liberdade política era o fato de ser ela vinculada 

espacialmente. Quem deixava sua polis ou era dela degredado, perdia 

não apenas sua terra natal ou pátria, mas também o único espaço no 

qual poderia ser livre; perdia a companhia daqueles que eram seus 

iguais. Mas esse espaço da liberdade era tão pouco necessário ou 

indispensável para sua vida e o sustento de sua existência que ele era 

mais embaraçoso para ela. Os gregos sabiam por experiência própria 

que um tirano sensato (o que chamamos hoje de déspota esclarecido) 

era de grande vantagem para o puro bem-estar da cidade e o 

florescimento das artes tanto materiais como intelectuais. Só a 

liberdade estava extinta. Os cidadãos eram desterrados em suas 

casas, e era isolado o espaço no qual se realizava o livre trânsito entre 

iguais, a ágora. A liberdade não tinha mais nenhum espaço e isso 

significava: não havia mais liberdade política.

Ainda não podemos tratar aqui do que acontecia, de fato, com 

essa perda da coisa política que, na acepção da Antigüidade, coincidia 

com a perda de liberdade. Tratamos aqui apenas de que uma breve 

reminiscência daquilo que estava ligado originalmente ao conceito da 

coisa política nos deve curar do preconceito moderno, segundo o qual 

a política seria uma necessidade imperiosa e que ela teria existido 

sempre e em toda parte. A política não é necessária, em absoluto —

seja no sentido de uma necessidade imperiosa da natureza humana 

como a fome ou o amor, seja no sentido de uma instituição 

indispensável do convívio humano. Aliás, ela só começa — onde cessa 

o reino das necessidades materiais e da força física. Como tal, a coisa 

política existiu sempre e em toda parte tão pouco que, falando em 

termos históricos, apenas poucas grandes épocas a conheceram e 

realizaram. Esses poucos e grandes acasos felizes da História são, 

porém, decisivos; é só neles que se manifesta de cheio o sentido da 

política e, na verdade, tanto o bem quanto a desgraça da coisa 

14

política. Com isso, eles tornam-se determinantes, mas não a ponto de 

poder ser copiadas as formas de organização que lhes são inerentes, e 

sim porque certas idéias e conceitos que se tornaram plena realidade 

para um curto período de tempo, também co-determinem as épocas 

para as quais seja negada uma experiência plena com a coisa política.

A mais importante dessas idéias — que também para nós 

pertence inegavelmente ao conceito da política e que, por conseguinte, 

sobreviveu a todas as mudanças históricas e a todas as 

transformações teóricas — é, sem dúvida, a idéia da liberdade. O fato 

de a política e a liberdade serem ligadas e de a tirania ser a pior de 

todas as formas de Estado — ser na prática antipolítica — estende-se 

como uma diretriz através do pensar e agir da Humanidade até os 

tempos mais recentes. Apenas as formas de Estado totalitárias e as 

ideologias correspondentes — não o marxismo que proclamava o reino 

da liberdade e compreendia a ditadura do proletariado, no sentido 

romano, como uma instituição temporária da revolução — ousaram 

cortar essa linha, mas o verdadeiro novo e assustador desse 

empreendimento não é a negação da liberdade ou a afirmação que a 

liberdade não é boa nem necessária para o homem, e sim a concepção 

segundo a qual a liberdade dos homens precisa ser sacrificada para o 

desenvolvimento histórico, cujo processo só pode ser impedido pelo 

homem quando este age e se move em liberdade. Essa concepção é 

comum a todos os movimentos políticos e ideológicos específicos. Do 

ponto de vista teórico, torna-se decisivo a liberdade não ser localizada 

nem no homem atuante e semovente nem no espaço que surge entre 

os homens, mas sim apresentada num processo que se realiza pelas 

costas do homem atuante e age, às escondidas, do outro lado do 

espaço visível dos assuntos públicos. O modelo desse conceito de 

liberdade é o rio que corre livremente, diante do qual qualquer 

intervenção representa uma arbitrariedade a obstruir seu fluxo. As 

modernas identificações da antiqüíssima oposição entre liberdade e 

necessidade e o par de contrastes que a substitui, de liberdade e 

intervenção, têm sua justificação secreta neste modelo. Em todos 

esses casos, o moderno conceito de História substitui um conceito de 

política qualquer que seja sua natureza; acontecimentos políticos e 

agir político são diluídos no acontecer histórico, e a História é 

compreendida, no sentido mais textual, como um fluxo da história. A 

diferença entre esse difundido pensamento ideológico e as formas 

totalitárias de Estado é que estas descobriram os meios políticos para 

encaixar os homens no fluxo da História de tal maneira a ele ser 

compreendido, em relação à  ̳liberdade‘, ao fluxo  ̳livre‘ dela, 

exclusivamente como não podendo obstruir esse fluxo, ao contrário, 

tornando-se um momento de sua aceleração. Os meios pelos quais 

15

isso acontece são um processo externo de coação do terror e a 

pressão exercida por dentro do pensamento ideológico, ou seja, um 

pensamento que, bem no sentido do fluxo da História, também vem 

junto no íntimo, por assim dizer. Esse desenvolvimento totalitário é, 

sem dúvida, o passo decisivo no caminho da abolição da liberdade. 

Mas não impede que, em termos teóricos, o conceito de liberdade 

desapareça em toda parte onde, no pensamento dos novos tempos, o 

conceito da História substitui o conceito da política.

Que a idéia de a política ter necessariamente alguma coisa a ver 

com a liberdade, depois de haver nascido pela primeira vez na polis 

grega, conseguir perdurar através dos milênios é tanto mais notável e 

confortador porque quase não existe outro conceito no pensamento e 

na experiência ocidental que se tenha transformado tanto e também 

se enriquecido tanto no decorrer desse espaço de tempo. 

Originalmente, ser livre nada mais significava que poder ir aonde bem 

se desejasse, mas isso continha mais do que [aquilo] que hoje 

entendemos como liberdade de ir e vir. Significava não apenas que 

não se estava subordinado à coação de nenhum homem, mas também 

que era possível distanciar-se de todo o âmbito da obrigação, da casa 

e de sua ―família‖ (esse conceito romano que Mommsen traduziu um 

dia apenas como servidão11). Tal liberdade só tinha o senhor da casa, 

e ela não consistia em ele dominar os demais membros da casa, mas 

que em função desse domínio, ele podia abandonar sua casa, a família 

no sentido da Antiguidade. Evidente que o elemento do risco, da 

aventura, era inerente a essa liberdade; a casa da qual o ir embora 

era uma opção ao bel-prazer do homem livre, não era apenas o lugar 

no qual os homens dominavam por necessidade e pressão, mas 

também — e numa ligação mais estreita —o lugar onde a vida de cada 

qual estava assegurada, onde tudo estava orientado para satisfazer às 

necessidades vitais. Portanto, só podia ser livre quem estivesse 

disposto a arriscar a vida, e tinha alma escrava; e era não-livre aquele 

que se agarrava à vida com um amor grande demais — um vício para 

o qual o idioma grego tinha uma palavra própria12

Essa concepção, de que só pode ser livre quem está disposto a 

arriscar sua vida, nunca mais desapareceu de todo de nossa 

consciência; o mesmo vale para a ligação entre a coisa política e 

perigo e risco. A coragem é a mais antiga das virtudes políticas e ainda 

hoje pertence às poucas virtudes cardeais da política, porque só 

podemos chegar no mundo público comum a todos nós — que, no 

fundo, é o espaço político — se nos distanciarmos de nossa existência 

privada e da conexão familiar com a qual nossa vida está ligada. Aliás, 

o espaço no qual entravam aqueles que ousavam ultrapassar a soleira 

da casa já deixou de ser, em nossa época, um âmbito de grandes 

.

16

empreendimentos e aventuras, no qual o homem só podia entrar e no 

qual só podia esperar sair vitorioso se se ligasse a outros que eram 

seus iguais. Além disso, é verdade que surge no mundo aberto para os 

corajosos, os aventureiros e os ávidos por empreendimento uma 

espécie de espaço público, mas ainda não-político no verdadeiro 

sentido. Torna-se público esse espaço no qual avançam os ávidos por 

façanhas, porque eles estão entre seus iguais e se podem conceder 

aquele ver, ouvir e admirar o feito, cuja tradição vai fazer com que o

poeta e o contador de histórias mais tarde possam assegurar-lhes a 

glória para a posteridade. Ao contrário do que acontece na vida 

privada e na família, no recolhimento das quatro paredes, aqui tudo 

aparece naquela luz que só pode ser criada em público, o que quer 

dizer na presença de outros. Mas essa luz, condição prévia de toda 

manifestação real, é enganadora enquanto for apenas pública e não-
política. O espaço público da aventura e do empreendimento 

desaparece assim que tudo chega a seu fim, logo que dissolvido o 

acampamento do exército e os  ̳heróis‘ —que em Homero nada mais 

significam que os homens livres — retornam para suas casas. Esse 

espaço público só se torna político quando assegurado numa cidade, 

quer dizer, quando ligado a um lugar palpável que possa sobreviver 

tanto aos feitos memoráveis quanto aos nomes dos memoráveis 

autores, e possa ser transmitido à posterioridade na seqüência das 

gerações. Essa cidade a oferecer aos homens mortais e a seus feitos e 

palavras passageiros um lugar duradouro constitui a polis — que é 

política e, desse modo, diferente de outros povoamentos (para os 

quais os gregos tinham uma palavra específica13), porque 

originalmente só foi construída em torno do espaço público, em torno 

da praça do mercado, na qual os livres e iguais podiam encontrar-se a 

qualquer hora.

Essa estreita união do político com o homérico é de grande 

importância para a compreensão de nosso conceito de liberdade 

política tal como aparece em sua origem na polis grega. E não apenas 

porque Homero se tornou o educador dessa polis, mas também porque 

em conseqüência do auto-entendimento grego, a organização e 

fundação da polis estavam ligadas, da maneira mais íntima, com as 

experiências que existiam dentro do homérico. Desse modo, o conceito 

central da polis livre e não dominada por nenhum tirano, pode ser 

situado, sem dificuldade, no conceito da isonomia e da isegoria da 

era homérica (Pauly-Wissowa, loc. cit.14), porque a enorme 

experiência das possibilidades de uma vida entre iguais existia, de 

fato, como modelo no épico de Homero; e, o que talvez fosse mais 

importante, era possível compreender o surgimento da polis como 

uma resposta a essas experiências. Isso podia acontecer de uma 

17

maneira como que negativa — no sentido como Péricles referiu-se a 

Homero na oração fúnebre: a polis precisava ser fundada para 

assegurar um paradeiro para a grandeza do fazer e do falar humanos, 

que fosse mais seguro15 do que a memória que o poeta fixava no 

poema, tornando-a duradoura16. Também poderia ser compreendido 

de modo positivo — no sentido conferido por Platão (na 11a 

Epístola17): a polis nasceu do encontro de grandes acontecimentos na 

guerra ou em outros feitos, quer dizer, das próprias atividades 

políticas e de sua grandeza original. Em ambos os casos, são como se 

o acampamento do exército de Homero não fosse desfeito, senão 

depois que o regresso à pátria, quando fundasse a polis para então 

encontrar um espaço onde pudessem reunir-se permanentemente. 

Não importa quanto pode ter-se modificado através dessa constância 

no futuro, o conteúdo da polis permanece ligado no homérico como em 

sua origem.

A propósito, é natural que nesse sentido específico de espaço 

político desvie-se aquilo que se entendia por liberdade; o sentido do 

empreendimento e da aventura retrocede cada vez mais e aquilo que 

era, de certo modo, apenas o acessório indispensável, a constante 

presença de outros, o relacionamento com iguais na publicidade da 

ágora, como Heródoto diz, a isegoria torna-se o verdadeiro conteúdo 

do ser-livre. Ao mesmo tempo, a mais importante atividade para o 

ser-livre desloca-se do agir para o falar, da ação livre para a palavra 

Esse deslocamento é de grande importância, em nosso conceito 

tradicional de liberdade no qual a concepção de que agir e falar são, 

em princípio, separados um do outro, de que correspondem, de certa 

maneira, a duas capacidades bem diferentes do homem: faz-se valer 

de forma muito mais decisiva do que na própria história da Grécia. 

Pois um dos traços essenciais mais notáveis e excitantes justamente 

do pensamento grego é que nele, desde o começo — ou seja, já em 

Homero — não ocorre tal separação de princípio entre falar e agir, e o 

autor de grandes feitos também deve ser sempre, ao mesmo tempo, 

um orador de grandes palavras — e não apenas porque grandes 

palavras precisam acompanhar os grandes feitos, explicando-os, por 

assim dizer, feitos esses que, caso contrário, cairiam mudos no 

esquecimento, mas porque o próprio falar era compreendido a priori

como uma espécie de agir. É verdade que o homem não pode 

proteger-se contra os golpes do destino, contra os golpes dos deuses, 

mas pode opor-se a eles e retrucar-lhes no falar e, se bem que esse 

retrucar não adiante nada, não mude a infelicidade nem atraia a 

felicidade, essas palavras pertencem ao acontecer como tal; se as 

palavras são iguais ao acontecimento, se (como no final de Antígona) 

18

―grandes palavras‖ replicam e pagam na mesma moeda ―os grandes 

golpes dos ombros altos‖, então o que sucede é algo grandioso e digno 

da lembrança enaltecedora. A tragédia grega e seu drama, nela 

tratado, baseiam-se nessa convicção básica, de que o falar é, nesse 

sentido, uma espécie de ação, de que o declínio pode tornar-se um 

feito se palavras forem lançadas em sua direção enquanto se 

sucumbe.

Justamente essa concepção do falar encontra-se na origem da 

descoberta do poder independente do logos pela filosofia grega, que 

retrocede na experiência da polis e desaparece, por completo, da 

tradição do pensamento político. A liberdade de externar opinião, o 

direito de ouvir opiniões de outros e de também ser ouvido, que para 

nós constitui também parte indispensável da liberdade política, 

suplantou a liberdade não em contradição com ela, mas que possui 

uma natureza bem diferente, característica do agir e do falar, desde 

que seja uma ação. Essa liberdade consiste naquilo que chamamos de 

espontaneidade que, segundo Kant, se baseia no fato de cada homem 

ser capaz de começar uma série de novo por si mesmo. O fato de que 

liberdade de agir é equivalente a estabelecer-um-início-e-começar-
alguma-coisa é ilustrado, da melhor maneira dentro do âmbito político 

grego, porque a palavra archein tanto significa começar como 

dominar. É evidente que esse duplo significado indica que 

originalmente era chamado de guia aquele que começava uma coisa, 

procurava companheiros a fim de poder levá-la a cabo; e esse levar a 

cabo e levar-ao-fim-a-coisa-começada era o significado original da 

palavra para agir, prattein. Encontramos esse acoplamento do ser-
livre com o começar na concepção romana, segundo a qual a grandeza 

dos antepassados está contida na fundação de Roma e a liberdade, 

dos romanos sempre pode ser atribuída a essa fundação — ab urbe 

condita —, na qual foi feito um começo. Então, Agostinho 

fundamentou ontologicamente essa liberdade romana experimentada, 

dizendo ser o próprio homem um começo, um initium, porquanto 

nem sempre existiu, senão que só veio ao mundo por meio do 

nascimento. Apesar da filosofia política de Kant que, a partir da 

experiência da Revolução Francesa, se tornou uma filosofia da 

liberdade porque, em seu âmago, está centrada em torno do conceito 

da espontaneidade, parece que só hoje reconhecemos o extraordinário 

significado político inserido no poder-começar, pois as formas de 

dominação total não se contentaram em pôr um fim no livre externar 

de opinião, senão que puseram mãos à obra para exterminar, em 

princípio, a espontaneidade do homem em todas as áreas. Por outro 

lado, isso é inevitável sempre que o processo histórico-político foi 

definido de maneira determinística, como algo definido de antemão e 

19

segundo suas próprias leis, podendo ser reconhecido por isso. Contra a 

possível determinação e distinguibilidade do futuro está o fato de o 

mundo se renovar a cada dia por meio do nascimento e, pela 

espontaneidade dos recém-chegados, está sempre se comprometendo 

com um novo imprevisível. Só quando os recém-nascidos são privados 

de sua espontaneidade, de seu direito a começar algo novo, o curso do 

mundo pode ser determinado e previsto, de maneira determinística.

A liberdade de externar opinião, determinante para a 

organização da polis, distingue-se da liberdade característica do agir, 

do fazer um novo começo, porque numa medida muitíssimo maior não 

pode prescindir da presença de outros e do ser-confrontado com suas 

opiniões. É verdade que o agir também jamais pode realizar-se em 

isolamento, porquanto aquele que começa alguma coisa só pode levá-

la a cabo se ganhar outros que o ajudem. Nesse sentido, todo agir é 

um agir in concert, como Burke costumava dizer:18 ―é impossível agir 

sem amigos e companheiros dignos de confiança‖ (Platão, 7a Epístola 

325d19), ou seja, impossível no sentido do prattein grego, do 

executar e do concluir. Mas isso mesmo é apenas uma fase do agir, 

embora politicamente seja o mais importante, em suma, aquilo que 

determina no final o que será feito dos assuntos dos homens e que 

aspecto terão. Precede-lhe o começar, o ; essa iniciativa, que decide 

quem será o guia ou archon, o primus inter pares, cabe ao 

indivíduo e sua coragem de se envolver num empreendimento. Por 

fim, alguém como Hércules — a quem os deuses ajudam — pode 

realizar grandes façanhas mesmo sozinho e precisava dos homens 

apenas para receber a notícia sobre elas. A própria liberdade da 

espontaneidade é, por assim dizer, pré-política, se bem que sem ela 

toda a liberdade política perderia seu melhor e mais profundo sentido; 

ela só depende das formas de organização da vida em comum na 

medida em que também pode ser organizada do mundo para fora. Mas 

como, em última análise, ela nasce do indivíduo, é só em 

circunstâncias muito desfavoráveis que ela ainda consegue salvar-se 

da intervenção, por exemplo, de uma tirania; na produtividade do 

artista, como de todos aqueles que produzem alguma coisa qualquer 

do mundo no isolamento contra outros, também se apresenta a 

espontaneidade e se pode dizer que nenhum produzir é possível que 

não tenha sido criado por meio da capacidade para agir. Contudo, 

muitas atividades do homem só podem realizar-se longe da esfera 

política e essa distância é até, como veremos mais tarde20

condição essencial para determinadas produtividades humanas.

