Projeto Imersão Literária apresenta o Fio das missangas: Convite à imersão literária no universo de Mia Couto

 “A missanga, todas a veem. Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas. Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo.”  Mia Couto




O livro O Fio das Missangas, publicado em 2004, reúne 29 contos que mesclam, em especial, lirismo e sensibilidade de Mia Couto. Os textos são curtos e versam sobre o universo feminino de modo habilidoso e certeiro. Quase todos os contos são povoados por personagens femininas em luto, saudosas de amores passados, outros jamais concretizados, mas também por mulheres vítimas de abandono e violência doméstica. Tudo isso cabe no largo escopo da obra, que se debruça lindamente sobre o feminino, demonstrando intimidade incontestável com ele. Mas as mulheres de Mia Couto nunca são meras vítimas. Seu choro e seu canto e são sempre ativos. Resolutos.

O Projeto Imersão Literária destacou aqui, para o deleite e reflexão,o conto: Enterro televisivo

“Uns olham para a televisão. Outros olham pela televisão.” DITO DE SICRANO 

Estranharam quando, no funeral do avô Sicrano, a viúva Estrelua proclamou: 
– Uma televisão! 
– Uma televisão o quê, avó? 
– Quero que me comprem uma televisão. Aquilo, assim, de rompante em plenas orações. Dela se esperava mais ajustado desejo, um ensejo solene de tristeza, um suspiro anunciador do fim. Mas não, ela queria naquele mesmo dia receber um aparelho novo. 
– Mas o aparelho que vocês tinham avariou? 
– Não. 
– Como é isso, então? Foi roubado? 
– Não, foi enterrado. 
– Enterrado? 
– Sim, foi junto com o corpo do vosso falecido pai. 
Tudo havia sido congeminado junto com o coveiro. A televisão, desmontada nas suas quantas peças, tinha sido embalada no caixão. Era um requisito de quem ficava, selando a vontade de quem estava indo. 
Na cerimônia, todos se entreolharam. O pedido era estranho, mas ninguém podia negar. O tio Ricardote ainda teve a lucidez de inquirir: – E a antena? Esperassem, fez ela com a mão. Tudo estava arquitectado. O coveiro estava instruído para, após a cerimónia, colocar a antena sobre a lápide, amarrada na ponta da cruz, em espreitaçâo dos céus. Aquela mesma antena, feita de tampas de panela, ampliaria as electrónicas nos sentidos do falecido. O velho Sicrano, lá em baixo, captaria os canais. É um simples risco a diferença entre a alma e a onda magnética. Por razão disso, a viúva Estrelua pediu que não cavassem fundo, deixassem o defunto à superfície. 
– Para apanhar bem o sinal. – explicou a velha. 
O Padre Luciano se esforçou por disciplinar a multidão, ele que representava a ordem de uma só voz divina. Com uns tantos berros e ameaças ele reconduziu a multidão ao silêncio. Mas foi sossego de pouca dura. Logo, Estrelua espreitou em volta, e foi inquirindo os condoídos presentes:
– E o Bibito, onde está? 
– O Bibito? – se interrogaram os familiares. Ninguém conhecia. Foi o bisneto que esclareceu: Bibito era o personagem da novela brasileira. A das seis, acrescentou ele, feliz por lustrar conhecimento. 
– E a Carmenzita que todas as noites nos visita e agora não comparece! De novo, o bisneto fez luz: mais uma figura de uma telenovela. Só que mexicana. O filho mais velho tentou apaziguar as visões da avó. Mas qual Bibito, qual Carmen?! Então os filhos de osso e alma estavam ali, lágrima empenhada, e ela só queria saber de personagem noveleira? 
– Sim, mas esses ao menos nos visitam. Porque a vocês nunca mais os vimos. Esses que os demais teimavam em chamar de personagens, eram esses que adormeciam o casal de velhotes, noite após noite. Verdade seja escrita que a tarefa se tornava cada vez mais fácil. Bastava um repassar de cores e sonos para que as pestanas ganhassem peso. Até que era só ligar e já adormeciam. 
– Quem vai ligar o aparelho hoje? 
– É melhor não ser você, marido, porque noutro dia adormeceu de pé. De novo, o padre invocou a urgência de um silêncio. Que ali havia tanto filho e mais tanto neto e ninguém conseguia apaziguar a viúva? Os filhos descansaram o padre. Que sim, que iam conduzi-la dali para o resguardo da casa. Estrelua bem merecia o reparo de uma solidão. E prometeram à velha que não precisava de um outro aparelho, que eles iriam passar a visitá-la, nunca mais a deixariam só. A avó sorriu, triste. E assim a conduziram para casa. Aquela noite, ainda viram a avó Estrelua atravessar o escuro da noite para se sentar sobre a campa de Sicrano. Deu um jeito na antena como que a orientá-la rumo à lua. Depois passou o dedo pelos olhos a roubar uma lágrima. Passou essa aguinha pela tampa da panela como se repuxasse brilho. De si para si murmurou: é para captar melhor. Ninguém a escutou, porém, quando se inclinou sobre a terra e disse baixinho: Hoje é você a ligar, Sicrano. Você ligue que eu já vou adormecendo."

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