Algo bem diferente ocorre com a liberdade do falar um com o 

outro. Ela só é possível no trato com outros. Sua importância sempre 

foi múltipla e ambígua e, já na Antigüidade, possuía a ambigüidade 

20

duvidosa que ainda tem para nós. Mas, naquele tempo como hoje, o 

decisivo não era, de maneira alguma, cada um poder dizer o que bem 

entendesse, ou cada homem ter um direito imanente de se expressar 

tal como era. Trata-se aqui talvez da experiência de ninguém poder 

compreender por si, de maneira adequada, tudo que é objetivo em sua 

plenitude, porque a coisa só se mostra e se manifesta numa 

perspectiva, adequada e inerente à sua posição no mundo. Se alguém 

quiser ver e conhecer o mundo tal como ele é  ̳realmente‘, só poderá 

fazê-lo se entender o mundo como algo comum a muitos, que está 

entre eles, separando-os e unindo-os, que se mostra para cada um de 

maneira diferente e, por conseguinte, só se torna compreensível na 

medida em que muitos falarem sobre ele e trocarem suas opiniões, 

suas perspectivas uns com os outros e uns contra os outros. Só na 

liberdade do falar um com o outro nasce o mundo sobre o qual se fala, 

em sua objetividade visível de todos os lados. O viver-num-mundo-
real e o falar-sobre-ele-com-outros são, no fundo, a mesma e única 

coisa, e a vida privada parecia  ̳idiota‘ para os gregos porque os 

privava dessa complexidade do conversar-sobre-alguma-coisa e, com 

isso, da experiência sobre como a coisa acontecia, de fato, no mundo.

Essa liberdade de movimento, seja a liberdade de ir em frente e 

começar algo novo e inaudito, ou seja, a liberdade de se relacionar 

com muitos conversando e tomar conhecimento de muitas coisas que, 

em sua totalidade, são o mundo em dado momento, não era nem é, 

de maneira alguma, o objetivo da política — aquilo que seria 

alcançável por meios políticos; é muito mais o conteúdo e sentido 

original da própria coisa política. Nesse sentido, política e liberdade 

são idênticas e sempre onde não existe essa espécie de liberdade, 

tampouco existe o espaço político no verdadeiro sentido. Por outro 

lado, os meios com os quais se pode fundar esse espaço político e 

proteger sua existência não são, de modo algum, sempre e 

necessariamente meios políticos. Desse modo, os gregos, por 

exemplo, não reconheceram como atividades políticas legítimas —

quer dizer, como uma espécie de agir que está contida na essência da 

polis — esses meios com os quais o espaço político é formado e 

mantido. Eles eram de opinião que, para a fundação de uma polis, só 

se precisava de um ato legislativo, mas esse legislador não era um 

cidadão da polis e aquilo que ele fazia não era, em absoluto,  ̳político‘. 

Além disso, eram de opinião de que sempre que a polis tinha a ver 

com outros Estados, não precisava mais proceder politicamente, senão 

que podia empregar a força — seja porque sua existência corresse 

perigo pelo poder de outras coletividades, seja porque ela mesma 

desejasse tornar outros vassalos seus. O que hoje denominamos 

política externa não era, em outras palavras, para os gregos a política 

21

no verdadeiro sentido. Voltaremos a isso mais tarde21

importa aqui o fato de entendermos liberdade como algo político, e 

não como o objetivo mais elevado dos meios políticos, e que pressão e 

violência sempre foram, na verdade, meios para proteger o espaço 

político, ou para fundá-lo e amplia-lo — mas sem serem políticos em si 

como tal. São fenômenos marginais que pertencem ao fenômeno da 

coisa política e, por causa disso, não são elas.

A partir desse espaço da política, que como tal realizava e 

garantia tanto a realidade por muitos discutida e testemunhada como 

a liberdade de todos, só se pode indagar por um sentido situado no 

outro lado da esfera política se, como os filósofos da polis, conferir-se 

preferência ao trato com poucos e não ao trato com muitos e chegar-
se à convicção de que o livre-conversar-sobre-alguma-coisa-com-
outros não produz a realidade, mas sim o engano; não a verdade, mas 

a mentira.

Parece que Parmênides foi o primeiro a ter essa opinião, sendo 

decisivo o fato de ele não separar os muitos maus dos poucos e 

melhores — como Heráclito fazia e como, no fundo, correspondia ao 

espírito agonal da vida política grega, no qual cada um devia esforçar-
se sempre para ser o melhor de todos. Parmênides distinguia muito 

mais um caminho da verdade que só está aberto para o ―indivíduo qua 

indivíduo‖, dos caminhos do engano nos quais se movem todos 

aqueles, qualquer que seja a forma, que estão no caminho uns com os 

outros. Platão seguiu-o até certo grau. Mas esse acompanhamento de 

Platão só tem importância política porque ele não insiste no indivíduo, 

e concretizando na fundação da academia uma concepção básica dos 

poucos que, por seu lado, filosofavam de novo entre si num discurso 

Platão, o pai da filosofia política do Ocidente, tentou de várias 

maneiras contrapor-se à polis e aquilo que ela definia por liberdade. 

Tentou-o por meio de uma teoria política na qual os critérios da coisa 

política não são criados a partir da própria política, mas sim da 

filosofia, por meio do aperfeiçoamento de uma constituição que 

entrava em pormenores, cujas leis correspondem às idéias acessíveis 

apenas aos filósofos, e por fim por meio inclusive de uma influência 

sobre um soberano, do qual esperava que fosse transformar tal 

legislação em realidade — tentativa que quase lhe custou a vida e a 

liberdade. Entre tais tentativas está também a fundação da academia, 

que se efetuou tanto contra a polis — enquanto uma delimitação ao 

âmbito político original — como também, por outro lado, no sentido 

justamente desse espaço político específico grego-ateniense — ou 

seja, contanto que o conversar-um-com-o-outro se tornasse seu 

. Para nós, só 

22

verdadeiro conteúdo. Daí, junto com o âmbito da liberdade da coisa 

política, surgiu um novo espaço da liberdade muitíssimo real, com 

repercussão até hoje na forma de liberdade das universidades e de 

liberdade de ensino acadêmico. Mas essa liberdade, se bem que 

formada à imagem de uma liberdade originalmente experimentada 

como política e entendida por Platão como um possível núcleo ou 

ponto de partida, a partir do qual devia ser determinado o estar junto 

de muitos no futuro, trouxe, de fato, ao mundo um novo conceito de 

liberdade. Ao contrário de uma liberdade puramente filosófica e válida 

apenas para os indivíduos, tão distante de tudo que é político, que só 

o corpo do filósofo habita a polis, essa liberdade de poucos tem 

completa natureza política. O espaço de liberdade da academia devia 

ser um substituto válido para a praça do mercado, a ágora, o espaço 

de liberdade central da polis. Para poder existir como tal, a minoria 

precisava exigir, para sua atividade, seu conversar entre si, ser 

dispensada das atividades da polis e da ágora, da mesma maneira que 

os cidadãos de Atenas eram dispensados de todas as atividades que 

serviam ao mero ganha-pão. Eles precisavam ser libertados da política 

no sentido dos gregos, para serem livres para o espaço de liberdade 

acadêmica, da mesma maneira como os cidadãos precisavam ser 

libertados das necessidades da vida para a política. E precisavam sair 

do espaço da própria coisa política, a fim de poder entrar no espaço da 

 ̳coisa acadêmica‘, da mesma maneira como os cidadãos precisavam 

sair da esfera privada de sua casa para se deslocarem para a praça do 

mercado. Assim como a libertação do trabalho e das preocupações 

com a vida eram pressupostos necessários para a liberdade da coisa 

política, a libertação da política tornou-se pressuposto necessário para 

a liberdade da coisa acadêmica.

Nesse contexto, ouvimos pela primeira vez que a política é algo 

necessário, que a coisa política em sua totalidade é apenas um meio 

para um objetivo mais elevado, situado fora de si mesmo, e que em 

conseqüência precisa ser justificado no sentido de tal estabelecimento 

de objetivo. Torna-se então surpreendente que o paralelismo que 

recém-estabelecemos, em conseqüência do qual a liberdade 

acadêmica simplesmente parece substituir a política e que polis e 

academia se comportassem entre si como casa e polis, não é mais 

válido aqui. Pois, a casa (e o provimento da vida que ocorria em sua 

esfera) jamais foi justificada como um meio para um objetivo, como 

se, falando aristotelicamente, a vida fosse um simples meio para a 

 ̳boa vida‘ só possível na polis. Isso não era possível nem necessário 

porque, dentro do mero âmbito da vida, a categoria objetivo-meio não 

pode chegar a ser empregada: é evidente que o objetivo da vida e de 

todas as atividades de trabalho relacionadas com ela é a manutenção 

23

da vida e nada mais, e o impulso para o manter-se-em-vida com 

trabalho não está situado do lado de fora da vida, mas sim contido no 

processo da vida que nos obriga a trabalhar, assim como nos obriga a 

comer. Se se quiser entender essa relação entre çasa e polis no 

âmbito do objetivo-meio, então a vida garantida na casa não é o meio 

para um objetivo mais elevado da liberdade política, senão que o 

domínio das necessidades vitais e a dominação realizada sobre o 

trabalho escravo são o meio da libertação para a coisa política.

Tal libertação através do domínio, a libertação de poucos para a 

liberdade do filosofar através da dominação sobre muitos, foi proposta, 

de fato, por Platão na forma do rei-filósofo, mas essa proposta não foi 

admitida por nenhum filósofo depois dele e permaneceu sem nenhum 

efeito político. Em contrapartida, a fundação da academia, justamente 

porque não objetivava sobretudo a educação para política, como as 

escolas dos sofistas e oradores, teve uma importância extraordinária 

para aquilo que ainda entendemos por política. O próprio Platão ainda 

podia acreditar que um dia a academia fosse conquistar e dominar a 

polis. Para seus sucessores, para os filósofos que vieram a seguir, só 

continuou determinante o fato de a academia garantir 

institucionalmente um espaço de liberdade para a minoria, e essa 

liberdade ser entendida desde o início em completa contradição com a 

liberdade política da praça do mercado; ao mundo das opiniões 

mentirosas e do falar enganador devia ser oposto um mundo contrário 

da verdade e do falar adequado à verdade; à arte da retórica, a 

ciência da dialética. O que se impôs e até hoje determina nossa 

concepção de liberdade acadêmica não é a esperança de Platão de a 

partir da academia determinar a polis, a partir da filosofia determinar 

a política, mas sim o afastamento da polis, a apolitia,

contra a política.

O decisivo nesse contexto não é tanto o conflito entre a polis e 

os filósofos — nos quais mais tarde teremos de entrar em detalhes23 —

mas sim não poder persistir a simples indiferença de um âmbito em 

relação ao outro, na qual o conflito pareceu solucionado por um 

momento, porquanto impossível o espaço da minoria e sua liberdade 

— se bem que era também um âmbito público e não-privado —

desempenhar as duas funções, assim como a política incluía todos os 

que estavam aptos para a liberdade. É evidente que a minoria, sempre 

que se separou da maioria — seja na forma de uma indiferença 

acadêmica, seja na forma de um domínio oligárquico —, caiu numa 

dependência da maioria, em todas as questões da vida em comum nas 

quais realmente se tinha de negociar. Assim, essa dependência no 

sentido de uma oligarquia platônica pode ser entendida como 

obrigação da maioria em cumprir as ordens da minoria, quer dizer, 

22 a indiferença 

24

assumir o verdadeiro agir; nesse caso, a dependência da minoria foi 

superada pelo domínio, assim como a dependência dos livres em 

relação às necessidades da vida pôde ser superada por meio de seu 

domínio sobre uma casa de escravos, e a liberdade basear-se no 

poder. Ou então, a liberdade da minoria é de natureza meramente 

acadêmica e assim torna-se evidente ser dependente da boa vontade 

do corpo político que a garante. Mas em ambos os casos a política não 

tem mais a ver com a liberdade, não sendo, portanto, política no 

sentido grego; refere-se muito mais a tudo que garante a própria 

existência dessa liberdade, quer dizer, à administração e ao 

provimento da vida na paz e à defesa na guerra. Assim, o âmbito de 

liberdade da minoria não apenas tem o trabalho de se impor contra o 

âmbito da coisa política determinada pela maioria; além disso, sua 

mera existência depende da maioria; a existência simultânea da polis 

é uma necessidade vital para a existência da academia, seja a 

existência da platônica ou da universidade posterior. Com isso, é 

evidente que a coisa política em sua plenitude é empurrada um degrau 

para baixo, que faz parte da política [da polis] da conservação da vida; 

torna-se uma necessidade por um lado em contradição com liberdade, 

mas por outro forma seu pressuposto. Ao mesmo tempo, aparecem, 

de maneira inegável, no ponto central de todo, esse âmbito, aqueles 

aspectos da coisa política que originalmente, ou seja, no auto-
entendimento da polis, representavam fenômenos marginais. Para a 

polis, o sustento da vida e a defesa não eram o ponto central da vida 

política, e só eram políticos no verdadeiro sentido desde que as 

conclusões sobre eles não fossem decretadas de cima para baixo, mas 

sim se concebidas em comum no conversar de um com o outro e no 

convencer mútuo. Mas justamente isso tornou-se indiferente na 

justificação da política resultante do ponto de vista da liberdade da 

minoria. Só era decisivo o fato de todas as questões da existência, das 

quais a minoria não fosse o senhor, serem deixadas por conta do 

âmbito da coisa política. É verdade que com isso ainda se nota uma 

relação entre política e liberdade, mas apenas uma relação e não uma 

identidade. A liberdade enquanto objetivo final da política estabelece 

as fronteiras políticas; mas, o critério do agir dentro do próprio âmbito 

político não é mais a liberdade, mas sim a competência e a capacidade 

de assegurar a vida.

Essa degradação da política a partir da filosofia, tal como 

conhecemos desde Platão e Aristóteles, depende por completo da 

distinção entre maioria e minoria. Tem um efeito extraordinário, 

demonstrável até nossos dias, sobre todas as respostas teóricas para a 

pergunta sobre o sentido da política. Mas em termos políticos não 

realizou mais que a apolitia das escolas filosóficas da Antigüidade e a 

25

liberdade de ensino acadêmico das universidades. Em outras palavras, 

sua eficiência política sempre estendeu-se apenas à minoria para a 

qual a autêntica experiência filosófica era decisiva em sua estupenda 

eficácia — uma experiência que, de acordo com seu próprio sentido, 

levava de fato para fora do âmbito político da vida em comum e da 

conversa em comum.

Contudo, a razão pela qual não prevaleceu esse efeito teórico —

pelo qual faz-se valer, até hoje, no auto-entendimento da política e 

dos políticos, a concepção segundo a qual a coisa política é justificada 

e precisa ser justificada através de objetivos mais elevados, situados 

fora da coisa política (ainda que esses objetivos sejam, nesse meio 

tempo, como é natural, de natureza muitíssimo mais mesquinho do 

que eram originalmente) reside na negação e na reinterpretação da 

política, semelhantes apenas no exterior, mas na verdade moldadas de 

maneira bem diferente e muito mais radical, realizadas pelo 

cristianismo. Ao mesmo tempo, pode parecer à primeira vista que o 

cristianismo primitivo reivindicava para todos a mesma liberdade de 

certo modo acadêmica da política, que as escolas filosóficas da 

Antigüidade solicitavam para si. Tal impressão é fortalecida se 

considerarmos que aqui também a negação da coisa política andava de 

mãos dadas com o restabelecimento de um espaço existente ao lado 

do político, no qual os fiéis se reuniam primeiro numa comunidade e 

depois numa Igreja. Porém, esse paralelismo só se impôs de cheio 

com o advento do Estado secularizado no qual, aliás, a liberdade 

acadêmica e a religiosa têm estreita ligação, desde que lhes seja 

garantida pública e juridicamente a liberdade da política pelo corpo 

político. Uma vez entender-se por política tudo aquilo necessário para 

o convívio dos homens, a fim de lhes possibilitar, enquanto indivíduos 

ou em comunidade, uma liberdade situada além da política e da 

necessidade justifica-se de fato que se meça o grau de liberdade de 

cada corpo político pela liberdade acadêmica e religiosa por ele 

tolerada, ou seja, pela extensão, por assim dizer, do espaço de 

liberdade não-política que contém e mantém.

Justamente esse efeito político já direto da liberdade da política, 

da qual a liberdade acadêmica se aproveitou de maneira 

extraordinária, remonta a outras experiências mais radicais — no que 

diz respeito à coisa política — do que as dos filósofos. No caso dos 

cristãos não se tratava de se produzir um espaço da minoria junto ao 

espaço da maioria, tampouco de se fundar um contra-espaço para 

todos contra o espaço oficial, mas sim que um espaço público, não 

importava se para a minoria ou para a maioria, era insuportável por 

causa de sua publicidade. Quando Tertuliano diz que ―para nós, os 

cristãos, nada é mais estranho que os assuntos públicos‖24

, a essência 

26

encontra-se no caráter público. Costuma-se entender, sem dúvida com 

razão, a negação do cristianismo antigo de participar dos assuntos 

públicos a partir da perspectiva romana de uma divindade que 

rivalizava com os deuses de Roma, ou a partir da visão do cristianismo 

primitivo de uma expectativa escatológica, segundo a qual estaria 

dispensada toda a preocupação com o mundo. Com isso, não se notam 

as verdadeiras tendências antipolíticas da mensagem cristã e a 

experiência que lhe serve de base, com aquilo que é essencial para o 

estar junto dos homens. Não há dúvida de que no sermão de Jesus o 

ideal da bondade desempenha o mesmo papel que o ideal da 

sabedoria nas doutrinas de Sócrates: Jesus recusa-se a ser chamado 

de bom pelos discípulos, no mesmo sentido em que Sócrates recusa 

ser apresentado como sábio pelos alunos. Porém, a bondade precisa 

ser escondida, não deve manifestar-se como aquilo que é. Uma

comunidade de homens, cuja opinião seja que com toda seriedade 

todos os assuntos humanos devem ser regulamentados no sentido da 

bondade; que, por conseguinte, não tem medo de pelo menos tentar 

amar seus inimigos e de pagar o mal com o bem; que em outras 

palavras acha decisivo o ideal da santidade — não apenas para a 

salvação da própria alma no afastamento dos homens, mas para a 

própria regulamentação dos assuntos humanos —, não pode fazer 

outra coisa que se manter afastada do público e de sua luz. Ela precisa 

agir em segredo porque o ser-visto e ser-ouvido geram forçosamente 

aquele brilho e luz, nos quais toda a santidade — que pode 

apresentar-se como quiser — torna-se, de imediato, hipocrisia.

Assim, no caso do afastamento dos primeiros cristãos da política 

não se tratava, como no caso do afastamento dos filósofos, de um 

abandono do âmbito dos assuntos humanos. Tal afastamento, comum 

nas formas extremas de vida eremita nos primeiros séculos da era 

cristã, estaria em retumbante contradição com o sermão de Jesus e foi 

sentida bem cedo como uma heresia pela Igreja. Tratava-se muito 

mais de uma proposição da mensagem cristã para um caminho de 

vida, no qual os assuntos humanos deviam ser deslocados do âmbito 

público para um âmbito intermédio entre homem e homem. O fato de 

ter-se identificado e talvez confundido esse âmbito intermédio com a 

esfera privada, porquanto em evidente oposição ao âmbito público-
político, encontra-se na natureza da situação histórica. A esfera 

privada foi entendida através de toda a Antigüidade grego-romana 

como única alternativa para o espaço público, sendo que, para a 

interpretação de ambos os espaços, foi decisiva a oposição entre 

aquilo que se queria mostrar para todo o mundo e a maneira como se 

queria aparecer diante de todo o mundo e aquilo que só podia existir 

em segredo e, por conseguinte, precisava continuar a salvo. Em 

27

termos políticos foi decisivo que o cristianismo procurasse o 

recolhimento e, nesse recolhimento, exigisse co-assumir aquilo que 

sempre foi coisa do público25

Nesse contexto, não é necessário entrarem considerações de 

como se conseguiu, dentro do decorrer histórico, transformar o caráter 

consciente e radicalmente antipolítico do cristianismo, de maneira a 

tornar possível uma espécie de política cristã; isso foi — abstraindo-se 

a necessidade histórica propiciada pela decadência do Império Romano 

— obra de um único homem, Agostinho, e possibilitada pela 

extraordinária tradição ainda bem viva nele do pensamento romano. A 

reinterpretação da coisa política foi de importância decisiva para toda 

a tradição do Ocidente e, na verdade, não apenas para a tradição das 

teorias e do imaginário, mas sim para os marcos nos quais acontecia 

então a verdadeira história política. Foi então que o corpo político 

também aceitou a concepção de que a política é um meio para um 

objetivo mais elevado e que se trata da liberdade dentro da política 

apenas porque a coisa política tem de libertar determinadas áreas. Só 

que a liberdade da política não é mais uma questão da minoria, mas 

sim, ao contrário, tornou-se uma questão da maioria que não devia 

nem precisava preocupar-se com os negócios do governo, ao passo 

que foi imposto à minoria o fardo de se preocupar com a ordem 

política necessária aos assuntos humanos. No entanto, esse fardo não 

resultou, como em Platão e nos filósofos, da situação humana básica 

da pluralidade, que liga a minoria à maioria, o um a todos. Essa 

pluralidade é, ao contrário, afirmada, e o motivo que determina a 

minoria assumir sobre os próprios ombros o fardo do governar não é o 

medo de ser dominado por piores. Agostinho exige expressamente que 

a vida dos santos também se passe numa ―sociedade‖ e supõe com o 

cunho de uma Civitas Dei, um Estado de Deus, que a vida dos 

homens também é determinada politicamente em condições não-
terrenas — deixando em aberto se a coisa política também é um fardo 

no Além. Em todo caso, o motivo para assumir nos próprios ombros o 

peso da coisa política terrena é o amor ao próximo e não o medo dele.

Essa transformação do cristianismo realiza-se no pensamento e 

ação de Agostinho,26 que no final restaurou a Igreja, que secularizou o 

medo cristão em segredo ao ponto de os fiéis constituírem no mundo 

um espaço público totalmente novo e determinado pela religião — o 

qual, embora público, não era político. O caráter público desse espaço 

dos fiéis — o único no qual, através de toda a Idade Média, as 

necessidades políticas específicas do homem puderam ser levadas em 

conta — sempre foi ambíguo; era antes de mais nada um local de 

reunião e isso significa não apenas um prédio no qual homens se 

reuniam, mas um espaço que foi construído expressamente como 

.

28

reunidor de homens. Como tal, porém, não devia tornar-se um espaço 

de aparição, devendo ser preservado o conteúdo original da 

mensagem cristã. Ficou provado ser quase impossível impedir isso, 

visto que está na natureza do caráter público, constituído pela reunião 

de muitos, estabelecer-se como espaço de aparição. A política cristã 

sempre esteve diante da dupla tarefa de, por um lado, assegurar-se 

através da influência sobre a política secular, de que o local de reunião 

não político dos fiéis esteja protegido de fora, e, por outro lado, 

impedir que um local de reunião se torne um espaço de aparição, e 

com isso que a Igreja se torne um poder secular-mundano, entre 

outros. Daí verificou-se que a vinculação com o mundo correspondente 

a tudo espacial e o faz aparecer e parecer, é muito mais difícil de se 

combater do que a reivindicação de poder do secular, que se 

apresenta de fora para dentro. Quando a Reforma conseguiu afastar 

da Igreja tudo aquilo que tem a ver com aparência e manifestação, 

transformando-a de novo em local de reunião para aqueles que, no 

sentido dos Evangelhos, viviam no recolhimento, desapareceu também 

o caráter público desses espaços da Igreja. Ainda que ao movimento 

da Reforma não se tenha seguido a secularização de toda a vida 

pública, da qual ela é vista, com freqüência, como precursora, e ainda 

que, no rastro dessa secularização, a religião não se tenha tornado 

coisa privada, a Igreja protestante dificilmente poderia ter assumido a 

tarefa de oferecer aos homens um substituto para a cidadania da 

Antigüidade —tarefa que, sem dúvida, a Igreja católica realizou 

durante longos séculos após o declínio do Império Romano.

Não importa como sejam essas possibilidades e alternativas 

hipotéticas, o decisivo é que desde o fim da Antigüidade e com o 

nascimento de um espaço eclesiástico-público, a política secular 

continuou vinculada às necessidades da vida resultantes do convívio 

dos homens e com a defesa de uma esfera mais elevada, que até o fim 

da Idade Média estava espacial e palpavelmente na existência das 

igrejas. A Igreja precisa da política e, na verdade, tanto da política 

mundana dos poderes seculares como da própria política religiosa 

ligada ao âmbito eclesiástico, para poder manter-se e afirmar-se na 

terra e neste mundo do lado de cá — enquanto Igreja visível, ou seja, 

ao contrário da invisível cuja existência apenas acreditada continuou 

sem ser molestada, em absoluto, pela política. A política precisava da 

Igreja — não apenas da religião, mas sim da existência espacial 

palpável das instituições religiosas —, a fim de provar sua razão de ser 

mais elevada, por causa de sua legitimação. O que mudou com o 

despontar dos tempos modernos não foi uma modificação de função 

da coisa política; não é como se, de repente, à política fosse 

adjudicada uma nova dignidade própria só dela. O que mudou foram, 

29

pelo contrário, os âmbitos pelos quais a política parecia ser necessária. 

O âmbito do religioso recaiu no espaço do privado, ao passo que o 

âmbito da vida e de suas necessidades — que tanto na Antigüidade 

como na Idade Média valera por excelência como âmbito privado —

recebeu nova dignidade e, na forma da sociedade, apareceu em 

público.

Nisso, devemos diferenciar politicamente entre a democracia 

igualitária do século XIX para a qual a co-participação de todos no 

governo, seja em que forma for, é sempre um sinal imprescindível da 

liberdade do povo, e o despotismo esclarecido do começo dos tempos 

modernos para o qual valia que ―liberty and freedom consists in 

having the government of those laws by wich their life and 

their goods may be most their own: ‘tis not for having share 

in government, that is nothing pertaining to’ em27‖. Em ambos 

os casos é obrigação do governo em cujo espaço de ação cai a coisa 

política a partir de então, proteger a livre produtividade da sociedade e 

a segurança do indivíduo em seu âmbito privado. Não importa como 

seja a relação entre cidadão e Estado: liberdade e política continuam 

separadas uma da outra da maneira mais categórica, e ser livre no 

sentido de uma atividade positiva a se desenvolver livremente está 

localizado num âmbito que trata de coisas que, de acordo com sua 

natureza, não podem ser, em absoluto, comuns a todos, ou seja, trata 

da vida e da propriedade, quer dizer, trata daquilo que é próprio da 

maioria. O fato de essa esfera do próprio, do idion, cujo permanecer 

nela era tido como limitação  ̳idiota‘ pela Antigüidade, ampliasse 

enormemente através do novo fenômeno de um espaço social e de 

forças produtivas sociais e não-individuais, não altera em nada o 

estado de coisas, segundo o qual as atividades necessárias à 

manutenção da vida e da propriedade, bem como para a melhoria da 

vida e o aumento da propriedade, estão subordinadas à necessidade e 

não à liberdade. O que os tempos modernos esperavam de seu Estado 

e o que esse Estado fez, de fato, em grande escala foi uma libertação 

dos homens para o desenvolvimento das forças produtivas sociais, 

para a produção comum de mercadorias necessárias para uma vida 

 ̳feliz‘.

Essa concepção de política dos tempos modernos para a qual o 

Estado é uma função da sociedade ou um mal necessário para a 

liberdade social, impôs-se, tanto em termos práticos como teóricos 

contra as concepções moldadas de maneira bem diferente e inspiradas 

pela Antigüidade, de uma soberania do povo ou da nação, que se 

manifestaram em todas as revoluções dos tempos modernos. Só para 

essas revoluções, da americana e francesa do século XVIII até a 

revolução húngara mais recente, coincidem de maneira direta o ter-

30

participação-no-governo e o ser-livre. Mas essas revoluções e as 

experiências diretas nelas verificadas sobre as possibilidades do agir 

político não puderam, pelo menos até hoje, transformar-se em 

nenhuma forma de Estado. Desde o advento do Estado nacional é 

opinião corrente ser obrigação do governo proteger a liberdade da 

sociedade para dentro e para fora, se preciso por meio da força. A 

participação dos cidadãos no governo, qualquer que seja a forma, só é 

tida como necessária para a liberdade porque o Estado, que 

necessariamente precisa dispor de meios de força, precisa ser 

controlado pelos governados no exercício dessa força. Acrescente-se a 

informação de que, com o estabelecimento de uma esfera por mais 

que limitada do agir político, surge um poder do qual a liberdade só 

pode ser protegida se seu exercício for fiscalizado o tempo todo.

O que hoje entendemos por governo constitucional, não importa 

se de natureza monárquica ou republicana, é, em essência, um 

governo controlado pelos governados, restringido em suas 

competências de poder e em sua aplicação de força. É indiscutível que 

a restrição e controle ocorrem em nome da liberdade, tanto da 

sociedade como do indivíduo; trata-se de estabelecer limites, os mais 

amplos possíveis e necessários, para o espaço estatal do governar, a 

fim de possibilitar a liberdade fora de seu espaço. Portanto, não se 

trata, em todo caso, de possibilitar a liberdade de agir e de atuar 

politicamente; ambos continuam sendo prerrogativa do governo e dos 

políticos profissionais que se oferecem ao povo como seus 

representantes no sistema de partidos, para representar seus 

interesses dentro do Estado e, se for o caso, contra o Estado. A 

relação entre política e liberdade, em outras palavras, também é 

entendida nos tempos modernos de modo a ser a política um meio e a 

liberdade seu objetivo mais elevado; portanto, a relação em si não 

mudou, embora o conteúdo e a extensão da liberdade se tenham 

modificado de forma bastante extraordinária. Assim, a pergunta sobre 

o sentido da política é respondida por categorias e conceitos que são 

extraordinariamente antigos e, por conseguinte também 

extraordinariamente veneráveis. Embora os tempos modernos se 

diferenciem, de forma tão decisiva, em seus aspectos políticos, de 

todos os tempos anteriores, assim como também nos aspectos 

espirituais e materiais. Só o fato da emancipação das mulheres e da 

classe operária, quer dizer de grupos de homens que nunca antes 

podiam mostrar-se na vida pública, dá um rosto radicalmente novo a 

todas as questões políticas.

Aquilo que concerne a essa determinação da política como um 

meio para o objetivo de uma liberdade situada fora de seu âmbito 

também vale para os tempos modernos, embora nós só possamos 

31

atestar isso numa medida bastante limitada. Ela é, entre as respostas 

modernas para a pergunta sobre o sentido da política, aquela que 

continua mais estreitamente ligada à tradição da filosofia política 

ocidental e, dentro do pensamento estatal-nacional, mostra-se da 

maneira mais clara no princípio do primado da política externa, 

abordado por Ranke, mas que serve de base a todos os Estados 

nacionais28. Muito mais característico do caráter igualitário das formas 

modernas de Estado e da emancipação de operários e mulheres 

ocorrida nos tempos modernos, na qual, falando em termos políticos, 

se manifesta seu aspecto mais revolucionário, é uma definição de 

Estado derivada do primado da política interna, segundo a qual ―o 

Estado enquanto portador do poder é uma instituição indispensável 

para a sociedade‖ (Theodor Eschenburg29). Entre essas duas 

concepções — entre a opinião de o Estado e a coisa política serem uma 

instituição indispensável para a liberdade, e a opinião que vê nele uma 

instituição indispensável para a vida — está uma contradição 

intransponível da qual, aliás, os defensores dessas teses quase não 

têm consciência. Trata-se de uma grande diferença se a liberdade ou a 

vida é cotada como o bem com valor mais alto —como parâmetro pelo 

qual se orienta e se julga todo o agir político. Se entendemos por 

política algo que, não importa qual a escala, surgiu em sua essência a 

partir da polis e continua ligado a ela, então forma-se, no acoplamento 

entre política e vida, uma contradição interna que revoga e arruína 

justamente a coisa política específica.

Essa contradição manifesta-se da maneira mais palpável porque 

sempre foi prerrogativa da política exigir, em certas circunstâncias, o 

sacrifício da vida dos homens que nela participam. Só que, é claro, 

essa exigência deve ser entendida no sentido de exigir-se do indivíduo 

que sacrifique sua vida para o processo de vida da sociedade; de fato, 

existe aqui uma relação que pelo menos impõe um limite para o risco 

de vida: ninguém pode ou deve arriscar sua vida se com isso colocar 

em perigo a vida da Humanidade. Ainda voltaremos a examinar essa 

relação, que como tal chegou à nossa consciência porque só agora 

dispomos da possibilidade de pôr um fim à vida da Humanidade e de 

toda a vida orgânica30; na verdade, quase não existe uma categoria 

política e quase não existe um conceito político tradicional que, medido 

nessa mais jovem possibilidade, não se tenha demonstrado 

ultrapassado na teoria e inaplicável na prática e, na verdade, 

justamente porque, em certo sentido, o que está em jogo hoje, pela 

primeira vez, também na política externa, é a vida, ou seja, a 

sobrevivência da Humanidade.

Mas essa relação da própria liberdade com a sobrevivência da 

Humanidade não risca do mapa a oposição entre liberdade e vida, na 

32

qual se assentou toda a coisa política e que continua decisiva para 

todas as virtudes especificamente políticas. Até se poderia dizer, com 

muito direito, que é esse próprio fato, de que hoje o que está em jogo 

na política é a existência nua e crua de todos, o sinal mais evidente da 

calamidade em que nosso mundo caiu — calamidade que, entre outras 

coisas, consiste em a política ameaçar ser riscada da face da Terra. 

Pois o risco a ser corrido por aquele que lida na esfera política — na 

qual deve levar tudo a conselho, antes de sua vida31

não à vida da sociedade ou da nação ou do povo, para o qual ele 

sacrificaria sua vida; diz respeito muito mais à liberdade, tanto a 

própria como a do grupo ao qual o indivíduo pode pertencer, e com ela 

a segurança da existência do mundo no qual esse grupo ou esse povo 

vive, e que ela construiu no trabalho de gerações para encontrar um 

alojamento seguro e calculado a longo prazo para agir e conversar —

quer dizer para as verdadeiras atividades políticas.32 Em circunstâncias 

normais, ou seja, nas circunstâncias que eram decisivas na Europa 

desde a Antiguidade romana, a guerra era de fato apenas a 

continuação da política por outros meios e isso significa que ela 

sempre podia ser evitada se um dos adversários decidisse aceitar as 

exigências do outro. Tal aceitação poderia custar a liberdade, mas não 

a vida.

Essas circunstâncias, como todos sabemos, hoje não existem 

mais; quando olhamos para trás, elas nos parecem uma espécie de 

paraíso perdido. Mas se o mundo em que vivemos agora também não 

deriva e nem se explica — de maneira causal ou no sentido de um 

processo automático — pelos tempos modernos, mesmo assim ele 

cresceu no solo desses tempos modernos. No que concerne à coisa 

política, isso significa que tanto a política interna para a qual o objetivo 

mais elevado era a própria vida como a política externa que se 

orientava pela liberdade como o bem mais elevado, viam na força e no 

agir violento seu verdadeiro conteúdo. Por fim, era decisivo que o 

Estado se organizasse, de fato, como  ̳portador da força‘ — não 

importando se o objetivo dos meios da força eram determinados pela 

vida ou pela liberdade. Em todo caso, a pergunta sobre o sentido da 

política diz respeito hoje à conveniência ou inconveniência desses 

meios públicos de força; ela surge do simples fato de a força que devia 

proteger a vida ou a liberdade tornar-se tão terrivelmente poderosa 

que ameaça não apenas a liberdade, mas sim a vida. Como é 

justamente o aumento dos meios estatais de força que põe em perigo 

o processo de vida de toda a Humanidade, a resposta — em si já 

bastante duvidosa — que os tempos modernos oferecem à pergunta 

sobre o sentido da política tornou-se hoje duplamente duvidosa.

, — diz respeito 

33

A culpa por ter sido possível esse monstruoso aumento dos 

meios de força e extermínio cabe não apenas às invenções técnicas, 

mas também ao fato de que o espaço público-político tornou-se um 

lugar de força, não apenas no auto-entendimento teórico dos tempos 

modernos, mas também na realidade brutal. Só por isso foi possível o 

progresso técnico transformar-se sobretudo num progresso das 

possibilidades de extermínio mútuo. Como em toda parte onde os 

homens agem em comum, surge o poder e como o agir em comum 

dos homens acontece essencialmente no espaço político, o poder 

potencial inerente a todos os assuntos humanos se fez valer num 

espaço dominado pela força. Com isso, surge a ilusão de que poder e 

força seriam a mesma coisa; e nas condições modernas, esse é 

realmente o caso em amplas áreas. Porém, poder e força não são a 

mesma coisa quanto à sua origem e sentido original; em certos 

sentidos, chegam a ser antagonismos. Mas onde a força, que é um 

fenômeno do indivíduo ou da minoria, liga-se ao poder, que só é 

possível entre muitos, surge um aumento monstruoso do potencial de 

força — por sua vez, provocado pelo poder de um espaço organizado, 

mas que depois, como todo potencial de força, aumenta e se 

desenvolve às custas do poder.

A pergunta sobre que papel cabe à força no trato interestatal dos 

povos, e sobre como dele se pode eliminar o uso dos meios de força, 

está hoje, desde a invenção das armas atômicas, no primeiro plano de 

toda a política. Mas o fenômeno do tornar-se-superior da força às 

custas de todos os outros fatores políticos é mais antigo; já se 

mostrou na Primeira Guerra Mundial e nas grandes batalhas materiais 

no teatro de guerra ocidental. O notável é que esse novo papel funesto 

de uma força que se desenvolve de maneira automática e aumenta 

sem cessar, de parte de todos os participantes, pegou os povos, os 

estadistas e a opinião pública de forma totalmente despreparada e de 

surpresa. De fato, o aumento da força no espaço público-estatal 

consumou-se pelas costas dos homens atuantes, por assim dizer —

num século que supostamente é tido como um dos mais pacíficos e 

menos violentos da História. Os tempos modernos que viam com mais 

firmeza do que nunca a política apenas como um meio para a 

conservação e fomento da vida da sociedade e, em conseqüência 

disso, desenvolveu um esforço para limitar as competências da coisa 

política ao mais necessário, puderam imaginar, não sem razão, que 

lidariam com o problema da força de melhor forma que todos os 

séculos anteriores. O que fizeram, de fato, foi eliminar, por completo, 

a violência e o domínio direto do homem sobre o homem da esfera na 

vida social que se alarga sem cessar. A emancipação da classe 

operaria e das mulheres, quer dizer, de duas categorias que em toda a 

34

história pré-moderna foram submetidas à força, indica, da maneira 

mais clara, o ponto culminante desse desenvolvimento.

Nisso queremos deixar em suspenso por enquanto se essa 

redução da violência na vida da sociedade pode ser equiparada, de 

fato, com um ganho de liberdade. Em todo caso, no sentido da 

tradição política, o não-ser-livre é duplamente determinado. Ele existe 

quando se é submetido à força de um outro, mas também existe, e até 

mesmo mais originalmente, quando se está sujeito à nua e crua 

necessidade da vida. A atividade inerente à obrigação com a qual a 

própria vida nos obriga a procurar o necessário é o trabalho. Em todas 

as sociedades pré-modernas, o homem podia libertar-se desse 

trabalho, forçando outros homens a trabalharem para ele, quer dizer, 

por meio da força e da dominação. Na sociedade moderna, o 

trabalhador não está sujeito a nenhuma força nem a uma dominação, 

ele é forçado pela necessidade imediata inerente à própria vida. 

Portanto, aqui a necessidade substituiu a força e é duvidoso qual 

coação é mais repugnante, a coação da força ou a coação da 

necessidade. Além disso, todo o desenvolvimento da sociedade só vai 

até ali, ou seja, até o momento em que a automação abolir realmente 

o trabalho, tornando todos os seus membros  ̳trabalhadores‘ na 

mesma medida — homens cuja atividade, não importa em que 

consista, serve sobretudo para obter o necessário para a vida. 

Também nesse sentido, o afastamento da força da vida da sociedade 

teve como conseqüência, em primeiro lugar, o fato de ser concedido 

um espaço muito maior do que antes à necessidade com a qual a vida 

coage a todos. Na verdade, a vida da sociedade é dominada não pela 

liberdade, mas sim pela necessidade; e não se trata de um acaso o 

fato de o conceito de necessidade ter-se tornado tão dominante em 

todas as modernas filosofias da história, nas quais o pensamento dos 

tempos modernos se orienta filosoficamente e procura chegar a um 

autoconhecimento.

O afastamento da força para fora do âmbito do domicílio e da 

esfera semipública da sociedade ocorreu de forma totalmente 

consciente; para poder existir sem força na vida cotidiana, o homem 

fortaleceu a força da mão pública, do Estado, da qual acreditava poder 

continuar senhor por tê-la definido expressamente como um mero 

meio para o objetivo da vida social, do livre desenvolvimento das 

forças produtivas. Não ocorreu aos tempos modernos que os próprios 

meios de força poderiam tornar-se  ̳produtivos‘, ou seja, aumentar 

tanto (e mais ainda até) quanto as outras forças produtivas da 

sociedade; isto porque para ela a verdadeira esfera do produtivo 

coincidia com a sociedade e não com o Estado. O Estado era tido como 

especificamente improdutivo e, em caso extremo, como um fenômeno 

35

parasitário. Justamente porque se limitou a força ao âmbito estatal 

que, de mais a mais, estava sujeito, nos governos constitucionais, ao 

controle da sociedade através do sistema de partidos, acreditou-se ter 

limitado ao mínimo a própria força, mínimo esse que como tal 

permaneceria constante.

Sabemos que ocorreu o contrário. A época mais pacífica e menos 

violenta, vista em termos históricos, acarretou o maior e mais terrível 

desenvolvimento dos meios de força. E isso só é um paradoxo 

aparente. O que não se calculou foi a combinação específica de força e 

poder que só poderia realizar-se na esfera estatal-pública, porque é 

nela que os homens agem em conjunto e geram poder. Não importa 

quão estreitas sejam as competências desse âmbito, nem com que 

exatidão se fazem suas fronteiras através de constituição e outros 

controles; o simples fato de que ele deve continuar sendo um âmbito 

público-político produz poder: e esse poder deve tornar-se uma 

calamidade se concentrado quase exclusivamente em torno da força, 

como é o caso dos tempos modernos, porque essa força desloca-se da 

esfera privada do indivíduo para a esfera pública. Por mais absoluta 

que possa ter sido a força do dono da casa sobre sua família no 

sentido mais amplo, nos tempos pré-modernos — e, com certeza, ela 

foi grande o bastante para designar o governo da casa de despótico no 

sentido pleno da palavra —, essa força estava sempre limitada ao 

indivíduo que a exercia; era uma força totalmente impotente que 

continuava estéril tanto econômica como politicamente. Por mais 

funesto que o exercício da força do dono da casa fosse para os 

oprimidos, os próprios meios de força não poderiam prosperar nessas 

circunstâncias; não poderiam tornar-se um perigo para todos porque 

não havia um monopólio da força.

Vimos que a concepção de que a coisa política é um império dos 

meios, cujo objetivo e parâmetro devem ser procurados fora deles é 

extraordinariamente antiga e também extraordinariamente venerável. 

Contudo, trata-se daquilo que no mais recente desdobramento se 

tornou discutível, dessas concepções que moveram aquilo que 

originalmente eram fenômenos fronteiriços e marginais da coisa 

política — a força que em certas circunstâncias é necessária para 

proteger, e o sustento da vida que deve ser assegurado antes que a 

liberdade política seja possível — para o centro de todo agir político, 

estabelecendo a força como meio cujo objetivo mais elevado devia ser 

a conservação e a instituição da vida. A crise reside em que o âmbito 

político ameaça aquilo por cuja causa ele parecia justificado. Nessa 

situação modifica-se a pergunta sobre o sentido da política. A pergunta 

hoje quase não é: qual é o sentido da política? É muito mais natural ao 

sentimento dos povos que por toda parte se sentem ameaçados pela 

36

política e nos quais os melhores se distanciam da política de maneira 

consciente que a pergunta seja: tem a política ainda algum sentido?

As opiniões sobre o que é a política de fato servem de base para 

as questões que esboçamos em resumo. Essas opiniões quase não 

mudaram no decorrer de muitos séculos. Mudou apenas aquilo que 

originalmente era conteúdo de juízos, que provinham diretamente de 

determinadas experiências legítimas — o juízo e condenação da coisa 

política a partir da experiência do filósofo ou do cristão, bem como a 

correção de tais juízos e a justificação limitada da coisa política —, e 

que há muito tempo já se tornou preconceito. Os preconceitos sempre 

desempenham um grande e legítimo papel no espaço público-político. 

Eles dizem respeito àquilo que todos nós compartilhamos sem querer 

uns com os outros e onde não julgamos mais porque quase não temos 

mais oportunidade de ter a experiência direta. Todos esses 

preconceitos são juízos passados, desde que sejam legítimos e não 

meros boatos. Nenhum homem pode viver sem eles porque uma vida 

sem nenhum preconceito exigiria um estado de alerta sobre-humano, 

uma prontidão que não se pode ter de modo constante para a todo 

momento se encontrar e se deixar atingir pela totalidade da realidade, 

como se cada dia fosse o primeiro ou o Dia do Juízo Final. Portanto, 

preconceitos e disparates não são a mesma coisa. Justamente porque 

os preconceitos sempre têm uma legitimidade inerente a eles é que se 

deve aventurar-se com eles apenas quando eles não preencherem 

mais sua função; significa quando não mais adequados para tirar uma 

parte da realidade do homem julgante. Mas é justamente aí, quando 

os preconceitos entram em evidente conflito com a realidade, que 

começam a se tornar perigosos, e os homens que não se sentem mais 

protegidos deles em seu pensamento, começam a fantasiá-los e 

transformá-los em fundamento daquela espécie pervertida de teorias, 

em geral chamadas de ideologias ou de mundividências. Contra tais 

formações de ideologia surgidas de preconceitos, de nada adianta a 

apresentação de uma visão de mundo oposta à respectiva ideologia 

corrente, mas sim apenas a tentativa de substituir os preconceitos por 

juízos. Nisso é inevitável que se reduza o preconceito ao juízo nele 

contido e esse juízo, por seu turno, à experiência nele contida e da 

qual ele nasceu.

Os preconceitos que, na crise de hoje, se opõem a uma 

compreensão teórica daquilo que está em jogo, de verdade, na 

política, dizem respeito a quase todas as categorias políticas nas quais 

estamos habituados a pensar — mas sobretudo à categoria meio-
objetivo que entende a coisa política como um fim situado fora de si 

mesmo, além da concepção de que o conteúdo da coisa política é a 

força e, por fim, a convicção de que o domínio é o conceito central da 

37

teoria política. Todos esses juízos e preconceitos nascem de uma 

desconfiança contra a política, em si não injustificada. Mas essa 

antiquíssima desconfiança transformou-se no preconceito atual contra 

a política. Por trás dela está, desde a invenção da bomba atômica, o 

medo muitíssimo justificado de que a Humanidade poderia apagar-se 

do mapa por meio da política e dos meios de força à sua disposição. É 

desse medo que nasce a esperança de a Humanidade ter juízo e, ao 

invés de se eliminar, elimine a política. Essa esperança não é menos 

justificada do que aquele medo. Pois a concepção segundo a qual a 

política existiu sempre e em toda parte onde existiram e existem 

homens, é ela própria um preconceito; o ideal socialista de uma 

condição final da Humanidade sem Estado — que, em Marx, significa 

sem política, não é de maneira alguma utópico: só é pavoroso33

Está na natureza de nosso objeto, no qual sempre temos a ver 

com a maioria e o mundo surgido entre ela, a opinião pública não ser 

omitida em seu tratamento. Porém, de acordo com essa opinião 

pública, a pergunta sobre o sentido da política acendeu hoje por 

completo na ameaça ao homem através da guerra e das armas 

atômicas. Desse modo, é essencial que comecemos nossa discussão 

com uma reflexão sobre a questão da guerra.

38

A GUERRA TOTAL

Quando a primeira bomba atômica caiu sobre Hiroshima, provocando 

um fim rápido e inesperado da Segunda Guerra Mundial, um horror 

percorreu o mundo. Naquela época ainda não se podia saber quão 

justificado era esse horror. Uma única bomba atômica arrasou urna 

cidade, fazendo em apenas poucos minutos o que o emprego 

sistemático de ataques aéreos precisaria de semanas ou mesmo 

meses. Que a condução da guerra, de novo como na Antigüidade, 

podia dizimar não apenas os povos com ela relacionados, mas também 

podia transformar num deserto o mundo por eles habitado, era do 

conhecimento dos especialistas desde o bombardeio de Coventry e do 

conhecimento de todo o mundo desde os ataques em massa, com 

bombas, às cidades alemãs. A Alemanha já era um campo de ruínas, a 

capital do país um monte de escombros, e a bomba atômica tal como 

a conhecemos da Segunda Guerra Mundial — se bem que já repre-
sentasse algo absolutamente novo na história da ciência — estava no 

cardápio da moderna condução da guerra e dai no âmbito dos 

assuntos humanos, ou melhor, inter-humanos, dos quais a política 

trata. Não mais como o ponto culminante, alcançável por um salto ou 

num curto-circuito, através dos quais por assim dizer, o acontecer 

avança com velocidade sempre alucinante.

Além disso, a destruição do mundo e o extermínio da vida 

humana por meio da força não são novos nem terríveis e aqueles que 

sempre achavam que uma condenação pura e simples da força 

acabava no final numa condenação da coisa política, só deixaram de 

ter razão há poucos anos, mais exatamente desde a invenção da 

bomba de hidrogênio. Na destruição do mundo, nada é destruído a não 

ser um produto da mão humana, e a força que é empregada para isso 

corresponde, da maneira mais exata, à violência que é inerente, de 

forma indissolúvel, a todos os processos humanos de produção. Os 

meios de força necessários para a destruição são criados, por assim 

dizer, à imagem e semelhança das ferramentas de produção, e o 

instrumentário técnico de cada época abrange ambas as coisas na 

mesma medida. O que os homens produzem também pode ser por 

eles destruído; o que destroem também pode ser por eles 

reconstruído. O poder destruir e o poder produzir estão em equilíbrio. 

O vigor que destrói o mundo e lhe causa violência tem o mesmo vigor 

das mãos que violentam a Natureza e destrói uma coisa natural —

talvez uma árvore para obter madeira e para produzir algo de madeira 

—, para moldar o mundo.

Porém, não está em vigência incondicional o fato de que o poder 

destruir e o poder produzir estão em equilíbrio. Isso só é válido para o 

39

produzido por homens, não para o âmbito menos palpável e nem por 

isso menos real das relações humanas, que surgiram através do agir 

no sentido mais amplo. Mais tarde retornaremos a isso. O decisivo 

para nossa situação de hoje é que, no verdadeiro mundo material, só 

pode haver equilíbrio entre destruir e reconstruir enquanto a técnica 

tenha a ver apenas com puros processos de produção e tal não é mais 

o caso desde a descoberta da energia atômica, embora vivamos hoje 

num mundo, em média, ainda determinado pela Revolução Industrial. 

Também nesse mundo não temos mais a ver apenas com coisas 

naturais, que aparecem de novo, transformadas de uma maneira ou 

de outra, no mundo moldado pelos homens, mas sim com processos 

naturais gerados pelos homens através da imitação e conduzidos 

diretamente para o mundo dos homens. Já é característico desses 

processos que se desenrolam de modo idêntico ao processo num 

motor a explosão, produzindo portanto, em termos históricos, 

catástrofes, cada uma dessas explosões ou catástrofes propulsionando 

o processo. Nós nos encontramos, em quase todas as áreas da vida, 

num processo assim, no qual as explosões e catástrofes significam não 

apenas o declínio, mas também um progresso contínuo incitado por 

elas —mas por enquanto não deve ser levado em consideração em 

nosso contexto o caráter discutível dessa espécie de progresso. Talvez 

a melhor maneira  ̳política‘ de imaginar isso seja o fato de a 

catastrófica derrota da Alemanha ter contribuído, de maneira 

essencial, para tornar a Alemanha o país mais moderno e progressista 

da Europa, ao passo que ficaram para trás os países que, como a 

América, não são tão exclusivamente determinados pela técnica, nos 

quais a velocidade do processo de produção e consumo torna 

supérfluas as catástrofes por enquanto, ou os países como a França 

que passaram por uma catástrofe palpavelmente destruidora. O 

equilíbrio entre produzir e aniquilar não é perturbado através dessa 

técnica moderna e do processo com o qual ela comprometeu o mundo 

dos homens. Pelo contrário, parece que essas capacidades 

estreitamente análogas soldaram-se de forma indissolúvel nesse 

processo, de tal modo que produzir e destruir, mesmo quando 

executados nas maiores medidas, se manifestam no final como duas 

fases difíceis de serem separadas uma da outra, do mesmo processo 

do progresso, no qual — para escolher um exemplo do dia a dia — a 

demolição de uma casa é apenas o primeiro estágio da construção, e a 

construção dessa casa, planejada apenas para um determinado tempo 

de vida, já pode ser incluída num processo incessante de demolir e 

reconstruir.

Tem-se duvidado, com freqüência e com certa razão, que o 

homem, em meio a esse processo do progresso por ele mesmo 

40

desencadeado, que transcorre necessariamente de maneira 

catastrófica, ainda possa continuar sendo senhor e mestre do mundo 

por ele construído e dos assuntos humanos. Nisso, permanece sendo 

consternador o surgimento das ideologias totalitárias, nas quais o 

homem já se entende como expoente desse processo catastrófico por 

ele mesmo desencadeado, cuja função essencial consiste em estar a 

serviço do processo do progresso e propulsioná-lo cada vez mais 

rápido. Porém, a respeito dessa adequabilidade inquietante, não se 

deve esquecer que isso são apenas ideologias e que também as forças 

da Natureza que o homem forçou a permanecerem a seu serviço, 

ainda devem ser calculadas em cavalo-vapor, quer dizer, em unidades 

naturalmente conhecidas, devidamente deduzidas do meio-ambiente 

imediato do homem. Se o homem consegue dobrar ou centuplicar sua 

própria força por meio da utilização da Natureza, então se pode ver 

nisso uma violentação da Natureza ao se concordar com a Bíblia, 

segundo a qual o homem foi criado para cuidar da terra e para servi-
la, e não o contrário, ou seja, forçá-la a ficar às suas ordens. Mas não 

importa quem serve quem aqui, ou quem foi predeterminado por 

decreto divino para estar a serviço: de qualquer modo continua 

incontestável que a força do homem, tanto como força produtiva ou 

mão-de-obra, é um fenômeno da Natureza, sendo o poder inerente a 

essa força. Portanto, é natural que, por fim, enquanto o homem tiver a 

ver com as forças da Natureza, permanece num âmbito terrestre-
natural ao qual ele e sua própria força pertencem, pelo fato de ser um 

ser vivo orgânico. Isso não se modifica pelo fato de ele empregar a 

própria força junto com a força retirada da Natureza para produzir algo 

totalmente não-natural, ou seja, um mundo — algo que não se 

realizaria sem ele, de maneira apenas  ̳natural‘. Ou dito de outra 

maneira: enquanto o poder produzir e o poder destruir estiverem em 

equilíbrio, tudo ainda estará acontecendo de certa forma correta, e o 

que as ideologias totalitárias declararem sobre a escravização do 

homem nos processos por ele desencadeados é, afinal de contas, um 

fantasma ao qual se opõe o fato de os homens continuarem sendo 

senhores do mundo por eles construído e mestres do potencial de 

destruição por eles produzido.

Tudo isso só poderia ser modificado com a descoberta da energia 

atômica, ou seja, com a invenção de uma técnica propulsionada por 

processos de energia nuclear. Pois, aqui não são desencadeados 

processos naturais, mas sim processos que não acontecem na 

natureza terrestre, são conduzidos para a Terra para produzir o mundo 

ou destruir o mundo. Esses próprios processos provêm do Universo 

que cerca a Terra, e o homem que os coage com sua força, age aqui 

não mais como um ser vivo natural, mas como um ser que, apesar de 

41

só poder viver sob as condições terrestres e de sua natureza, pode, 

entretanto, ambientar-se também no Universo. Essas forças universais 

não podem ser medidas mais em cavalo-vapor ou alguma outra 

medida natural e como elas são de natureza não-terrestre, podem 

destruir a natureza da Terra assim como os processos naturais 

manipulados pelo homem podem destruir o mundo construído pelo 

homem. O horror que se apoderou da Humanidade quando se ouviu 

falar da primeira bomba atômica foi um horror em relação a essa força 

oriunda do Universo, quer dizer, no sentido mais verdadeiro da 

palavra, uma força sobrenatural; a extensão das casas e ruas 

destruídas assim como o número de vidas humanas exterminadas só 

tiveram importância pelo fato de a fonte de energia recém-descoberta 

causar, logo em seu nascimento, morte e destruição na maior escala, 

possuída de uma tremenda força simbólica capaz de ficar gravada na 

memória.

Esse horror mesclou-se e logo foi sobrepujado pela indignação 

não menos justificada e, no momento, muito mais atual porque a 

superioridade absoluta da nova arma foi experimentada em cidades 

habitadas, superioridade essa que poderia ter sido demonstrada tão 

bem quanto — e politicamente não com menos eficácia — num deserto 

ou numa ilha desabitada. Também nessa indignação ficou-se sabendo 

com antecipação de algo do qual só sabemos hoje, que na verdade é 

monstruoso, ou seja, o fato não mais negado pelo estado-maior das 

grandes potências, de que uma guerra, depois de posta em 

andamento, será conduzida necessariamente com as armas que 

estiverem à disposição das respectivas potências que a estão 

travando. Isso só é natural se o objetivo da guerra não for mais 

limitado e seu fim não for mais um acordo de paz entre os governos 

em litígio, senão que a vitória deve produzir o aniquilamento estatal ou 

até mesmo físico do adversário. Essa possibilidade só foi expressada 

de maneira vaga na Segunda Guerra Mundial, pois já estava embutida 

na exigência de uma capitulação incondicional, apresentada à 

Alemanha [e] ao Japão, mas só foi realizada em todo seu horror 

quando as bombas atômicas demonstraram, de repente, para o mundo 

inteiro que, no caso das ameaças de completo extermínio, não se 

tratava de conversa fiada vazia, senão que já estavam disponíveis, de 

fato, os meios necessários para isso. Com certeza, hoje ninguém mais 

duvida que uma terceira guerra mundial, no desenvolvimento 

conseqüente dessas possibilidades, dificilmente terminará de outra 

maneira que não com o extermínio dos derrotados. Todos nós já 

estamos tão presos no feitiço da guerra total que quase não 

conseguimos imaginar que, depois de uma guerra entre a Rússia e a 

América, a Constituição americana ou o regime atual russo possa 

42

sobreviver a uma derrota. Mas isso significa que, numa guerra futura, 

não estará em jogo o ganho ou a perda do poder, as fronteiras, 

mercados de venda e espaço vital, quer dizer, coisas que em si 

poderiam ser alcançadas sem a força, no caminho da negociação 

política. Com isso, a guerra deixou de ser a ultima ratio das 

negociações que ocorrem em conferências, nas quais os objetivos da 

guerra eram assentados no momento da suspensão das negociações, 

de modo que as ações militares que eclodiam depois nada mais eram, 

de fato, que a continuação da política por outros meios. Aqui trata-se 

muito mais de alguma coisa que jamais poderia ser, de maneira 

natural, objeto de negociações, trata-se da existência nua e crua de 

um país e de um povo. Somente nesse estágio — em que a guerra não 

pressupõe mais como viável a coexistência das partes inimigas e só 

quer liquidar, de maneira violenta, os conflitos surgidos entre elas — a 

guerra deixou realmente de ser um meio da política e começa, na 

condição de guerra de extermínio, a romper os limites impostos à 

coisa política e, com isso, a se auto-exterminar.

Essa condução da guerra total, como se diz hoje em dia, tem sua 

origem, como se sabe, nas formas de domínio totalitário, com as quais 

está forçosamente associada; a guerra de extermínio é a única guerra 

conveniente ao sistema totalitário. Foram países de governo totalitário 

que proclamaram a guerra total, mas com ela impingiram 

necessariamente a lei de seu agir ao mundo não-totalitário. Mas 

quando um princípio de tamanha envergadura vem ao mundo, é quase 

impossível limitá-lo a talvez um conflito entre países totalitários e não-
totalitários. Isso ficou patente quando a bomba atômica foi empregada 

contra o Japão e não contra a Alemanha de Hitler, para a qual ela foi 

originalmente produzida. O revoltante nesse caso foi, entre outras 

coisas, o fato de que se lidava, na verdade, com uma potência 

imperialista, mas não com uma potência totalitária.

O horror que se propaga a todas as considerações políticas-
morais e a imediata indignação reagente política e moral tinham em 

comum a compreensão do que a guerra total significava, de fato, e o 

reconhecimento de que a condução da guerra total era um fato 

consumado não apenas para os países de governo totalitário e os 

conflitos por eles causados, mas sim para o mundo todo. Aquilo que a 

princípio parecia impossível desde os romanos e, de fato, nos três ou 

quatro séculos que chamamos de tempos modernos, posto que não 

estava mais no coração do mundo civilizado o extermínio de povos 

inteiros e o arrasar de civilizações inteiras, foi empurrado, de novo, de 

um só golpe, para o âmbito do possível-possível-demais. Essa 

possibilidade, embora nascida como resposta para uma ameaça 

totalitária — uma vez que quase nenhum cientista teria pensado em 

43

produzir a bomba atômica se não precisasse recear que a Alemanha de 

Hitler pudesse fabricar e empregar a bomba —, tornou-se de imediato 

uma realidade que quase não tinha mais a ver com o motivo que 

causou seu surgimento.

Aqui, talvez pela primeira vez nos tempos modernos — embora 

de maneira nenhuma na história por nós recordada, ultrapassou-se 

uma restrição inerente ao agir violento, segundo a qual a destruição 

resultante dos meios de força deve ser sempre parcial, deve sempre 

concernir apenas a partes do mundo e a um número de vidas humanas 

arranjado, mas jamais ao país inteiro ou a um povo inteiro. Mas 

aconteceu com bastante freqüência na História o mundo de um povo 

inteiro ser arrasado, os muros da cidade demolidos, os homens 

assassinados e a população restante vendida como escrava, e só os 

séculos dos tempos modernos não quiseram mais acreditar que isso 

pudesse acontecer. Sempre se soube, de maneira mais ou menos 

expressa, que isso representa um dos poucos pecados mortais da 

coisa política. Os pecados mortais ou, falando de modo não patético, a 

transposição da fronteira inerente ao agir violento consiste em duas 

coisas distintas: por um lado, o matar diz respeito aqui não mais a 

maiores ou menores números de homens — que, aliás, morreriam de 

qualquer forma — mas sim a um povo e sua constituição política que 

não são imortais na possibilidade e, no caso da constituição, até na 

intenção. O que é morto, aqui, não é algo da mortal, mas sim algo 

possivelmente imortal. Além disso e na mais estreita relação com isso, 

a violência estende-se aqui não apenas ao produzido que, por seu 

lado, também surgiu através da força e que, por conseguinte, pode ser 

construído de novo por meio de um esforço poderoso, mas sim a uma 

realidade política-histórica alojada nesse mundo produzido, que, como 

não foi produzida, tampouco pode ser restaurada de novo. Quando um 

povo perde a liberdade estatal, perde sua realidade política, mesmo 

que consiga sobreviver fisicamente.

O que sucumbe aqui é um mundo de relações humanas, surgido 

por meio do produzir, mas sim do agir e do falar, que em si jamais 

chega a um fim e que — embora tecido com a coisa mais fugidia que 

existe, a palavra passageira e o fato terrivelmente tenaz que, em 

certas circunstâncias, como talvez no caso do povo judeu, pode 

sobreviver milênios à perda do palpável mundo produzido. Isso, 

porém, é uma exceção e, em geral, só pode existir dentro do mundo 

produzido, através do sistema de relações surgidas a partir do agir, no 

qual o passado continua vivendo na forma da História que fala e 

sempre persuade, em cujo mundo pedras se aninham até também 

falarem, testemunharem falando — mesmo que se tenha que 

desenterra-las do sei da terra. É verdade que todo esse âmbito 

44

verdadeiramente humano que forma a coisa política no sentido mais 

estreito pode sucumbir através da força, mas ele não surgiu da força e 

a determinação nele contida não é um fim por meio da força.

Esse mundo de relações não surgiu através da força ou do vigor 

individual dos indivíduos, mas sim através do estar junto de muitos 

indivíduos fazendo com que surgisse o poder e, na verdade, um poder 

diante do qual até mesmo a maior força do indivíduo se torna 

impotência. Esse poder pode ser enfraquecido por meio de todos os 

fatores possíveis, assim como pode ser renovado de novo por meio de 

todos os fatores possíveis; só a força pode liquidá-lo em definitivo, 

quando esta se torna total e não deixa, textualmente, pedra sobre 

pedra, homem ao lado de homem. Ambas as coisas estão na essência 

da dominação total que, em termos de política interna, não se 

contenta em restringir o indivíduo, porém aniquila todas as relações 

inter-humanas por meio do terror sistemático. A ele corresponde a 

guerra total que não se contenta com a destruição de pontos militares 

importantes isolados, senão que arregaça as mangas — e pode 

arregaçar as mangas em termos da técnica — para aniquilar todo o 

mundo surgido entre os homens.

Seria relativamente fácil demonstrar que as teorias políticas e os 

códices morais do Ocidente sempre tentaram excluir a verdadeira 

guerra de extermínio do arsenal dos meios políticos; supostamente 

seria mais fácil ainda mostrar que a eficácia dessas teorias e 

exigências não andou muito bem das pernas. Está estranhamente na 

natureza dessas coisas — que, no sentido mais amplo, diz respeito ao 

nível de civilização que o homem impõe a si mesmo — que para elas 

vale a palavra de Platão, segundo a qual é a arte poética com as 

imagens e modelos por ela cunhados que ―forma os descendentes 

adornados milhares de feitos dos pais da humanidade‖ (Fedro, 245).

Na Antiguidade, pelo menos no que dizia respeito à pura coisa política, 

o maior objeto desses adornos formadores foi a Guerra de Tróia, em 

cujos vitoriosos os gregos viam seus avós e em cujos derrotados os 

romanos viam os seus. Assim, eles se tornam, como Mommsen 

costumava dizer, ―o povo gêmeo‖ da Antigüidade, porque um mesmo e 

único empreendimento era tido para ambos como o começo de sua 

existência histórica. Essa guerra dos gregos contra Tróia — que 

terminou com um aniquilamento tão completo da cidade a ponto de, 

até tempos bem recentes, chegar-se a acreditar que ela nunca existiu 

— poderia valer, com certeza, ainda hoje como primeiro exemplo da 

guerra de extermínio.

Assim, para uma reflexão sobre o significado político da guerra 

de extermínio que nos ameaça de novo pode-se ser permitido recordar 

45

mais uma vez esses acontecimentos mais antigos e seus adornos —

sobretudo porque nos adornos dessa guerra tanto gregos como 

romanos determinaram, de uma maneira multiplamente ligada e 

multiplamente oposta para si, e com isso, em certa medida também 

para nós, o que política devia significar originalmente e que espaço ela 

devia ocupar na História. Nisso, é de importância decisiva o fato de a 

canção de Homero não calar a respeito do homem vencido, de 

testemunhar por Heitor não menos que por Aquiles e — embora a 

vitória grega e a derrota troiana tenham sido decididas e garantidas de 

antemão no conselho dos deuses — de essa vitória não fazer Aquiles 

maior e Heitor menor, a causa dos gregos mais justa e a defesa de 

Tróia não injusta. Homero também cantou a guerra de extermínio que 

ficava séculos atrás de tal maneira que, em certo sentido, ou seja no 

sentido da recordação poética e histórica, anulava de novo o 

extermínio. Essa grande imparcialidade de Homero — que não é 

nenhuma objetividade no sentido da moderna liberdade de valores, 

mas sim no sentido da liberdade mais completa de interesses e da 

mais completa independência do juízo da História, que em comparação 

com ela consiste no juízo do homem atuante e de seu conceito de 

grandeza — está no começo de todo o registro histórico, não apenas o 

ocidental; posto que algo como isso que entendemos por História não 

existia antes e em parte alguma, o que não torna o exemplo homérico 

menos eficiente, pelo menos indiretamente. É a mesma idéia que 

reencontramos na introdução de Heródoto, quando diz querer impedir 

que ―feitos grandiosos e maravilhosos, realizados em parte por 

helenos e em parte por bárbaros, caíssem no esquecimento‖ — ou 

seja, uma idéia que, como Burckhardt observou um dia com razão, 

―nenhum egípcio ou judeu poderia ter tido‖.

Sabe-se que o esforço grego para transformar a guerra de 

extermínio numa guerra política jamais prosperou além da salvação 

dos exterminados e vencidos, feita por Homero — posterior e 

poeticamente determinada e recordativa da História e por essa 

incapacidade sucumbiram, em última análise, as cidades-Estados da 

Grécia. No que dizia respeito à guerra, a polis grega trilhou um outro 

caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em 

torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens 

livres, e com isso centrou a verdadeira coisa política‘ — ou seja, aquilo 

que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos negavam a 

todos os bárbaros e a todos os homens não-livres — em torno do 

conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o conversar-
sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como símbolo de um peitho 

divino, uma força convincente e persuasiva que, sem violência e sem 

coação, reinava entre iguais e tudo decidia. Em contrapartida, a guerra 

46

e a força a ela ligada foram eliminadas por completo da verdadeira 

coisa política, que surgia e [era] válida entre os membros de uma 

polis; a polis se comportava, como um todo, com violência em relação 

a outros Estados ou cidades-Estados, mas, com isso, segundo sua 

própria opinião, comportava-se de maneira  ̳a política‘. Por 

conseguinte, nesse agir guerreiro, também era abolida 

necessariamente a igualdade de princípio dos cidadãos, entre os quais 

não devia haver nenhum reinante e nenhum vassalo. Justamente 

porque o agir guerreiro não pode dar-se sem ordem e obediência e ser 

impossível deixar-se as decisões por conta da persuasão, um âmbito 

não-político fazia parte do pensamento grego. Entretanto, a esse 

âmbito pertencia, no fundo, tudo aquilo que entendemos por política 

externa; aqui, a guerra não é a continuação da política com outros 

meios, mas sim, ao contrario, o negociar e o firmar tratado eram 

sempre entendidos como uma continuação da guerra por outros

meios, com os meios da astúcia e da fraude.

Mas, a eficácia do homérico sobre o desenvolvimento da polis 

grega não se esgotou nessa eliminação apenas negativa da força para 

fora do âmbito da coisa política, o que só teve como conseqüência as 

guerras, tal como antes, serem conduzidas segundo o princípio de que 

o mais forte faz o que pode, e o mais fraco suporta o que precisa 

suportar. O verdadeiro homérico na representação da Guerra de Tróia 

só teve seu pleno efeito no modo em que a polis inclui em sua forma 

de organização o conceito da luta como uma forma de convívio 

humano não apenas legítimo, mas também o mais elevado, em certo 

sentido, O que em geral se chama de espírito agonal dos gregos e que, 

sem dúvida, ajuda a explicar (se é que algo assim deve ser explicado) 

que nós encontremos, nos poucos séculos de seu apogeu, uma 

genialidade maior e mais significativa — concentrada em 

simplesmente todas as áreas do espírito — do que em qualquer outra 

parte, não é, de maneira alguma, aquele esforço para se mostrar

como o melhor sempre e em toda parte, do qual Homero já fala e que, 

de fato, possuía tamanha importância para os gregos: existe, 

inclusive, em seu idioma um verbo para isso, de modo que aristeuein 

(ser o melhor) podia ser entendido não apenas como um esforço, mas 

sim como uma atividade que preenchia a vida. Essa competição mútua 

tinha seu protótipo na luta de Heitor e Aquiles que, independente de 

vitória e derrota, dá oportunidade a cada um deles de se mostrar 

como é de verdade — para se pôr em evidência realmente e com isso 

tornar-se completo, de fato. É muito parecido com a guerra entre 

gregos e troianos, que dá a ambos a oportunidade de se manifestar 

por completo, e que corresponde a uma contenda dos deuses que não 

apenas dá o pleno significado à luta que está sendo travada na terra, 

47

mas também indica, da maneira mais clara, que nos dois lados há algo 

de divino, muito embora um desses lados esteja consagrado para a 

derrota. A guerra contra Tróia tem dois lados, e Homero a vê com os 

olhos do troiano não menos que com os olhos dos gregos. Essa 

maneira homérica de demonstrar que todas as coisas têm dois lados, 

que só se manifestam na luta, também serve de base para a palavra 

de Heráclito, de que a guerra ―é o pai de todas as coisas‖. A violência 

da guerra em todo seu terror origina-se aqui ainda diretamente na 

força e potência do homem, que só pode dar provas dessa força inerte 

nele se for enfrentado por alguma coisa ou alguém e então possa 

demonstrá-la.

O que em Homero manifesta-se ainda não-separado — a violenta 

força dos grandes feitos e a força irresistível das grandes palavras que 

os acompanham e que justamente por isso convencem a reunião de 

homens, que vêem e ouvem — encontramos mais tarde, já separadas 

com bastante clareza uma da outra, nas competições — as únicas 

ocasiões em que a Grécia inteira se reunia para admirar as forças 

desenvolvidas sem violência — e nos desafios de oratória e no 

incessante falar mútuo dentro da polis. Nisso, a bilateralidade das 

coisas que em Homero se deu imediatamente no duelo, recai 

exclusivamente no âmbito do falar, onde toda vitória torna-se tão 

ambígua quanto a vitória de Aquiles, e uma derrota pode tornar-se tão 

gloriosa quanto a de Heitor. Mas nos desafios de oratória não se fica 

nos dois lados dos oradores que se manifestam neles como pessoas, 

se bem que é inerente a cada discurso, de maneira imperiosa, não 

importa o quão  ̳objetivo‘ possa apresentar-se, ele também revelar-se 

para o orador, de uma forma difícil de se apreender, mas nem por isso 

menos penetrante e essencial. Aqui, a bilateralidade com a qual 

Homero pôde poetar a Guerra de Tróia como um todo, torna-se uma 

infinita variedade dos assuntos discutidos: desde que discutidos por 

tantos na presença de muitos outros, são atraídos para a luz da 

publicidade, onde são forçados, por assim dizer, a revelarem todos 

seus lados. Somente em tal universalidade uma única e mesma coisa 

pode revelar-se em toda sua realidade, sendo preciso ter presente que 

cada coisa possui tantos lados e pode revelar-se em tantas 

perspectivas quantos homens nela participam. Uma vez que o espaço 

público-político é para os gregos a coisa comum (koinon), na qual 

todos se reúnem, ele é o âmbito onde só então todas as coisas podem 

revelar-se em toda sua universalidade. Essa capacidade fundada em 

última análise na imparcialidade homérica, de ver a mesma e única 

coisa primeiro de lados opostos e depois de todos os lados, que não 

tem rival na Antigüidade e até nosso tempo ainda não foi superada em 

sua intensidade emotiva, ainda serve de base para os truques dos 

48

sofistas cuja importância para a libertação do pensamento humano das 

ligações dogmáticas é subestimada, quando, seguindo-se o exemplo 

de Platão, se a condena moralmente. Contudo, essa extraordinária 

capacidade do argumentar tem importância de segunda categoria para 

a constituição da coisa política, que se realizou pela primeira vez na 

polis. O decisivo não é dar-se voltas em argumentos, nem se que 

possa pôr afirmações de cabeça para baixo, mas sim que se adquiriu a 

capacidade de ver, de fato, as coisas de diferentes lados: isso 

significa, politicamente, que passou-se a saber abranger as muitas 

posições possíveis no mundo real, a partir das quais a mesma coisa 

pode ser contemplada e nas quais apresenta os aspectos mais 

distintos, apesar de seu caráter particular. Isso é muitíssimo mais que 

a eliminação do próprio interesse, na qual só se ganhou coisas 

negativas e, além disso, ainda existe o perigo de, com a interrupção 

do interesse, se perder a ligação com o mundo e a simpatia por seus 

objetos e as coisas que se passam nele. A capacidade de se ver a 

mesma coisa dos pontos de vista mais distintos permanece no mundo 

dos homens, apenas troca a sua própria posição natural pela posição 

dos outros, com os quais se está junto no mesmo mundo; consegue-
se assim uma verdadeira liberdade de movimento no mundo do 

espiritual, que corre em paralela exata com a liberdade de movimento 

do físico. O persuadir-um-ao-outro e o convencer-um-ao-outro que era 

o verdadeiro modo do trato político dos cidadãos livres da polis, 

pressupunha uma espécie de liberdade que não era ligada 

imutavelmente, em termos espirituais ou físicos, ao próprio ponto de 

vista ou posição.

Seu ideal característico e com isso o parâmetro para a especifica 

aptidão política situa-se na phronesis, aquela compreensão do homem 

político (do politikos, não do estadista que não existia em absoluto 

dentro desse mundo) que tem tão pouco a ver com sabedoria que 

Aristóteles até pôde definir em acentuada oposição à sabedoria dos 

filósofos. Compreensão num estado de coisas político não significa 

outra coisa que ganhar e ter presente a maior visão geral das 

possíveis posições e pontos de vista, dos quais o estado de coisas 

pode ser visto e a partir dos quais pode ser julgado. Quase não se 

falou dessa phronesis através dos séculos, que em Aristóteles é a 

verdadeira virtude cardinal da coisa política. Só a encontramos de 

novo em Kant, na explanação da razão saudável do homem como um 

bem do juízo. Ele a chama de ―maneira de pensar ampliada‖ e a define 

expressamente como a capacidade ―[de] pensar no lugar de todos os 

outros‖, mas infelizmente continua sendo característico que essa 

capacidade política par excellence quase não desempenha um papel na 

filosofia política própria de Kant, do desenvolvimento do imperativo 

49

categórico. Pois a validade do imperativo categórico é deduzida do 

―pensamento-em-uníssono-com-si-mesmo‖, e a razão legislativa não 

pressupõe os outros, mas sim apenas um eu não contraditório. Na 

verdade, o verdadeiro bem político na filosofia de Kant não é a razão 

legisladora, mas sim o discernimento do qual é próprio conseguir não 

se importar com «as condições privadas subjetivas do juízo‖. No senti 

do da polis, o homem político, em sua excelência peculiar, era ao 

mesmo tempo o mais livre, porque tinha a maior liberdade de 

movimento em virtude de sua compreensão, sua capacidade de tomar 

em consideração todas as posições.

Mas é importante ter presente que essa liberdade da coisa 

política dependia, por completo, da presença e da igualdade de direitos 

de muitos. Uma coisa só pode mostrar-se sob muitos aspectos quando 

muitos estão presentes, aos quais ela aparece em respectivas 

projeções diferentes. Quando esses outros com direitos iguais e suas 

opiniões particulares são abolidos, como talvez numa tirania na qual 

tudo e todos são sacrificados para o ponto de vista do tirano, ninguém 

é livre e ninguém está apto para a compreensão, nem mesmo o tirano. 

Além disso, essa liberdade da coisa política, que em seu 

aperfeiçoamento mais elevado coincide com a compreensão, não tem 

o mínimo a ver com nosso livre-arbítrio, ou com a libertas romana, ou 

com o cristão liberum arbitrium; de fato, tem tão pouco a ver que falta 

a palavra para tal no idioma grego. O indivíduo em seu isolamento 

jamais é livre; só pode sê-lo quando adentra o solo da polis e age 

nele. Antes de a liberdade se tornar uma espécie de distinção de um 

homem ou de um tipo de homem —talvez do grego contra os bárbaros 

—, ela é um atributo de uma determinada forma de organização de 

homens entre si, e nada mais. Seu local de origem jamais está situado 

num interior do homem, não importa com que forma, em sua vontade 

ou em seu pensamento ou em seu sentir, mas sim no interespaço que 

só surge quando muitos se reúnem e que só pode existir enquanto 

ficarem juntos. Existia um espaço da liberdade e era livre aquele nele 

admitido, e não-livre aquele dele excluído. O direito de admissão e, 

portanto, de liberdade era um bem para o indivíduo que sobre o 

destino de sua vida não decidia de maneira diferente da riqueza e da 

saúde.

Assim, a liberdade era para o pensamento grego enraizada, 

ligada a uma posição e limitada espacialmente, e as fronteiras do 

espaço da liberdade coincidiam com os muros da cidade, da polis ou, 

dito de forma mais exata, da ágora nela encerrada. Fora dessas 

fronteiras situava-se, por um lado, o estrangeiro no qual não se 

poderia ser livre, posto que nele não se era mais um cidadão ou, 

melhor, um homem político; e por outro, a casa particular na qual 

50

tampouco se poderia ser livre porque faltavam os demais com 

igualdade de direitos, que juntos constituíam o espaço da liberdade. 

Esse último era de importância ainda mais decisiva para o conceito 

romano moldado de maneira bem diferente, sobre o que é a coisa 

política, a coisa pública, a res publica ou república. Para os romanos, a 

família caía tanto no âmbito dos não-livres que Mommsen traduziu a 

palavra familia, de maneira sumária, por ―servidão‖. Porém, a razão 

para essa servidão é dupla; em primeiro lugar, residia em que o pater 

familias, o dono da casa, reinava como um verdadeiro monarca ou 

déspota sozinho sobre sua casa multiforme, composta de mulher, 

filhos e escravos; portanto, faltavam-lhe as pessoas com igualdade de 

direitos diante das quais ele poderia aparecer em liberdade. Em 

segundo lugar, essa casa dominada por um não podia ser admitida em 

nenhum certame ou competição, porque precisava formar uma 

unidade que só poderia ser destruída por interesses, posições e pontos 

de vista antagônicos. Com isso, deixava de existir, de maneira 

automática, aquela multiplicidade de aspectos nos quais o verdadeiro 

conteúdo do ser-livre, do agir-e-conversar-em-liberdade estava livre 

para se mover. Resumindo, a não-liberdade era o pressuposto de uma 

unidade que não foi fendida, tão constitutiva para a vida em comum 

na família quanto a liberdade e a luta de um com o outro para a vida 

em comum na polis. Com isso, o espaço livre da coisa política 

apresenta-se como uma ilha, na qual o princípio da força e da coação 

é eliminado das relações dos homens. O que fica de fora desse estreito 

espaço, a família, por um lado, e as relações da polis com outras 

unidades políticas, por outro, continua sujeito ao princípio da coação e 

ao direito do mais forte. Assim, segundo a concepção da Antiguidade, 

o status do indivíduo é tão exclusivamente dependente do espaço no 

qual ele se move de cada vez que o mesmo homem, como filho 

crescido de um pai romano, ―era subordinado a seu próprio pai... na 

condição de cidadão [poderia] cair no caso de dar-lhe ordens como 

senhor‖.

Retornemos ao nosso ponto de partida. Tentamos recordar a 

guerra de extermínio de Tróia em seus adornos homéricos para nos 

lembrar quão bem os gregos deram conta do elemento exterminador 

da força, que destruía o mundo e a coisa política. Como se os gregos 

houvessem separado a luta sem a qual nem Aquiles nem Heitor jamais 

poderiam ter-se revelado, de fato, tentando provar quem eram, da 

coisa guerreira-militar da qual a força é oriunda, e, com isso, 

transformando-a num elemento integrante da polis e da coisa política, 

ao passo que deixavam por conta de seus poetas e historiadores a 

preocupação com o que devia ser dos vencidos e derrotados nas 

guerras seguintes. Contudo, deve-se observar que sua própria obra, 

51

mas não a atividade através da qual ela surgiu, tornou-se de novo 

parte da polis e da coisa política — não diferente das estátuas de 

Fídias e outros artistas cujas obras pertenciam ao estoque da coisa 

política pública palpável no mundo, ao passo que eles mesmos, por 

causa de sua profissão, não eram tidos como iguais e cidadãos livres. 

Nisso continua decisiva, para a cunhagem do tipo grego de homem na 

polis, a figura de Aquiles, o empenho constante para se distinguir, 

para ser sempre o melhor de todos e ganhar fama imortal. A 

necessária presença de muitos no geral e de muitos de igual categoria 

em especial, o local de reunião homérico da ágora, que no caso da 

expedição contra Tróia só pôde manifestar-se porque muitos  ̳reis‘, 

quer dizer, homens livres, que viviam isolados em suas casas 

associaram-se para um grandioso empreendimento que precisava de 

todos — no fundo, de cada um porque só nesse estar juntos, longe da 

casa natal e de sua estreiteza, era possível ganhar fama: o estar junto 

homérico dos heróis era despido também de caráter temporário que 

dependia da aventura. A polis ainda está inteiramente ligada à ágora 

homérica, mas esse local de reunião é agora perpétuo, não o 

acampamento de um exército que depois do trabalho feito se retira de 

novo e precisa esperar séculos até se encontrar um poeta que conceda 

aquilo que tem direito perante deuses e homens por causa da 

grandeza de seus feitos e palavras — a fama imortal. Então, assim 

esperava a polis em seu apogeu (tal como sabemos através do 

discurso de Péricles), ela mesma assumiria possibilitar a luta sem toda 

violência e garantir a glória sem poeta e sem versos, a única maneira 

pela qual os mortais podem tornar-se imortais.

Os romanos eram o povo gêmeo dos gregos porque deduziam 

sua origem enquanto povo do mesmo acontecimento, a Guerra de 

Tróia, ―porque não se achavam romúlidas, mas sim enéides‖,

achavam-se descendentes dos troianos, assim como os gregos 

julgavam-se descendentes dos aqueus. Desse modo, deduziam 

conscientemente sua existência política de uma derrota, a qual se 

seguiu uma nova fundação em terra estranha, mas na verdade não a 

nova fundação de um novo inaudito, mas a fundação renovada para 

algo velho, a fundação de uma nova pátria e de uma nova casa para 

os penates, os deuses do rebanho real em Tróia, que Enéias salvou na 

fuga junto com pai e filho sobre o mar para o Lácio. Tratava-se, como 

nos diz Virgilio no aperfeiçoamento definitivo do adorno grego, siciliano 

e romano do ciclo de lendas troianas, da anulação da derrota de Heitor 

e do aniquilamento de Tróía: ―Um novo Páris acende-me de novo o 

fogo que abala as ameias de Pérgamo‖. Essa é a tarefa de Enéias e, 

visto a partir dessa tarefa, através de Heitor a vitória é mantida 

afastada dos gregos durante dez anos, e não de Aquiles: Heitor torna-

52

se o verdadeiro herói da lenda. Mas isso não é decisivo. O decisivo é 

que, na repetição da Guerra de Tróia em solo italiano, invertem-se as 

relações do poema homérico. Se Enéias é ao mesmo tempo o sucessor 

de Páris e de Heitor, então ele atiça de fato o fogo por uma mulher, 

mas não por Helena e uma adúltera, mas sim por Lavínia, uma noiva, 

e igual a Heitor ele encontra a ira implacável e a cólera invencível de 

um Aquiles, ou seja, ao Turnus que se identifica expressamente —

―comunica a Príamo então que encontraste aqui também a Aquiles‖; 

mas quando se chega no duelo, Turnus foge, quer dizer, Aquiles, e 

Enéias, quer dizer Heitor, o persegue. Assim como é evidente que 

Heitor não põe a fama acima de tudo mesmo na representação 

homérica, mas sim que ―tomba um defensor lutando por seus altares 

domésticos‖, a Enéias não pode ser arrancado o pensamento na alta 

fama e grandes feitos de Dido, porque ―não lhe parece que o próprio 

louvor valha o esforço e flagelos‖; mas apenas a lembrança no filho e 

descendentes, a preocupação com a continuidade da geração e sua 

fama que para os romanos continha a garantia da imortalidade 

terrena.

Essa origem — primeiro transmitido como lenda e depois 

adornada cada vez de forma mais consciente e rica — da existência 

política romana a partir de Tróia e da guerra que se travou em torno 

da cidade pertence, sem dúvida, aos acontecimentos mais estranhos e 

excitantes da história ocidental. É como se comparasse aqui a 

bilateralidade poético-espiritual e a imparcialidade do poema homérico 

com uma realidade plena e cumprida que realiza algo nunca antes 

realizado na História; ao que parece, tampouco pode ser realizado 

nela, ou seja, a plena justiça para com a causa dos vencidos não de 

parte da posteridade julgadora — que sempre pode dizer com e desde 

Catão: victrix causa diis placuit sed victa Catoni — mas de parte 

do próprio decorrer histórico. Já é bastante inaudito que Homero cante 

a glória dos vencidos e, assim, no próprio poema glorificante mostra 

que um mesmo e único acontecimento pode ter dois lados e que o 

poeta, ao contrário da realidade, não tem o direito de, com a vitória de 

um lado, abater e matar o outro lado, pela segunda vez. Porém, o 

mesmo se passa na realidade — e se pode esclarecer com facilidade o 

quanto a auto-interpretação dos povos é parte integrante de tal 

realidade, quando se pensa que os romanos, enquanto sucessores dos 

troianos, defenderam, em sua primeira contato demonstrável com os 

gregos, a Ílion de mesma origem —, parece muito mais inaudito; pois 

é como se no começo da história ocidental houvesse, de fato, uma 

guerra no sentido de Heráclito, [ou seja, uma guerra] que se tornou ―o 

pai de todas as coisas‖ porque forçou o mesmo e único acontecimento 

a se manifestar em seus dois lados, que originalmente eram virados 

53

de costas um para o outro. Desde então, não existe para nós, tanto no 

mundo físico como no mundo histórico-político, nada mais que se 

torne coisa ou fenômeno em plena realidade, quando descoberto e 

classificado em sua riqueza de aspectos e mostrado de todos os lados 

e todos os ângulos possíveis no mundo dos homens, chega ao 

conhecimento e à articulação.

Somente a partir dessa perspectiva determinada como romana, 

na qual o fogo é atiçado de novo para abolir o extermínio, talvez 

possamos compreender o que é em si, de verdade, a guerra de 

extermínio e por que não deve ter nenhum lugar na política, 

independente de todas as considerações morais. Se for correto que 

uma coisa só é realmente no mundo do histórico-político, assim como 

no mundo do físico, quando mostrar-se e puder ser percebida de todos 

os lados, então ela sempre precisará ser observada e definida por uma 

pluralidade de homens ou de povo, ou de uma pluralidade de ângulos, 

para se fazer realidade possível e garantir sua continuidade. Em outras 

palavras, só surge mundo porque há perspectivas, e só existe por 

causa de uma correspondente ordem de coisas. Se um povo, ou um 

Estado, ou apenas um determinado grupo de homens, é exterminado 

porque, em todo caso, tem uma posição qualquer no mundo que 

ninguém pode duplicar sem dificuldade, que apresenta uma visão de 

mundo só realizável por ele —, então não é apenas um povo, um 

Estado ou uma certa quantidade de homens que morre, senão que 

uma parte do mundo comum é aniquilada — um lado do mundo 

mostrado antes, mas que jamais poderá mostrar-se de novo. Por 

conseguinte, o aniquilamento iguala-se aqui não apenas a uma espécie 

de fim do mundo, senão que atinge também os aniquiladores. A rigor, 

a política não tem tanto a ver com os homens como tem a ver com o 

mundo surgido entre eles e que sobreviverá a eles; na medida em que 

se torna destruidora e causa fins de mundo, ela destrói e se aniquila a 

si mesma. De outra maneira: quanto mais povos houver no mundo 

que tenham entre si essa relação e outras, mais mundo se formará 

entre eles e maior e mais rico será o mundo. Quantos mais pontos de 

vista houver num povo, a partir dos quais possa ser avistado o mesmo 

mundo, habitado do mesmo modo por todos e estando diante dos 

olhos de todos, do mesmo modo, mais importante e mais aberta para 

o mundo será a nação. Mas se acontecer o contrário e, através de uma 

tremenda catástrofe, só restar um povo na face da Terra e se esse 

povo chegar ao ponto em que todos vêem e entendem tudo a partir da 

mesma perspectiva e vivem entre si em plena unanimidade, então o 

mundo terá chegado ao fim, no sentido histórico-político, e os homens 

sem mundo que restarem na face da Terra quase mais nada terão em 

comum conosco — tanto quanto aquelas tribos sem mundo e sem 

54

relações que vegetavam de um lado para o outro, encontradas pela 

humanidade européia na descoberta de novos continentes, que foram 

tomadas de volta para o mundo dos homens ou exterminadas, sem ter 

consciência de que também eram homens. Em outras palavras, só 

pode haver homem na verdadeira acepção onde existe mundo, e só 

pode haver mundo no verdadeiro sentido onde a pluralidade do gênero 

humano seja mais do que a simples multiplicação de uma espécie.

Por conseguinte, é da maior importância que a Guerra de Tróia 

repetida em solo italiano, à qual o povo romano atribui sua existência 

política e histórica, não terminasse de novo, por seu lado, com o 

aniquilamento dos derrotados, mas sim com uma aliança e um 

tratado. Não se tratava apenas de atiçar o fogo de novo para 

simplesmente inverter o desenlace, mas sim de inventar um novo 

desfecho para tal fogo-guerra. Contrato e aliança, de acordo com sua 

origem e seu conceito cunhado tão ricamente pelos romanos, estão 

ligados, do modo mais estreito, com a guerra entre povos e, segundo 

a concepção romana, representam a continuação natural, por assim 

dizer, de toda e qualquer guerra. Nisso também há algo de homérico 

ou talvez alguma coisa que já existia antes do próprio Homero quando 

ele pôs mãos à obra para dar sua cunhagem poética definitiva ao ciclo 

de lendas troianas. Residia no reconhecimento de que também o 

encontro mais hostil de homens faz surgir alguma coisa que só é 

comum a eles, justamente porque — como Platão um dia expressou —

―tal como o agente faz, o sofredor também sofre‖ (Górgias,476), é 

assim e não de outra maneira, de modo que quando fazer e sofrer 

passam, podem tornar-se posteriormente os dois lados de um mesmo 

acontecimento. Mas com isso o próprio acontecimento já foi 

transformado de luta em uma outra coisa, que só se torna acessível 

para o olhar retroativo e enaltecedor do poeta ou do historiador. 

Politicamente, porém, o encontro que ocorre na luta só pode manter-
se como encontro quando a luta é interrompida antes do 

aniquilamento do vencido e dela surge um estar junto de novo tipo. 

Todo tratado de paz, mesmo quando não for verdadeiro, mas sim um 

ditado, trata de uma reorganização daquilo que já existia antes da 

conflagração das hostilidades, e também do que se manifesta no 

decorrer das hostilidades como algo em comum do agente e do 

sofredor. Uma tal transformação [do simples aniquilamento em algo 

diferente e duradouro] *

não deixa morrer pelo menos a glória e a honra do vencido e através 

da qual o nome de Aquiles permaneceu ligado para sempre ao de 

Heitor. Mas, no caso dos gregos, tal transformação do estar junto 

hostil permaneceu totalmente limitado ao poético e retroativo e não 

pôde tornar-se diretamente eficaz na política.

se encontra na imparcialidade homérica que 

55

Portanto, contrato e aliança enquanto concepções centrais da 

coisa política são, em termos históricos, não apenas de origem 

romana, mas também ambas as coisas são estranhas, em sua 

essência mais profunda, ao caráter grego e à sua concepção do âmbito 

da coisa política, ou seja, da polis. O que sucedeu quando os 

descendentes de Tróia chegaram em solo italiano foi nada mais nada 

menos do que o fato de a política surgir exatamente ali onde no caso 

dos gregos chegava em suas fronteiras e achava um fim, ou seja, no 

âmbito intermediário não entre os cidadãos de igual categoria de uma 

cidade, mas sim entre os povos estranhos entre si e que se 

defrontavam em desigualdade, que só a luta reuniu. É verdade que, 

como vimos, também no caso dos gregos a luta e com ela a guerra foi 

o começo de sua existência política, mas apenas até o ponto em que, 

nessa luta, tornaram-se eles mesmos e uniram-se para se assegurar 

da confirmação definitiva e perpétua da própria essência. No caso dos 

romanos, a mesma luta tornou-se aquilo em que reconheciam a si 

mesmos e aos parceiros; quando a luta chegou ao fim, não se 

retiraram de novo para si mesmos e a sua glória nos muros de sua 

cidade, mas haviam ganho algo novo, um novo âmbito político 

assegurado através do tratado com o qual os inimigos de ontem 

tornaram-se os aliados de amanhã. Falando politicamente, o contrato 

que liga dois povos faz surgir um novo mundo entre eles ou, de 

maneira mais exata, garante a continuação da existência de um 

mundo novo, só comum a eles, surgido quando eles se encontraram 

na luta e, no fazer e no sofrer, produziram um igual.

Essa solução da questão da guerra — quer tenha sido 

originalmente própria dos romanos ou tenha surgido apenas 

posteriormente no recordar e no adornar da guerra de extermínio de 

Tróia — é a origem tanto do conceito de lei como da importância 

extraordinária que a lei e a formação da lei experimentaram no 

pensamento político romano. Pois, a lex romana, em completa 

diferença e até mesmo em oposição àquilo que o gregos conheciam 

por nomos, significa originalmente ―ligação duradoura‖ e, em seguida, 

contrato tanto no direito de Estado como no privado. Portanto, uma lei 

é algo que liga os homens entre si e se realiza não através de um ato 

de força ou de um ditado, mas sim através de um arranjo ou um 

acordo mútuo. O fazer da lei, essa ligação duradoura que se segue à 

guerra violenta, é ele mesmo totalmente ligado à conversa e à réplica 

daí a algo que, tanto na opinião dos gregos como na dos romanos, 

estava no centro de tudo que é político.

Nisso, porém, é decisivo que só para os romanos a atividade 

legisladora e com isso a própria lei caíam no âmbito da verdadeira 

coisa política, ao passo que segundo a concepção grega a atividade do 

56

legislador era tão radicalmente separada das verdadeiras atividades e 

ocupações políticas dos cidadãos dentro da polis que o legislador nem 

ao menos precisava ser cidadão da cidade, podendo ser contratado 

de fora — como um escultor ou um arquiteto a quem se podia

encomendar o que fosse preciso para a cidade. Em contrapartida, a lei 

das doze tábuas de Roma, se bem que em seus pormenores possa ter 

sido determinada por modelos gregos, não é obra de um único 

homem, mas sim o contrato entre duas partes em luta, o patriciado e 

os plebeus, que precisava do assentimento de todo o povo, aquele 

consensus omnium ao qual a historiografia romana sempre atribuiu 

―um papel singular‖ (Altheim) quando da redação de leis. Para esse 

tipo de contrato é importante que — no caso dessa lei básica a qual 

remonta, de fato, à fundação do povo romano, do populus romanus

— não se trata de conciliar as partes em litígio no sentido de ser 

abolida pura e simplesmente a diferença entre patriciado e plebeus. 

Ocorreu o contrário; uma expressa proibição de casamento, mais tarde 

abolida de novo, entre patrícios e plebeus acentuava a separação, de 

maneira mais expressa do que antes. Só foi conciliada a relação de 

inimizade. Mas o aspecto legal específico da regulamentação, no 

sentido romano, residia em que, a partir de então, um contrato, uma 

eterna ligação, ligava entre si a patrícios e plebeus. A res publica, a 

questão pública que surgiu a partir desse contrato e que se tornou a 

república romana, estava localizada no espaço intermediário entre os 

parceiros antes inimigos. Portanto, a lei é, aqui, algo que institui de 

novo relações entre homens, e quando liga homens entre si, não o faz 

no sentido do direito natural no qual todos os homens são 

identificados, com um voto da consciência da natureza, por assim 

dizer, como bons e maus; não no sentido de mandamentos proferidos 

de fora para todos os homens do mesmo modo, mas no sentido do 

acordo entre contraentes. E assim como tal acordo só pode realizar-se 

quando é defendido o interesse de ambas as partes, no caso da 

protolei romana, também tratava-se de ―estabelecer uma lei comum 

que levasse em conta as duas partes‖ (Altheim).

Para avaliar corretamente a extraordinária fecundidade política 

do conceito romano de lei além da coisa moral, que deve continuar 

secundária em nossa reflexão, é preciso rememorar, em poucas 

palavras, a concepção grega, moldada de modo bem diferente, daquilo 

que originalmente é lei. A lei, como os gregos entendiam, não era 

acordo nem contrato, não surgiu entre os homens no falar de duas 

partes e no agir e contra-agir e, por conseguinte, não é algo inserido 

no âmbito político, mas é, em essência, imaginado por um legislador e 

precisa ser aprovado, antes de poder entrar na verdadeira coisa 

política. Como tal, é pré-política, no sentido de ser constitutiva para 

57

todo o ulterior agir político e o lidar politicamente entre si. Assim como 

os muros da cidade [com] os quais Heráclito compara a lei, precisam 

ser construídos primeiro antes de poder existir uma cidade 

identificável em sua forma e em suas fronteiras, a lei determina a 

verdadeira fisionomia de seus habitantes, através da qual ela se 

distingue e sobressai de todas as outras cidades e seus habitantes. A 

lei é a circunvalação-fronteira produzida e feita por um homem, dentro 

da qual nasce então o espaço da verdadeira coisa política, no qual 

muitos se movem livremente. Por isso, Platão invoca Zeus, o protetor 

das fronteiras e dos marcos, antes de pôr mãos à obra e promulgar 

suas leis para uma cidade recém-fundada. Trata-se, em essência, de 

estabelecer fronteira e não de ligação e união. A lei é, por assim dizer, 

aquilo segundo a qual uma polis forma sua vida a seguir, que não 

pode ser abolida sem renúncia à própria identidade, e cuja violação é 

igual à transposição de uma fronteira imposta à existência e que, por 

conseguinte, é Hibris. A lei não vale no lado de fora da polis, sua força 

obrigatória estende-se apenas sobre o espaço que ela encerra e limita. 

Violar a lei e deslocar-se para fora das fronteiras da polis eram, para 

Sócrates, a mesma e única coisa, no sentido mais textual da palavra.

Nisso é decisivo que a lei — se bem que encerre o espaço no 

qual os homens vivem entre si sob a renúncia à força — tem algo de 

violento e, na verdade, tanto no que diz respeito a seu surgimento 

como à sua essência. Ela surgiu através de produção e não do agir; o 

legislador é igual ao urbanista e ao arquiteto, não ao estadista e ao 

cidadão. A lei produz o espaço da coisa política e contém o violento-
brutal, próprio de todo produzir.

Como tal, uma coisa feita está em oposição ao que surgiu de 

maneira natural, não precisando de ajuda alguma, nem de deuses 

nem de homens, para ser. Assim, é próprio de tudo que não é 

natureza e não surgiu através de si mesmo, uma lei pela qual é 

produzido, cada um depois do outro, e entre essas leis não existe 

nenhuma relação, tampouco quanto entre aquilo por elas imposto. 

―Uma lei‖, assim expressou Píndaro num famoso fragmento (no 48, ed. 

Boeckh) também citado por Platão, ―é o rei de todos, dos mortais e 

dos imortais, e, ao criar justiça, desempenha a coisa mais violenta 

com mão prepotente‖. Em relação aos homens a ela subordinados, 

essa coisa violenta expressa-se porque as leis ordenam, porque elas 

são os senhores e comandantes da polis na qual mais ninguém tem o 

direito de dar ordem a outra pessoa de igual categoria. Assim, as leis 

são pai e déspota de uma só vez, como Sócrates explica ao amigo em 

Críton (5O-51) — e isso não apenas porque a coisa despótica 

predominava na casa da Antigüidade, determinando também a relação 

entre pai e filho, de modo a insinuar ―pai e déspota‖, mas também 

58

porque a lei produziu o cidadão, por assim dizer, assim como o pai 

gerou o filho (pelo menos é tanto pressuposto de sua existência 

política como o pai é a condição da existência física do filho) e, por 

conseguinte, na opinião da polis — embora não mais na opinião de 

Platão e de Sócrates —, cabe a ela a educação do cidadão (Apologie 

— Nomoi) Porém, como a relação de obediência à lei não tem um fim 

natural como a relação de obediência ao pai, a relação entre senhor e 

escravos pode ser comparada de novo, de modo que o cidadão livre da 

polis era, em relação à lei, quer dizer, em relação à fronteira dentro da 

qual ele era livre e [onde] situava-se o espaço da liberdade — um 

―filho e escravo‖ durante toda a vida. Assim, os gregos, que dentro da 

polis não estavam subordinados à força do comando de nenhum 

homem, puderam advertir aos persas para não subestimarem sua 

força de combate, pois todos eles temiam a lei de sua polis não menos 

do que os persas ao grande rei. Como quer que se interprete esse 

conceito grego de lei, de maneira nenhuma a lei poderia servir para 

construir uma ponte entre um povo e outro, entre uma coletividade 

política dentro do mesmo povo e outra. Também no caso da fundação 

de uma nova colônia, a lei da cidade-mãe não bastava, senão que 

aqueles que se mudavam para fundar uma nova polis precisavam de 

novo de um legislador, de um nomothetes, de um compositor de leis, 

antes que o novo âmbito político pudesse ser reconhecido como 

assegurado. É evidente que, sob essas condições básicas, era 

simplesmente impossível a formação de um reino — e também é 

verdade que, através das guerras persas, foi despertada uma espécie 

de consciência nacional helênica, a consciência do mesmo idioma e da 

mesma constituição política de toda Hélade. A união de toda Hélade 

teria conseguido preservar o povo grego do declínio; nesse caso, a 

verdadeira essência grega também teria declinado.

Talvez se avalie a distância que separava essa concepção de lei 

enquanto único comandante ilimitado da polis da romana, da maneira 

mais fácil se nos lembrarmos que Virgílio o Latino, a quem Enéias vai, 

considera como povo ―aquele que sem grilhões e leis... se atém por 

impulso próprio aos costumes do deus mais velho‖ (VII, 2O3-4). A lei 

só surge ali porque trata-se agora de fazer um contrato entre os 

estabelecidos e os recém-chegados. Roma foi fundada sobre esse 

contrato, e se a missão de Roma é ―pôr sob a lei toda a orbe‖ (VII, 

231): então, isso não significa outra coisa que atrelar toda a orbe num 

sistema de contrato para o qual esse povo era o único qualificado, 

porque sua própria existência histórica derivava de um contrato.

Se se quiser expressar isso cm categorias modernas, então é 

preciso dizer que no caso dos romanos a política começou como 

política externa; portanto, exatamente com aquilo que, segundo o 

59

pensamento grego, estava situado fora de toda a política. Também 

para os romanos o âmbito político só podia surgir e existir dentro da 

coisa legal; mas esse âmbito surgia e se multiplicava ali onde 

diferentes povos se encontravam entre si. Esse encontro é guerreiro, e 

a palavra latina populus significava originalmente ―mobilização para o 

exército‖ (Altheim), mas essa guerra não é o fim, porém o começo da 

política, ou seja, de um espaço político novo, surgido do tratado de 

paz e de aliança. Pois esse também é o sentido da ―demência‖ romana 

tão famosa na Antigüidade, do parcere subiectis, da deferência para 

com os vencidos através da qual Roma organizou primeiro as regiões e 

povos da Itália e depois as possessões fora da Itália. Nem mesmo a 

destruição de Cartago é um reparo a esse princípio levado a efeito na 

realidade política de verdade, o princípio de jamais aniquilar, mas de 

sempre aumentar e firmar novos tratados. Aniquilado ali não foi o 

poder militar, ao qual Cipião ofereceu condições tão inauditamente 

favoráveis depois da vitória romana a ponto de o historiador moderno 

perguntar-se se ele agiu mais em seu interesse ou mais no interesse 

de Roma (Mommsen), e tampouco foi a potência comercial 

concorrente no Mediterrâneo, mas sim sobretudo ―um governo que 

nunca cumpria a palavra e jamais perdoava‖ e, desse modo, 

encarnava o verdadeiro princípio político anti-romano contra o qual a 

diplomacia romana era impotente e que teria aniquilado Roma, se não 

tivesse sido aniquilado por Roma. Catão pode ter pensado assim, ou 

pelo menos de maneira parecida, e lhe seguem os modernos 

historiadores que justificam a destruição da cidade, a única rival de 

Roma ainda existente na escala mundial da época.

Não importa como possa aparecer essa justificação: em nosso 

contexto, é decisivo que justamente a justificação não correspondia ao 

pensamento romano e não pôde ser imposta pelos historiadores 

romanos. Teria sido romano deixar a cidade inimiga existir na condição 

de adversária, da maneira como tentou o mais velho Cipião, o 

vitorioso sobre Aníbal; romano foi lembrar o destino dos antepassados 

e, como o destruidor da cidade, Emiliano Cipião, desfazer-se em 

pranto sobre as ruínas da cidade e, pressentindo a própria desgraça, 

citar Homero: ―Virá o dia em que a santa Ílion cairá, / o próprio 

Príamo e o povo do rei derrubado à lança‖; por fim, romano foi deduzir 

o começo do declínio a partir dessa vitória, que terminou com um 

aniquilamento que tornou Roma uma potência mundial, dedução essa 

que costumavam fazer quase todos os historiadores romanos até 

Tácito. Em outras palavras, romano foi saber que o outro lado da 

própria existência, justamente quando se revelou como tal na guerra, 

deve ser poupado e mantido vivo — não por misericórdia para com os 

outros, mas sim por causa do aumento da cidade que a partir de então 

60

devia abranger também esse estrangeiro numa nova aliança. Então, 

esse bom-senso determinou que os romanos lutassem, a despeito de 

todos os seus interesses imediatos, de maneira decidida em favor da 

liberdade e independência dos gregos, mesmo que tal procedimento, 

em vista da situação existente de fato nas poleis gregas, se 

apresentasse muitas vezes como imprudência sem sentido. Não 

porque se quisesse reparar na Grécia aquilo que se pecou em Cartago, 

mas porque se julgava justamente o caráter grego como o verdadeiro 

reverso correspondente ao romano. Para os romanos era como se 

Heitor encontrasse Aquiles mais uma vez e lhe oferecesse a aliança 

depois da guerra travada. Só que, infelizmente, nesse meio tempo 

Aquiles ficou velho e implicante.

Aqui também seria errado adotar parâmetros morais e pensar 

num sentimento moral que se estenda à coisa política. Cartago foi a 

primeira cidade com a qual Roma teve a ver: era igual a Roma em 

termos de poder e, ao mesmo tempo, encarnava um princípio oposto 

ao romano. Por conseguinte, nessa cidade foi demonstrado pela 

primeira vez que o princípio político romano do tratado e da aliança 

não era aplicável em toda parte, que possuía seus limites. Para 

compreender isso, devemos ter presente que as leis com as quais 

Roma organizou primeiro as regiões romanas e depois os países do 

mundo não eram apenas contratos em nossa acepção, senão que 

visavam a uma ligação duradoura, e que portanto continham, em 

essência, uma aliança. Desses aliados de Roma, os socii — que eram 

quase todos os antigos inimigos derrotados — resultou a societas 

romana que nada tem a ver com sociedade, mas sim com associação e 

a relação nela contida. O que os romanos aspiravam não era tanto 

aquele Imperium Romanum, aquele domínio romano sobre povos e 

terras que, como sabemos desde Mommsen, tocou-lhes mais contra a 

própria vontade e lhes foi impingido, quanto uma Societas Romana, 

um sistema de aliança fundado por Roma e infinitamente dilatável, no 

qual povos e terras estavam ligados a Roma não apenas através de 

tratados temporários e renováveis, mas sim por alianças eternas. Os 

romanos falharam no caso de Cartago justamente porque ali só seria 

possível, no máximo, um tratado entre iguais com os mesmos direitos, 

uma espécie de coexistência, falando em termos modernos, e porque 

tal tratado moderno estava fora das possibilidades do pensamento 

romano.

Isso não deve ser atribuído a nenhum acaso e tampouco a uma 

burrice. O que os romanos não conheciam e que tampouco podiam 

conhecer dentro da experiência básica da qual era determinada sua 

existência política do começo ao fim, eram justamente aquelas 

características inerentes ao agir que haviam determinado que os 

61

gregos se limitassem ao nomos e por lei entendessem não uma 

ligação e uma relação, mas sim uma fronteira, algo que encerrava, 

impossível de ser transposto. Pois era inerente ao agir, justamente 

porque segundo sua essência está sempre produzindo relações e 

ligações para onde quer que se estenda, um descomedimento e, como 

Ésquilo achava, uma insaciabilidade que só podia ser mantida dentro 

dos limites, a partir de fora, através de um nomos, uma lei na 

acepção grega. O descomedimento, como os gregos achavam, não 

reside no descomedimento do homem atuante e sua Hibris, mas sim 

no fato de as relações surgidas através do agir, são e devem ser de tal 

espécie que entram no ilimitado. Toda relação causada pelo agir recai, 

porquanto liga homens atuantes, numa rede de relações e 

relacionamentos na qual desencadeia novas relações, muda de 

maneira decisiva a constelação de relacionamentos já existentes e 

segue alastrando-se sempre e pondo em ligação e movimento cada 

vez mais do que o homem atuante poderia prever. O nomos grego 

opõe-se a essa investida contra o ilimitado e restringe o negociado 

àquilo que se passa dentro de uma polis entre homens, e liga de volta 

na polis aquilo que está situado do outro lado dessa polis, com que a 

polis tem de entrar em contato em seus feitos. Segundo o modo de 

pensar grego é só com isso que o agir se torna político, quer dizer, 

vinculado à polis e com isso à mais elevada forma de convívio 

humano. Do nomos que limita e impede que ele se volatilize num 

mesmo sistema de relações que crescem sem cessar, o negociado 

recebe a forma permanente, que o transforma em proeza, que pode 

ser lembrado e conservado em sua grandeza, significando sua 

transcendência. Com isso, o nomos opõe-se à fugacidade de tudo que 

é mortal, fugacidade característica e sentida de maneira tão nítida 

pelos gregos da era trágica, a fugacidade da palavra falada assim 

como do volatilizar-se do ato consumado. Os gregos apagaram essa 

força produtora de formas de seu nomos, tornando-se incapazes de 

constituir um reino; não há nenhuma dúvida de que, no final, toda 

Hélade sucumbiu ao nomos das poleis, das cidades-Estados que 

decerto se multiplicaram ao colonizar, mas jamais puderam unir-se e 

juntar-se numa ligação duradoura. Mas se poderia dizer com o mesmo 

direito que os romanos tornaram-se vítimas de sua lei, de sua lex

que, é verdade, lhes possibilitou instituir ligações e alianças 

duradouras onde quer que chegassem, mas ilimitadas em si e, desse 

modo, muito contra sua própria vontade e sem nenhuma vontade de 

poder ou mesmo ambição de poder, lhes impôs o domínio sobre a 

orbe, domínio esse que, tão logo alcançado, só poderia sucumbir de 

novo em si mesmo. No entanto, quase reside na natureza da própria 

coisa que, com a queda de Roma, sucumbisse para sempre o ponto 

central de um mundo e com ele talvez a possibilidade especificamente 

62

romana de centrar o mundo inteiro em torno de um ponto central; ao 

passo que ainda hoje, quando pensamos no declínio de Atenas, 

podemos supor que com isso não desapareceu para sempre, de 

maneira alguma, um ponto central do mundo, mas sim um ápice das 

possibilidades humanas-mundanas.

Mas os romanos pagaram por sua inaudita capacidade de fazer 

aliança e ligação duradoura que aumentava sem parar, não apenas 

com um aumento do império que no final entrou na escala do 

incomensurável-, com o que sucumbiu a cidade e a Itália por ela 

dominada. Pagaram, de maneira menos catastrófica em termos 

políticos, porém não menos decisiva em termos intelectuais, com a 

perda da imparcialidade grego-homérica, com o sentido de grandeza 

e transcendência em todas as suas formas onde quer que se encontre, 

com a vontade de se tornar imortais através do glorificar. A 

historiografia e a poesia dos romanos são romanas num sentido 

exclusivo, assim como a poesia e a historiografia grega jamais foram 

gregas, nem mesmo na decadência; trata-se aqui sempre apenas do 

apontamento da história da cidade e de tudo aquilo que a afeta 

diretamente; quer dizer, de seu aumento e difusão desde sua 

fundação: ab urbe condita, ou, como em Virgílio, da narrativa 

daquilo que levou à fundação da cidade, os feitos e viagens de Enéias: 

dum conderet urbem. Em certo sentido, se poderia dizer que os 

gregos, aniquiladores de seus inimigos, eram historicamente mais 

justos e nos transmitiram muitíssimo mais do que os romanos, que 

transformavam seus rivais em seus aliados. Mas esse julgamento 

também é errado quando entendido moralmente. Pois os vencedores 

romanos compreenderam, de maneira primorosa, o aspecto 

especificamente moral da derrota e se perguntaram através da fala do 

inimigo derrotado se eles não seriam ―conquistadores do mundo 

ladrões cujo instinto de destruição não encontra mais terra‖, se sua 

mania de criar relações em toda parte e de levar [a outros] a ligação 

eterna da lei, também não poderia ser interpretada como sendo [eles] 

―o único de todos os povos que ambicionava, com igual paixão, a 

plenitude e o vazio‖, de modo que, pelo menos do ponto de vista dos 

vencidos, poderia parecer muito bem que aquilo que chamavam de 

―domínio‖ equivalesse a roubar, matar e furtar, e que a pax romana, a 

famosa paz romana, fosse apenas o nome para o deserto que 

deixavam para trás (Tácito, Agrícola). Porém, por mais 

impressionantes que possam ser essas e semelhantes observações, 

quando são medidas na moderna historiografia patriota e nacionalista, 

o lado oposto ostentado por elas é apenas o reverso humano geral de 

uma vitória, o lado do derrotado na qualidade de derrotado. A 

concepção de que poderia haver algo simplesmente diferente, que 

63

podia ser igual a Roma em grandeza e, por conseguinte, igualmente 

digno da história retroativa: esse pensamento com o qual Heródoto 

introduz a guerra persa, estava bem distante dos romanos.

Não importa como quer que se saia a limitação romana 

caracterítica nessas coisas, é indubitável que o conceito de uma 

política externa e com isso a concepção de uma ordem política fora 

das fronteiras do próprio corpo do povo ou da cidade são de origem 

exclusivamente romana. Essa politização romana do espaço entre os 

povos está nos primórdios do mundo ocidental; foi ela que criou o 

mundo ocidental qualificado como mundo. Até os romanos houve 

muitas civilizações ricas, grandes e extraordinárias, mas o que havia 

entre elas não era mundo algum mas sim um deserto através do qual, 

quando as coisas iam bem, relações se tramavam como linhas e 

atalhos finos através de terra erma, e que quando as coisas iam mal 

se propagavam em guerras aniquiladoras e arruinavam o mundo 

existente. Nós estamos acostumados a entender lei e direito no 

sentido dos dez mandamentos enquanto mandamentos e proibições, 

cujo único sentido consiste em que eles exigem obediência, que 

deixamos cair no esquecimento, com facilidade, o caráter espacial 

original da lei. Toda lei cria, antes de mais nada, um espaço no qual 

ela vale, e esse espaço é o mundo em que podemos mover-nos em 

liberdade. O que está fora desse espaço, esta sem lei e, falando com 

exatidão, sem mundo; no sentido do convívio humano é um deserto. 

Está na essência das ameaças tanto da política interna como da 

externa, com as quais estamos confrontados desde o advento das 

formas de dominação total, que elas fazem desaparecer a verdadeira 

coisa política tanto da política interna como da externa. Se as guerras 

deviam tornar-se de novo guerras de extermínio, então desde os 

romanos a coisa política específica da política externa desapareceu e 

as relações entre os povos caíram de novo naquele espaço sem lei e 

sem política, que destrói o mundo e produz o deserto. Pois o que é 

exterminado numa guerra de extermínio é muitíssimo mais do que o 

mundo do adversário derrotado; é sobretudo o espaço intermédio 

entre os parceiros da guerra e entre os povos, que em sua totalidade 

formam o mundo na terra. Para esse mundo intermédio, que agradece 

seu surgimento não ao produzir mas sim ao agir dos homens, não vale 

o que dissemos no começo — que assim como pode ser aniquilado por 

mão humana também pode ser produzido de novo por mão humana. 

Pois o mundo das relações que surge a partir do agir, a verdadeira 

atividade política do homem, é muito mais difícil de se destruir do que 

o mundo produzido das coisas, no qual o produtor e feitor continua 

sendo o único mestre e senhor. Mas se esse mundo de relação é 

devastado, a lei do agir político cujos processos dentro da coisa 

64

política só podem ser anulados de fato, com muita dificuldade é 

substituída pela lei do deserto que, como um deserto entre homens, 

desencadeia processos devastadores que trazem em si o mesmo 

descomedimento inerente ao livre agir causador de relações dos 

homens. Conhecemos esses processos de devastação através da 

História e quase não conhecemos um caso em que puderam ser 

levados a uma paralisação, antes de levarem no declínio todo um 

mundo com toda sua riqueza de relações.

Notas

1. Antiquado para: Deus não criou o homem tanto como criou a 

família.

2. Em grego no original.

3. Atualização e revisão de O preconceito contra a política

4. Hannah Arendt não se pronunciou em detalhes sobre o 

dicernicmento nos manuscritos deixados. Mas, devemos notar que a 

tese com a qual ela se ocuparia mais tarde com tanta intensidade, 

ou seja, que ―o pensamento político se funda sobre tudo no 

dicernimento‖, já é formulada nessa época da primeira fase. Para 

isso, veja também Fragmento 3c, p. 85 e seg., além da p. 190 no 

Apêndice e nota 66 no Comentário.

5. No original: ... e o sucedido nela

6. Não pôde ser apurado de que ―pesquisa‖ se trata (que também é 

mencionada em outra parte dos manuscritos aqui publicados, veja 

pp. 189-190). Isso é muito lamentável porque é provável que a 

partir dessa fonte se pudessem tirar conclusões para a datação dos 

fragmentos. Compare também com Comentário p. 151 e seg.

7. No original: que a capacidade formadora do mundo e realizadora.

8. Revisto e atualizado de: Introdução: Tem a Política ainda algum 

sentido?

9. The Federalist, no 51 (Madison): ―Mas o que é o governo em si a 

não sero maior de todos os reflexos da natureza humana? Se os 

homens fossem anjos, não haveria necessidade de governo algum. 

Se anjos governassem os homens, não seriam necessários 

controles internos nem externos sobre o governo. Ao moldar um 

governo que deve ser administrado por homens sobre homens, a 

grande dificuldade reside nisso: você precisa primeiro capacitar o 

governo a controlar os governados e, no passo seguinte, obrigá-lo a 

se autocontrolar‖. Citado segundo: Alexander Hamilton et al.; The 

Federalist Papers, com uma introdução... de Clinton Rossiter, 

Nova York: A Mentor Book (ME 2541), 1961, p. 322.

65

10. Compare Victor Ehrenberg, art. ―Isonomia‖, in Paulys Real-
Encyclopaedie der classichen Altertumwissenscha ften, 

Supl., tomo 7 (1950), p. 293 e segs.

11. Theodor Mommsen, Roemische Geschichte, 3 tomos, 5 a ed., 

Berlim: Weidmann, 1868-1870, tm. 1, p.62.

12. A palavra é ―philopsychia‖. Compare para isso Jacob 

Burckhardt. Compare para isso Jacob Burckhardt, Griechische 

Kulturgeschichte, edição completa, 4 tomos, Munique: dtv 

(6075-6078), tm. 2, p. 391: ―... o amor à vida (philopsychia) é 

uma repreensão da qual os gregos e os trágicos constumavam 

preservar seus personagens heróicos... Em geral, o amor à vida era 

atribuído aos serviçais e escravos como uma característica vil, que 

os diferenciava dos homens livres‖. Essa citação também se 

encontra num apontamento conservado no epsódio de Arendt em 

Washington.

13. É provável que seja aludida a palavra asty, para a qual H. G. 

Liddle e R. Scott, A Greek English Lexicon, Oxford, Claredon 

(ed. 1968, p. 263), documenta o seguinte significado: ―no sentido 

material, o oposto a polis.‖

14. Ehrenberg, l. c.

15. No original: de confiança

16. Segundo Thucídides, II, 41; compare Hannah Arendt, Vita Activa 

oder Vom taetigen Leben, nova edição 1981, Munique-Zurique: 

Piper (SP 217), 1983, p. 190 e seg. Veja também abaixo, p. 102 e 

nota 37.

17. Veja ―As Cartas transmitidas com o nome de Platãp‖, tit. de 

Hieronymus e Friedirch Mueller, in Platão, Sämtliche Werke, na 

tradução de Friedrich Schleiermacher com a numeração de 

Stephanus, 3 tomos, Hamburgo: Rowohrt (RK 1, 14, 27), 1957-

1958, tm. I, pp. 285-336, p. 333 (= 2a Carta, 359b).

18. Edmund Burke, em Thoughts on the Cause of the Present 

Discontentes (1970: ―Eles [isto é, os Whigs no reinado da Rainha 

Anne, ed.] acreditavam que nenhum homem poderia agir com 

efeito, senão agisse de comum acordo; que nenhum homem 

poderia agir de comum acordo, se não agisse com confiança; que 

nenhum homem poderia agir com confiança, se não estivesse ligado 

por opiniões comuns, afeições comuns e interesses comuns‖. Citado 

aqui segundo extrato em Edmund Burke, On Government, 

Politcs and Society, escolhido e editado por B. W. Hill, Nova 

York: Internat. Library, 1976, pp. 75-119, p. 117.

19. Veja ―As Cartas Transmitidas com o nome de Platão‖, l. c., p. 

303.

20. Refere-se à distância da esfera política, que se presta sobre tudo 

às atividades produtivas artesanais e artísticas, mas também ao 

66

filosofar pensante. Hannah Arendt só chega a falar de leve sobre 

ambos nos manuscritos deixados (compare p. 101 e seg.). É 

possível que tivessem previstas explicações corresposndentes para 

a introdução (veja no Apêndice Documento 1), mas não estava 

planejado o assentado terceiro capítulo ―A Posição Socrática‖.

21. Veja Fragmento p. 73 e segs., além do Fragmento 3c no qual se 

faz referência à política externa como uma concepção 

especificamente romana, p. 122 e segs.

22. A palavra não tem comprovação léxica, tampouco como 

―apolitéia‖.

23. Essa referência poderia relacionar-se com o planejado capítulo 

―A Posição Socrática‖.

24. Tertuliano, Apologeticus, 38: ―nec ulla magis res aliena 

quam publica‖. Compare Arendt, Vita Activa, l. c., p. 71

25. No original acompanha o seguinte texto: ―Pois, os cristãos 

não ficam satis feitos em exercer uma misericórdia que vá 

além da coisa política; eles têm a pretensão expressa de 

‘exercer a justiça’ – e o dar esmolas, do qual fala Mt 6, 1 

e segs., e uma concepção judaica bem como do 

cristianismo primitivo , em conseqüência totalmente da 

justiça e não da misericórdia – só que essa atividade não 

deve aparecer diante dos olhos dos homens, não deve ser 

vista por eles, mas sim permanecer tão firmemente oculta 

que a mão esquerda não possa saber o que a direita faz , 

quer dizer que o autor se ja excluído como observador de 

seu próprio feito .‖

26. No original: É sobre a base dessa transformação que se realiza 

no pensamento e ação de Agostinho...

27. Carlos I em seu discurso antes de sua decapitação em 30 de 

janeiro de 1649: ―Para o povo desejo verdadeiramente sua 

liberdade e libertação tanto quanto qualquer outra pessoa. Mas 

devo dizer-lhes que sua liberdade e libertação consiste em ter 

governo – aqulas leis pelas quais sua vida e seus bens possam ser 

seus ao máximo. Não é ter uma parte no governo. Isso não lhes diz 

respeito‖. Citado aqui de acordo com Hugh Ross Williamson, The 

Day They Killed the King, Nova York: Macmillan, 1957, pp. 139-

144, p. 143. Williamson chama atenção para o fato de que existem 

várias versões desse discurso.

28. Compare, por exemplo, Leopold von Ranke, Die grossen 

Maechte (1833), em: o mesmo, Geschichte und Politik: 

Ausgwaehlte Aufsätze und Meisterschriften, ed. por Hans 

Hofmann, Stuttgart: Kroener, 1942, pp. 1-53, p. 2. Não pôde ser 

descoberto se Arendt refere-se diretamente a esse ou outros 

trechos de Ranke ou se sua afirmação baseia-se apenas numa 

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avaliação geral da obra de Ranke. Compare, porém, Politisches 

Gespraech (1836), pp. 78-114, p. 97 na mesma antologia de 

Ranke; o título da página provavelmente formulado pelo editor é 

―Primado da Política Exterior‖; Ranke faz Karl dizer: ―Parece que na 

política as relações exteriores desempenham um grande papel‖.

29. Compare Theodor Eschenburg, Staat und Gesellscha ft in 

Deustschland, Stuttgart: Schwab, 1956 p. 19. A citação em 

Eschenburg é: ―O Estado como portador da força é uma instituição 

da sociedade imprescindível para esta‖.

30. Nos fragmentos deixados, esse pensamento é exposto, 

sobretudo no Fragmento 3d.

31. A formulação obsoleta ―levar o conselho‖ pode ter sido inspirada 

no poeta de Goethe ―Amyntas‖, em cuja última linha está escrito: 

―Quem confiar no amor, leva sua vida a conselho?‖ Agradeço essa 

referência à administradora do espólio de Arendt, dra. Lotte 

Koehler, Nova York.

32. No original: alojamento de confiança.

33. No original, segue-se o seguinte texto entre parêntese: 

―Infelizmente, Marx foi muito melhor historiador do que 

teórico e , em geral, só aumentou muito conceitualmente 

enquanto teoria aquilo que podia ser demonstrado , de 

maneira objetiva, como tendência histórica. O extinguir -se 

da coisa pública pertence a essas tendências objetivamente 

demonstráveis dos tempos modernos.

Fontes: 

https://docs.google.com/folderview?docId=0B-YLV8egGwSuMEd2V0Rlb0hWdTQ&id=0B-YLV8egGwSudGJCc2NQTHJVVVk



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